“Arredai, mortos de Manaus!”

“Eles existem, eles não estão apenas jogados sobre a minha mesa.” A frase, em que o pronome “eles” indica um número de 428 mortos impresso num boletim de estatística, foi escrita em 1943 por um cronista inquieto e constrangido; bem que poderia ter sido dita por Jair Messias Bolsonaro, em lugar da assombrosa “E daí?”. Mas a decência e a dignidade não costumam visitar com muita frequência o presidente.

“Arredai, mortos de Manaus!” – Rubem Braga e o constrangimento dos homens decentes

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por Cláudio Ribeiro

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Rubem Braga

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À memória de Sérgio Sant’Anna, Rubem Fonseca, Moraes Moreira, Aldir Blanc e Flávio Migliaccio. Grandes artistas e, principalmente, homens decentes.

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I.

“E daí?”

A frase bateu ruidosamente nos tímpanos de todos, na última terça-feira do mês de abril, dia 28. A ela, se seguiram outras: “Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre.” Assim reagiu o presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, quando indagado por um jornalista a respeito do registro de 474 pessoas mortas por Covid-19, em um único dia, no país que ele, em tese, governa. Depois, ao saber que aquilo que dizia estava sendo transmitido, ao vivo, para vários canais de difusão, o presidente tentou reparar o malfeito forçando uma pose de empatia e de sensibilidade que, nos mínimos gestos, revelava nada menos do que o cruel cinismo e a habitual impostura que o caracterizam. Tanto é assim que o mesmo cinismo e a mesma impostura puderam ser vistos, redobrados, na quinta-feira (dia 30), durante a live que o presidente realizou em seu canal do YouTube.

Caminhando para o término da live — cuja maior parte foi gasta (1) criticando as medidas de distanciamento social para conter os efeitos da pandemia de Covid-19, e (2) rasgando seda para o delegado Alexandre Ramagem —, Jair Bolsonaro saca da mesa um papel em que se acha escrito o roteiro de sua fala; olha-o e diz: “Eu acho que acabou, aqui.” Depois, desloca os olhos para alguém que está atrás das câmeras. Esse alguém, ao que tudo indica, mostra-lhe um bilhete que o recorda de que há mais uma coisa a ser dita. Jair Bolsonaro então continua, na sintaxe peculiar que traduz sua personalidade:

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“Bem, encerrando a live: nossa solidariedade aos familiares que perderam seus entes queridos. São seres humanos. Não interessa se tinha comorbidade ou se tinha uma idade… Eu tenho minha mãe [que] está viva, com 93 anos de idade; eu peço vê-la com vida por muito tempo ainda. E ficaria, obviamente, bastante abatido, como todos que perderam seus entes queridos, assim… assim fizeram, né? [sic] Assim aconteceu por ocasião do passamento desses seus entes vitimados pelo coronavírus. Ok?”

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Isso mesmo: o presidente da República Federativa do Brasil só se lembrou de proferir algumas frases (muito mal tecidas, por óbvio) aos familiares das pessoas vitimadas por Covid-19 porque foi lembrado a fazê-lo. Lembrado a fazê-lo, no fim de uma live do YouTube, por meio de um bilhete escrito por um assessor……………..

II.

“Eles existem, eles não estão apenas jogados sobre a minha mesa.”

A frase, em que o pronome “eles” indica um número de 428 mortos impresso num boletim de estatística, foi escrita em 1943 por um cronista inquieto e constrangido; bem que poderia ter sido dita por Jair Messias Bolsonaro, em lugar da assombrosa “E daí?”. Mas a decência e a dignidade não costumam visitar com muita frequência o presidente. Saída da pena de Rubem Braga, a frase está presente na crônica “Os mortos de Manaus”, inclusa no volume Morro do isolamento, publicado em 1945. O motivo da inquietação e do constrangimento? O fato de o cronista ter se valido desses dados estatísticos para compor aquilo que resultava em seu ganha-pão: a própria crônica que ora se lê.

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Rubem Braga (Foto: Celio Jr./Estadão)

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Como o título da crônica indica, os 428 mortos jaziam na capital do estado do Amazonas, e o número dizia respeito aos óbitos ocorridos no primeiro trimestre do ano de 1940. O texto principia com um parágrafo que, pelos sinais de pontuação empregados, dá o tom da reflexão que Rubem Braga convida o leitor a fazer. Leiamos:

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“Febre tifoide, 6; difteria, 2; coqueluche, 2; sarampo, 1… lia automaticamente um folheto jogado sobre a mesa da redação.”

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Num mero boletim de estatística, tais sinais (ponto e vírgula e vírgula) cumprem a mera função de marcar a quantidade de mortos para cada enfermidade. Mas no texto do cronista são mais do que isso. São pausas, claro; mas, sobretudo, pausas que procuram acentuar algo muito importante: a assimilação desse tipo de dados não deve, de forma alguma, ser naturalizada. Por isso, logo em seguida, vêm as reticências, potencializando as pausas iniciais. E então a frase carregada de exasperação (é preciso repeti-la): “lia automaticamente um folheto jogado sobre a mesa da redação.” Destaco: “… lia automaticamente”. Isto é: o cronista revela a necessidade de se interromper um fluxo de leitura automática cuja impertinência ele, até o momento, não havia se dado conta.

Pois bem, assim começa o segundo parágrafo:

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“Febre tifoide, 6; difteria, 2; coqueluche, 2… Pensei num pequeno grupo de engraxates que quase toda noite se reúne na esquina da Avenida São João e Anhangabaú e canta sambas, fazendo a marcação com as escovas e as latas de graxa.”

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Recordemos: o cronista efetuava a leitura na redação do jornal em que trabalhava. O boletim estava sobre sua mesa. A tradição da crônica, no Brasil, foge à mera cronicidade dos fatos, e, ainda que seu espaço seja o do jornal, não ombreia com a notícia — e nem há por que fazê-lo. Muito ao contrário: faz com a notícia, ou com a estatística, o que os engraxates da referida esquina faziam: “São uns quatro ou cinco pretos que cantam assim pela madrugada, fazendo de seus instrumentos de trabalho instrumentos de música.” (Para além do trabalho, a arte: a música, bem como a crônica.) Mas reparemos: a frase que indica os dados foi encurtada; as reticências vieram logo após o número de vitimados por coqueluche. Rubem Braga insiste na interrupção do fluxo…

O cronista inquieto pensou em tomar os engraxates como tema. Pensou também “numa fita de cinema, num livro, numa determinada pessoa”. Mas continuavam ali, sobre a mesa, os mortos de Manaus: “Apanhei o folheto e vi que era o Boletim Estatístico do Amazonas. Uma nota de estatística demógrafo-sanitária; as pessoas que faleceram em Manaus durante o primeiro trimestre do corrente ano. Larguei o folheto e continuei a procurar assunto.” Mas, outra vez largado sobre a mesa, o boletim, e aquilo que ele informava, continuava a enfiar contas no colar de pensamentos do cronista.

Rubem Braga então lembrou-se de um poema de Mário de Andrade sobre o seringueiro. Não revela qual, mas certamente trata-se de “Acalanto do seringueiro”, publicado no livro Clã do Jabuti, de 1927. O poeta procurava para o seringueiro anônimo do Acre “A palavra brasileira/ Que faça você dormir”, e indagava “Como será a escureza/ Desse mato virgem do Acre?”, posto que tinha de “ver por tabela,/ Sentir pelo que me contam”. O cronista via o autor do poema no bar da Glória, na cidade de São Paulo, onde também via outra pessoa, que o fez “pensar numa tarde de chuva” e em comprar um chapéu. Este último pensamento, por sua vez, o fez recorda-se dos versos de uma “canção negra cantada por Marian Anderson: ‘Eu tenho sapatos, tu tens sapatos…’”. Também não diz o nome da canção, mas trata-se de “Heav’n Heav’n (I got a robe)”, gravada em 1928. Canção do gênero Negro spirituals, em que Anderson imprime sua alma inteira: “I got shoes, you got shoes,/ All of God’s children got shoes”. E, mais uma vez, voltou-se o cronista para os engraxates. Eles deveriam ser o tema. Mas não havia jeito. Os mortos de Manaus acossavam Rubem Braga. E a ele voltavam “rígidos, contados pela estatística, transformados apenas em números e nomes de doenças”.

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Marian Anderson

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Sem encontrar a “Palavra brasileira” que os fizesse, não dormir, mas repousar em paz, o autor prosseguia pensando “nesses 60 mortos (desta vez, por impaludismo, sem deixar de, antes, passar os olhos pelos números de mortos por tuberculose e nefrite)” e procurava imaginar “uma visão de seus corpos magros, enfim cansados de tremer, enfim cansados de tossir, sendo levados para o cemitério em dias de chuva, um após o outro. Sem febre mais: frios, frios, amarelados, brancos, míseros corpos de tuberculosos, de impaludados”; pensava nisso até que a exasperação caminhasse para a vontade de neutralizar aquilo tudo, de reduzir o que lia à mera notícia, ao habitual, ao aceitável: “De um modo geral não há nisso nada demais: está visto que as pessoas têm mesmo de morrer. Que morram. Se a gente começa a pensar muito nessas coisas, passa a vida não pensando em mais nada.”

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Em 2020, o leitor brasileiro pode, neste ponto, imediatamente se recordar de uma frase dita pela secretária da cultura do presidente Jair Messias Bolsonaro, Regina Duarte, que, no passado remoto, recebeu o epíteto de artista. Disse Regina, no dia 7 de maio, em entrevista ao canal de televisão CNN Brasil, emulando a sintaxe do presidente: “Na humanidade, não para de morrer. Se você falar vida, do lado tem morte.” Mas nem ao presidente e nem à secretária ocorreria a indagação subsequente do cronista: “Então por que esses mortos de Manaus vêm se instalar na minha mesa, sub-repticiamente, esses mortos de Manaus sem nomes, numerados de acordo com suas doenças, na última página de um boletim de estatísticas?”

A resposta, já sabemos: “Eles existem, eles não estão apenas jogados sobre a minha mesa”. O silêncio que os 428 mortos guardavam era “pesado e tenso” e pairava acima de tudo, acima da canção de Marian Anderson, do poema de Mário de Andrade, do samba dos engraxates. Pairava como uma “nuvem grossa e opressora, transformando o sol em um pesado mormaço”.

Rubem Braga, banhado de constrangimento, assim terminava seu texto:

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“Arredai, mortos de Manaus! Seja o que for que tiverdes a dizer, tudo o que me disserdes será tremendo, mas inútil. Eu me sentia em vossa frente inquieto e piedoso, mas sinto que não quereis minha piedade: os vossos olhos, os vossos 428 pares de olhos foscos me olham imóveis, acusadores, obstinados. Pois bem! A mais débil de todas as brisas do mundo, a mais tímida aragem da vida dentro em pouco vos afastará, pesada nuvem de mortos! Sereis varridos como por encanto para longe de minha vida e de minha absurda aflição. A força da vida — sabei, ó mortos — a força da vida mais mesquinha é um milagre de todo dia. Eu não tenho culpa nenhuma, e nada tenho a ver convosco. Arredai, arredai. Eu não tenho culpa de nada, eu não tenho culpa nenhuma!”

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Rubem Braga (EBC)

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III.

Em 21 de abril de 2020, uma imagem correu o mundo: a fotografia aérea tirada por Michael Dantas, da AFP, que mostra o sepultamento em massa de vítimas de Covid-19, no cemitério do Parque Tarumã, em Manaus: uma série de covas rasas, abertas de forma irregular em um solo terrivelmente ocre; algumas, cobertas de humildes coroas de flores; outras, sem nada. Sol forte. Não havia chovido na espessa capital do Amazonas. Entre o dia em que a fotografia de Dantas foi tirada e aquele em que Jair Messias Bolsonaro disse não fazer milagre, 118 corpos desceram às covas de Manaus em decorrência de uma única doença, a supracitada Covid-19. No mesmo período e na mesma cidade, 262 foram enterrados devido a mortes por causa indeterminada.

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Cemitério Parque Taruma, em Manaus (Michael Dantas/AFP)

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O Messias que preside a República Federativa do Brasil, de fato, não faz milagre; tampouco o faz a literatura. Mas, a seu modo, esta última ao menos é capaz de transfigurar dados estatísticos e de permitir que os mortos tenham, senão um corpo glorioso, ao menos a dignidade de serem lembrados como pessoas cuja memória permanece viva; cuja história não se destina à letra fria e morta dos boletins estatísticos. É preciso decência para perceber quando chega a “nuvem grossa e opressora” nos constrangendo a todos.

E aos que não puderam se aproximar das covas rasas de Manaus (e de tantas outras cidades brasileiras) para depositar suas humildes coroas de flores, talvez haja, também na literatura, um possível consolo: as três últimas quadras de um poema de Ivan Junqueira, de 1994:

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Não pude enterrar meus mortos.

Sequer aos lábios estoicos

lhes fiz chegar uma hóstia

que os curasse dos remorsos.

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Quero esquecê-los. Não posso:

andam sempre à minha roda,

sussurram, gemem, imploram

e erguem-se às bordas da aurora

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em busca de quem os chore

ou de algo que lhes transforme

o lodo com que se cobrem

em ravina luminosa.

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Ivan Junqueira

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