por Gilberto Morbach
No último domingo, 06/12, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela impossibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. O que surpreende é o placar — 6 a 5 contra a reeleição de Davi Alcolumbre no Senado, 7 a 4 contra a de Rodrigo Maia na Câmara — e o tamanho de uma controvérsia que nunca foi.
No § 4º de seu art. 57, a Constituição Federal dispõe que, após eleição das mesas em cada uma das casas do Congresso, fica “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. Geralmente, tomar algo como óbvio costuma ser arrogância de quem escreve. Não parece ser o caso agora. Fingir que eventual recondução às mesas das duas casas não é obviamente inconstitucional seria subestimar a inteligência de quem lê estas linhas, de quem lê o dispositivo.
Daí por que não pretendo aqui discutir a inconstitucionalidade latente, mas algumas questões que o julgamento acaba trazendo à tona: questões sobre legalidade e respeito à lei, sobre o papel do Supremo Tribunal Federal, sobre como é possível reivindicar a Constituição Federal e, em última análise, a própria democracia para contrariar seus próprios fundamentos.
Para inaugurar a reflexão, tomo aqui como pontos de partida dois elementos que, graves em si mesmos, me parecem também simbólicos e sintomáticos de uma crise muito maior que mais um julgamento de mais uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF. (Curiosamente, eles vêm de ministros que, respectivamente, votaram em sentido contrário — o que talvez revele, de novo, que decisões judiciais adequadas não são apenas uma questão de resultado, mas dizem respeito, principalmente, às razões e aos fundamentos que as orientam e justificam.)
Primeiro, um trecho do voto do ministro relator, Gilmar Mendes, favorável à reeleição de Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia: em seu voto, o ministro afirma que “o afastamento da letra da Constituição pode muito bem promover objetivos constitucionais de elevado peso normativo, e assim esteirar-se em princípios de centralidade inconteste para o ordenamento jurídico”.
O segundo elemento está na reação de Luiz Fux, presidente da Corte e contrário à possibilidade de reeleição, diante da repercussão negativa em meio à opinião pública (ou ao que se convencionou chamar de ‘opinião pública’) quanto à votação no Supremo: conforme apuração de Lauro Jardim, no jornal O Globo, Fux optou por “fazer uma espécie de enquete entre juízes, assessores e jornalistas sobre qual decisão seria menos desgastante para a Corte”.
Dois ministros, dois votos contrários, duas posições que, cada uma à sua maneira, levantam uma série de problemas que dizem muito sobre o direito brasileiro e o caos institucional que as próprias instituições ajudam a criar.
Comecemos pela justificativa do ministro Gilmar Mendes: partindo da ideia de que “o afastamento da letra da Constituição pode muito bem promover objetivos constitucionais de elevado peso normativo”, é possível dizer qualquer coisa sobre qualquer que seja o texto constitucional. O que são “objetivos constitucionais de elevado peso normativo”? Ainda que isso fosse verdade, e que certos objetivos pudessem valer mais que os limites semânticos daquilo que diz a lei positiva, quem determina esses objetivos? Gilmar Mendes? Esse questionamento não é um exercício de cinismo. Qual é o critério a partir do qual esses objetivos serão determinados? Fatos morais? Políticas públicas de matriz progressista? Desenvolvimento econômico? Isso fica em aberto. E fica em aberto porque não haveria como ser diferente: ainda que se possa discutir, em termos filosóficos, sobre eventual existência de objetivos superiores à “letra da Constituição”, não temos qualquer autoridade institucional responsável por dizer quais são esses objetivos — e isso assume particular relevância quando pensamos em sociedades complexas e fragmentadas, quando consideramos as circunstâncias do pluralismo e a profundidade de nossos desacordos morais. Ainda que haja uma resposta correta, não temos uma epistemologia compartilhada por meio da qual possamos determiná-la. Não fosse assim, sequer precisaríamos de uma Constituição. Voltemos aos possíveis critérios que listei como exemplos. Se estivermos falando sobre fatos morais, não haverá consenso sobre (i) quais são esses fatos, (ii) como identificá-los e (iii) a melhor interpretação sobre seus significados e suas materializações. Se estivermos falando sobre políticas progressistas, discutiremos o significado de progresso. Se o critério for desenvolvimento econômico, saber de antemão como atingi-lo é algo tão distante quanto a impossível unanimidade em debates dessa natureza.
Pensemos agora em Luiz Fux, o presidente do Supremo Tribunal Federal que, diante das críticas à Corte (cada vez mais frequentes, cada vez mais intensas), decide conduzir uma enquete para tentar verificar qual decisão seria “menos desgastante” à imagem do STF. O voto de Fux, como já dito, foi contrário à possibilidade de reeleição de Maia e Alcolumbre. E se o resultado da enquete tivesse sido diferente? Não parece muito animador saber que, às vésperas de um julgamento relevante, o presidente da Suprema Corte baseia suas razões de decidir em algo tão difuso quanto uma enquete interna. Também não anima saber que o ponto de referência do ministro não parece ter sido a busca pela resposta constitucional acerca da matéria em plenário, mas a imagem do Supremo aos olhos da ‘opinião pública’. Também aqui não se trata de cinismo: é da natureza própria de um Tribunal Constitucional o exercício de um papel contramajoritário. Também aqui o problema é mais profundo: ainda que se admitisse a atribuição de um caráter representativo à Corte, qual é a ‘opinião pública’? Novamente, ainda que em outra direção, surge a questão do pluralismo. Parafraseando Joseph Brodsky, “uma nação não fala numa só voz”.
É verdade que o STF tem sido muito criticado e, não só isso, atacado e ameaçado. Paradoxalmente, porém, a melhor resistência que pode oferecer é cumprir efetivamente o papel constitucional que lhe é próprio. O Supremo acaba por colocar a si mesmo em uma posição cada vez mais frágil, cada vez mais suscetível aos impulsos autoritários quando decide reivindicar para si um papel que não é seu. Tão ingênuo quanto anunciar o fim da democracia a cada resultado eleitoral que não agrada seria supor que está tudo normal em um país cujo presidente é Jair Bolsonaro (cujo histórico gravita em torno da intolerância, do patrimonialismo e da incompetência), alguém que declarou em reunião que ‘interviria’ no STF — em razão de uma decisão que sequer existiu, que sequer foi proferida pelo então ministro Celso de Mello (de envergadura inversamente proporcional à daquele que o sucedeu, Kassio Marques, indicado por Bolsonaro e favorável à reeleição de Alcolumbre). Mesmo assim, em uma democracia digna do nome, cabe à Suprema Corte fazer aquilo que uma Suprema Corte faz. Seus princípios, sua esfera e sua atuação não são, não podem ser ajustáveis às circunstâncias. Um Tribunal que age de acordo com a temperatura talvez não seja atacado, talvez jamais venha a sofrer uma tentativa de golpe — porque já não serve para mais nada, afinal. Não é necessário nem mesmo um cabo ou um soldado quando o próprio Supremo não respeita a si mesmo.
É por isso que tampouco faz sentido o argumento de que a reeleição de Maia à presidência da Câmara dos Deputados representaria um freio institucional a um presidente que sempre fez questão de rejeitar qualquer ideia de limites. De fato, quando Jair Bolsonaro parece cada vez mais disposto a se alinhar com o ‘establishment’ — o mesmo que o presidente tanto atacou em campanha, o mesmo de cujo baixo clero sempre fez parte —, a perspectiva de um de seus aliados à frente do Congresso Nacional preocupa qualquer pessoa cujo compasso moral ainda não perdeu a capacidade de incômodo. Por outro lado, justificar uma medida antidemocrática sob o pretexto de defender a democracia é fazer como Gilmar Mendes, cujo voto é um exemplo de como usar a Constituição contra ela mesma. Maia pode ter sido um freio institucional ao Executivo, mas o fato é que a própria ideia de freios e contrapesos perde seu sentido e sua razão de ser quando se admite que uma Corte Suprema decida com base em algo que não seja o direito..