A tragédia do Cine Oberdan e o “paradoxo do pânico”

Segundo Elias Canetti “quanto mais as pessoas lutam ‘por sua própria vida’ tanto mais claro se torna que lutam contra os 'outros', que, por toda parte, as estorvam.”

por Cláudio Ribeiro

Há 80 anos, no dia 10 de abril de 1938, ocorreu uma das mais emblemáticas tragédias de que se tem notícia, no Brasil: a tragédia do Cine-Teatro Oberdan, na cidade de São Paulo. Na ocasião, dezenas de pessoas — na maior parte, crianças e adolescentes — morreram pisoteadas nas galerias do prédio, durante a exibição do filme Criminosos do ar (Criminals of the air, 1937, direção de Charles Coleman).

O acontecimento funesto teve como gatilho o rumor de que havia se iniciado um incêndio no cine-teatro. Após alguém gritar “Fogo!”, as pessoas que se achavam no interior do recinto, na tentativa de evasão, foram levadas ao pânico, ao embate corporal e ao pisotear desvairado. O mais curioso: o alarme falso de incêndio foi bradado no exato momento em que dois aviões se chocam e se incendeiam, em uma das cenas do filme. Nesta cena, o fogo e a fumaça tomam conta de toda a tela. Uma das mais detalhadas e impressionantes reportagens da época, feita pelo jornal Correio Paulistano[1], nos diz que, minutos antes de a cena dos aviões aparecer no filme, uma senhorita havia repreendido alguém por fumar ao seu lado. A cena dos aviões veio à tona, “o pano se toldou de fumaça e, justamente nesse momento, novos novelos de fumo foram vistos na plateia. Uma voz masculina dali então se levantou, gritando com estridência: ‘Fogo!’”

Até hoje, não se sabe ao certo se o homem que gritou “Fogo!” o fez por acreditar que o pano da projeção realmente estava em chamas. A visão e o cheiro da fumaça de algum cigarro aceso (nas galerias ou nos sanitários) pode ter contribuído para que a cena do incêndio dos aviões, na tela, exercesse uma impressão quase que hipnótica em algumas pessoas. A própria equipe de reportagem do Correio Paulistano, que esteve presente nas dependências do cine-teatro após a tragédia, levanta uma hipótese nessa direção. Vejamos:

A nossa reportagem também esteve no interior do Oberdan, e teve ocasião de verificar que, numa das instalações sanitárias anexas às galerias, havia um jornal bastante queimado. Junto a ele estava uma calça de menino. E a suposição criada é a de que esse pequeno estivesse estado ali, fumando, e tivesse queimado o jornal, proposital ou acidentalmente. Teria sido essa a fumaça que toldou a tela, justamente quando, na fita o avião se incendiou, dando então, a muitos, a impressão de que havia, efetivamente, fogo no cinema.

A despeito de o homem que fez o alerta de “Fogo!” ter realmente acreditado que o pano da projeção havia se incendiado, o fato é que este alerta contagiou a todos, percorreu os expectadores do filme Criminosos do ar tal como uma corrente elétrica.

Dados esses fatores intrigantes, este acontecimento chama atenção de ao menos dois tipos de historiadores: 1) aqueles interessados em práticas culturais associadas à experiência tecnológica, na esteira de um Friedrich Kittler e, mais recentemente, de um Stefan Andriopoulos; e 2) aqueles que, seguindo as reflexões de um pensador outsider como Elias Canetti, se interessam pela lógica dos fenômenos coletivos e pela relação entre indivíduo e massa (é o caso do intelectual francês Jean-Pierre Dupuy). As duas correntes me atraem, mas continuarei o comentário sobre tragédia me atendo à segunda.

O Desastre do Estádio de Heysel – Na final da Liga dos Campeões da UEFA de 1985, em Bruxelas, torcedores do Liverpool invadem a arquibancada da Juventus levando ao colapso da mureta de proteção. 39 pessoas morreram e 600 ficaram feridas.

O prédio do Cine Oberdan localiza-se no bairro do Brás, na esquina da rua Sayão Lobato com a rua Ministro Firmino Whitaker, com saídas para essas duas ruas. Na ocasião, a saída para a Sayão Lobato estava fechada, posto que só era aberta após o fim de cada espetáculo ou exibição. Evidentemente, foi a escadaria desta saída que se  tornou o ponto maior da tragédia. Continua o texto da reportagem do Correio Paulistano:

Demasiado infelizes foram os que tentaram abandonar o cinema pela escada que dá para a rua Sayão Lobato. …. Os primeiros a alcançarem-na, vendo logrados os seus intentos, procuraram retroceder, sendo, então, impelidos de encontro à própria porta pelos que vinham atrás. A confusão estabelecida foi então geral, comprimindo-se centenas de pessoas, na maioria crianças, num corredor relativamente estreito. Quando a porta referida foi aberta, e a massa logrou alcançar a rua, esse corredor, a exemplo da primeira saída, apresentava os seus degraus cobertos de moribundos e cadáveres.

A descrição acima faz recordar a quem quer que tenha lido Massa e Poder[2], de Elias Canetti, a distinção entre “massa de fuga” e “pânico”. Para Canetti, o fogo é o símbolo mais fortemente representativo da massa — tudo o que toca destrói, e suas labaredas se assemelham a braços e pernas de uma multidão agitada. Como exemplo de “massa de fuga”, Canetti descreve o cenário do incêndio em uma floresta. Qualquer grupo de pessoas que se acha em uma floresta e se depara com um incêndio crescente e repentino, prontamente começará a correr, em bloco mais ou menos ordenado, procurando um ponto fixo de fuga. O ambiente da floresta, por não ser uma construção fechada, não ter paredes etc., permite que a fuga se realize, que toda a energia cinética da massa encontre vazão.

Em contraponto, o “pânico” é descrito por Canetti como “a desagregação da massa no interior dela própria.” O exemplo dado é, precisamente, o do incêndio dentro de um teatro. Lembra Canetti que as características arquitetônicas de um teatro são propícias para a deflagração do pânico, pois “quanto mais unidas as pessoas se encontram em função do espetáculo, quanto mais fechada a forma do teatro, que exteriormente as mantém coesas, mais violenta a desagregação”. Em tais condições, “a energia da fuga transforma-se por si só numa energia do rechaço”, tal como ocorreu no Cine Oberdan. E, lembre-se, bastou que se gritasse “Fogo!” para que a massa de fuga se formasse e logo se desagregasse em pânico. Não foi necessário, portanto, que o ambiente fechado, de fato, tivesse se incendiado. Em síntese, diz Canetti, sobre o pânico: “quanto mais as pessoas lutam ‘por sua própria vida’”, numa situação como a da tragédia do Cine Oberdan, ”tanto mais claro se torna que lutam contra os outros, que, por toda parte, as estorvam.”

Quanto mais é sentida a própria individualidade tanto mais o indivíduo se mistura ao corpo coletivo. A isto, Jean-Pierre Dupuy, em estudo que absorve as reflexões de Canetti para pensar a tradição da sociologia, das teorias da justiça e da economia política, denominou “paradoxo do pânico”.[3] É por isso que o pânico é “a desagregação da massa no interior dela própria”.  Sob pânico, remata Canetti, cada indivíduo procura

escapar da massa que, como um todo, está em perigo. Como, porém, encontra-se ainda fisicamente nela, tem de combatê-la. Entregar-se à massa nesse momento seria a sua ruína, visto que ela própria está ameaçada de arruinar-se. Num tal momento, o indivíduo não se cansa de enfatizar sua singularidade. Com seus golpes e empurrões, ele atrai mais golpes e empurrões. Quanto mais golpes dá e recebe, tanto mais claramente sente-se a si próprio, e tanto mais nitidamente recolocam-se para ele as fronteiras de sua pessoa.

Ironicamente, o nome da fundação proprietária do Cine Oberdan é “Societá Italiana di Mutuo Soccorso Leale Oberdan”, isto é, uma sociedade para “Ajuda Mútua”. Irônico porque o que o pânico promoveu nas dependências do cine-teatro foi nada mais nada menos do que aquilo destacado por Canetti: o “rechaço mútuo”, a mútua tentativa de singularização dos indivíduos tentando encontrar um ponto fixo de fuga.

 

[1] Publicada no dia 12 de abril de 1938 (numa terça-feira), esta reportagem, intitulada “Domingo sinistro, de tragédia e de luto!”, pode ser lida em versão digitalizada no site do acervo online da Biblioteca Nacional.

[2] Companhia das Letras. Tradução de Sérgio Tellaroli, 1995.

[3] Cf. “Totalisation et Méconnaissance”. In: Paul Dumouchel [ed.], Violence et Vérité, 1985, pp. 110-135.

COMPARTILHE: