por Georges Abboud
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“Ser eficaz é a grande palavra de ordem hoje em dia, e, na medida em que desejamos a eficácia por desespero ou por lógica, somos responsáveis pelo assassinato da História.”
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Albert Camus, O Tempo dos Assassinos (Conferência proferida no Brasil), 1949
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A pandemia da arbitrariedade
Em poucos meses, o coronavírus (COVID-19) se espalhou pelo mundo inteiro, acabando com milhares de vidas. Os números crescem implacáveis e o ocidente está em crise. É o alarme que hoje ouvimos sem parar e que será repetido, como um mantra perturbador, durante a quarentena imposta para detê-lo. Sabemos disso e, aflitos por conservar o pouco orgulho que nos resta, não ousamos duvidá-lo. Afinal, é uma questão de civilidade.
Aceitá-lo não faz de nós conformistas, resignados com a própria ruína. É a nobreza do possível, que reconhece, em tempos como esses, as “vantagens do pessimismo e os perigos das falsas esperanças”.[1]
Contudo, essa postura é inútil para as autoridades, obrigadas a enfrentar a pandeia a partir do poder, da política e do direito. A pergunta parece ser uma só: “que decisões que precisam ser tomadas diante do surto mais vasto e contagioso desde a gripe espanhola de 1918?” Mas ela esconde outra, mais urgente e fundamental: “Como decidir em tempos de crise?”
A ênfase no verbo é calculada. Refletir sobre isso é uma obrigação moral, levando em conta as sempre instáveis circunstâncias nacionais. Como responderá a nossa república ao flagelo do coronavírus (COVID-19)? Urgência e eficácia parecem ser as palavras de ordem.
Para os juristas, contudo, há questões essenciais que não podem ser encobertas pela atual histeria dos lugares-comuns.
Muito se fala, no Brasil de 2020, em “conversas institucionais” e “diálogo entre poderes”. Justiça seja feita: é a postura mais importante que qualquer Estado pode adotar para impedir a criação planos incompatíveis e mal pensados, que se excluem uns aos outros.[2]
O entusiasmo por essas noções às vezes se esquece de uma verdade acaciana: dialogar é também escutar. Aqui, “escutar” significa humildade e consciência das próprias limitações constitucionais.
Assim, cabe ao Executivo definir as medidas de controle da pandemia, que deve encontrar uma resposta rápida do Legislativo, em matérias que fujam da sua alçada natural.[3]
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O Judiciário entra aqui. Não para forçar os outros dois poderes a adotar essa ou aquela política pública, mas para garantir que, em tempos de crise, a proteção dos direitos fundamentais receba atenção redobrada. É o Judiciário como instância de controle de populismos, más escolhas e barbáries de toda ordem.[4]
A experiência da história nos mostra que a ditadura e a demagogia costumam ser erguidas contra as anormalidades e as exceções, tomando o lugar esse regime “dócil” e “ineficiente” ao qual insistimos em nos apegar: a democracia. Recessões econômicas e crises políticas inflamam os discursos dos que procuram fazer governar diretamente com o povo, ignorando as instituições intermediárias, como os partidos políticos e os mecanismos da burocracia estatal.[5]
Acreditar em soluções milagrosas para a pandemia é assumir o risco de perder algo que, mesmo em trinta e dois anos de democracia constitucional, não conquistamos definitivamente: os direitos fundamentais.
Talvez valha a pena lembrar que, após a Segunda Guerra Mundial, várias áreas do conhecimento humano entraram em crise. Todos os homens do direito, fossem eles advogados, juízes ou professores, viram-se na dolorosa circunstância de prestar contas ao restante da humanidade.
Depois de 1945, ficamos com a sensação de que os nazistas agiram sob a proteção de leis que tornaram possível a barbárie assassina de Hitler. O bode expiatório dessa acusação foi o positivismo jurídico, o modo de encarar o direito a partir da forma como ele se encontra posto, suspendendo qualquer preocupação com os valores que o animam. Afinal, quem poderia responder sinceramente, indo além do próprio subjetivismo, quid est justitia, o que é a justiça?
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Segundo muitos no Brasil, essa filosofia teria permitido que a legalidade alemã abraçasse todo e qualquer conteúdo, legitimando o Terceiro Reich e os campos de concentração.
Essa visão ingênua despreza o fato de que o nacional-socialismo, como qualquer movimento revolucionário, opunha-se à ordem vigente.[6] A lei aprovada em Congresso, posta nos diários oficiais, era um obstáculo a ser superado, um resquício decadente e pequeno burguês da República de Weimar. A fim de executar seus planos, os nazistas precisavam burlar, instrumentalizar ou esvaziar o próprio direito. “A barbárie não veio em nome da lei, pelo contrário, ela se estabilizou e se concretizou fora da lei”.[7]
Ao examinar a influência da ideologia nacional-socialista no direito alemão, o estudioso Mario Losano observa que o direito preexistente era um incômodo aos desejos dos homens de Hitler. Para derrotá-lo, porém, a ordem jurídica não foi completamente destruída.
Os nazistas a instrumentalizaram para os seus próprios fins, introduzindo no discurso jurídico uma série de termos propositadamente vagos e carregados de política, que, uma vez interpretados pelas faculdades e aplicados pelos tribunais, permitiram que todas as leis da Alemanha fossem subjugadas. “O positivismo jurídico foi substituído por um Füherpositivismus”.[8] A interpretação do direito obedecia a princípios indefinidos, conceitos de uma ambiguidade tal que os juízes que deles se valiam estavam autorizados a, no caso concreto, distorcer qualquer texto para atender, por exemplo, aos interesses da “comunidade do povo alemão” (die Deutsche Volksgemeinschaft).
Se não compreendermos momentos como a crise da República de Weimar e o desafio do coronavírus (COVID-19) em toda sua complexidade, rupturas na legalidade democrática podem ser provocadas pelas palavras de ordem dos demagogos bem intencionados, estejam eles à direita ou à esquerda. Não importa.
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Decidir em tempos de crise é, antes de tudo e para todos os poderes, reforçar a legalidade democrática. A jurisprudência, obedecendo a essa missão, deve se afirmar como última protetora dos cidadãos e da democracia — quando e só quando tudo o mais falhar.
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A democracia atacada desde dentro
Nesse ponto, a obra de David Runciman é fundamental. Em How Democracies Ends é lançado este questionamento : já que a democracia representativa contemporânea está cansada, e se revelou palco para vinganças pessoais, paranoias, enganos e ineficiência generalizada, não haveria um regime melhor, que pudesse substituí-la de uma vez por todas?[9]
Eis dilema eterno do constitucionalismo: como proteger a democracia dos ataques que vêm de dentro. Como salvar as minorias das maiorias eventuais?
A lembrança de Churchill logo nos vêm à mente: discursando na House of Commons, em 1947, o primeiro ministro inglês teria dito que a democracia seria a pior forma de governo existente, desconsiderando, é claro, todas as demais. Para Runciman, a frase merece ser repensada.
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Comparando a democracia e as opções disponíveis, é possível destacar dois pontos positivos: (i) ela garante dignidade para todos, que podem se expressar nas urnas, independentemente de sua posição na sociedade; e (ii) traz benefícios a longo prazo, como um governo estável, prosperidade e paz. Esses dois elementos, juntos, fazem da democracia um regime incrível.[10]
Alas, a promessa democrática é um pouco diferente do que se vê na realidade. A expressão nas urnas nos parece menos importante diante de uma classe política oportunista e desonesta. Os benefícios a longo prazo parecem demorar para se concretizar e as desigualdades sociais não melhoram.[11]
Por que, então, defender tão cegamente a democracia?
Ela desempenha uma função negativa.[12] Quando pensamos nas vantagens dos demais regimes, as imaginamos em cenários ideais, em que tudo vai bem e impera a prosperidade econômica e social. Nesses casos, é bem possível que as alternativas à democracia sejam mais atraentes. Mas… e diante das catástrofes?
O grande trunfo da democracia é, talvez, sua capacidade de mudar de curso quando as coisas andam mal.[13] Governos podem ser substituídos com razoável rapidez, sem grandes prejuízos.[14] O regime é flexível e não precisa se desfazer para corrigir seus erros.
Além disso, ela, na sua forma contemporânea permite que nos protejamos contra as maiorias eventuais. Políticas populistas e desastrosas podem controladas institucionalmente, por meio da atuação do Legislativo ou do Judiciário.
É um argumento simples de ser testado: durante uma guerra, ou um período de má políticas públicas ou de despotismo puro e simples, preferimos estar em uma democracia ou em um regime autoritário e tecnocrata? A resposta nos parece evidente.
Em vez de pensarmos na democracia como a menos pior forma de governo, na linha do que sugeria Churchill, podemos pensá-la como a melhor forma de governo quando ele está em sua pior fase.[15]-[16]
Pensemos no mundo de hoje: fake news, desinformação, terrorismo, armas de destruição em massa e tecnologias perigosas são uma realidade. Como as democracias contemporâneas enfrentarão a pandemia do coronavírus (COVID-19) é a questão que nos é imposta e à qual devemos responder adequadamente.
Parecem haver dois caminhos: apostar no voluntarismo e na discricionariedade, ficando à mercê de flexibilização arbitrária de direitos ou insistir no reforço da legalidade constitucional, investindo no diálogo entre poderes e, quando este falhar, acreditar na jurisdição constitucional como espaço de controle dos excessos desastrosos da política.
Não podemos, agora, atacar a democracia. Pelo contrário, é preciso defendê-la como principal modelo político para a superação das nossas crises. Seu valor real se apresenta em momentos de polarização, nos quais ela demonstra, por meio de suas instituições, seus benefícios para manutenção da ordem e pacificação de conflitos.
Diante desse cenário, a democracia, devido à sua extraordinária capacidade de manter o status quo arriscando-se pouco, tem conseguido afastar ou adiar o pior cenário possível,[17] prolongando, dessa forma, a saúde dos regimes constitucionais tais como o nosso.
Por essa razão, decidir em tempos de crise é antes de tudo lembrar que, por mais extraordinária e trágica que seja a situação atual, a democracia é a melhor das apostas possíveis.
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Um apelo aos direitos fundamentais
Abandonemos, agora, a exceção, adotando, em seu lugar, o extraordinário. Não se trata de determinar o soberano fora da regularidade, como Carl Schmitt preceitua, mas de estabelecer medidas extraordinárias dentro de um regime jurídico-constitucional. Na primeira medidas atípicas são tomadas para a solução de problemas atípicos. No segundo, somos convidados a pensar de forma diferente os mecanismos já existentes para enfrentar aquilo que nos ameaça.
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A maior parte das propostas legislativas de combate à pandemia que prevê a suspensão, total ou parcial, da certas leis.[18] No entanto, em países continentais como o nosso, a criação de regras específicas é de uma dificuldade quase insuperável, para não dizer impossível. O coronavírus (COVID-19) está se espalhando em velocidades e sob formas diferentes em cada região. E, no nosso modelo federativo, Estados e Munícipios dispõem de pouca liberdade para legislar sobre o que mais importa nesse momento.
Atentos a isso, os pesquisadores Tom Ginsburg e Mila Verteeg analisaram as principais propostas de combate legislativo ao coronavírus (COVID-19). Enquanto diversos países adequaram a utilização de leis já existentes, incluindo nelas restrições temporárias e mais acentuadas a direitos fundamentais, outros optaram por criar legislações de emergência.[19]
A solução é perigosa. Introduzir leis emergenciais pode gerar a ocasião perfeita para, de médio a longo prazo, implementar medidas excepcionais e enfraquecer direitos fundamentais , valendo-se do momento de comoção para aprovar o que seria rejeitado em tempos normais .
Eis os motivos pelos quais é preciso ter cuidado com a análise de dados dos cidadãos.[20] O alerta nos foi dado, recentemente, por Byung Chul-Han. O fracasso europeu e o triunfo asiático, revelaram a eficiência implacável das sociedades autoritárias no combate ao coronavírus (COVID-19). Ele se deve, em muito à diluição ostensiva da intimidade de cada cidadão em face os mecanismos tecnológicos de controle de dados. Uma espécie de ditatura do big data.
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Devemos ser vigilantes e observar como o Judiciário e os demais Poderes vão se comportar sobre questão de dados no Brasil durante este período crítico. Se a urgência e a eficácia forem exclusivamente o norte, podemos inaugurar a proteção de dados no Brasil por meio de decisões que ignorem a esfera privada, a autonomia dos cidadãos e os direitos fundamentais, pautando-se no atendimento ao “interesse público emergencial”, ou seja lá o que isso signifique. E se medidas extraordinárias foram tomadas, que sejam por prazo determinado medido pela pandemia.
Nossa Constituição oferece apoio. Durante períodos de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio, ela não pode ser alterada (CF 60 §1º). O estado de calamidade pública, instituído pelo Decreto Legislativo 06/2020, também não o permite.
Nem por isso devemos perder de vista o cuidado com as medidas aprovadas e os seus impactos no sistema como um todo. A comoção não pode servir de convite à arbitrariedade.
Primo Levi, descrevendo o ambiente do lager, disse-nos que “por todos os lados circunda-nos a esquálida floresta de ferro retorcido. Nunca vimos, mas sentimos, ao redor, a presença má do arame farpado que nos segrega do mundo.”[21] Durante os momentos duros em que agora vivemos, a legislação criada para combater a crise não pode ser, para nós, a presença má do arame farpado, que nos separa do constitucionalismo e de suas proteções.
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Dito de outra forma, a constituição e as leis não são obstáculos no caminho da solução. Elas são, antes, o próprio caminho. Não o único caminho, mas certamente o melhor. Assim, o extraordinário nos exige pensar em formas constitucionais de superação da crise, a partir dos mecanismos que o nosso ordenamento já nos dá.
Lenio Streck, em brilhante ode à jurisdição constitucional, nos lembra desse fato preciso. As constituições são os remédios para as crises, e não há civilização fora da constitucionalidade: “sempre fazemos jurisdição constitucional. Uma lei só é lei se for constitucional. Logo, é um exercício pleno e efetivo de jurisdição constitucional.”[22]
Não pretendemos, com isso, nos posicionar de forma contrária à suspensão de um ou outro artigo de lei, tampouco à criação de novas regras que auxiliem no combate. Nosso apelo é este: não o façamos às custas dos direitos fundamentais.
Qual a nossa proposta? Apostar no constitucionalismo como solução. Momentos extraordinários dão novos contornos aos circunstâncias concretas. O importante é uma aplicarmos a lei, atentos às consequências práticas das decisões judiciais, mas com um só objetivo em mente: superar a crise sem abandonarmos os direitos fundamentais.
Os mecanismos de que dispomos são suficientes para promovermos uma adequada revisão dos contratos eventualmente onerados, bem como para proteger os consumidores de práticas abusivas. Tenhamos a audácia de utilizá-los, sob pena de criarmos um direito paralelo que, sob o pretexto de tutelar situações extraordinárias, acabará por criar um novo normal.[23]
Lá, o pedido da AGU era o de conferir interpretação conforme à Constituição aos artigos 14, 16, 17e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como às disposições do artigo 114, caput, in fine, e do § 14 Orçamentárias do ano de 2020, com o propósito de afastar a adequação orçamentária exigida nos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, no tocante à exigência de medidas de compensação quanto às políticas públicas destinadas aos programas de prevenção da disseminação do coronavírus e de proteção da população vulnerável atingida pela pandemia.
Trata-se não só de uma criativa releitura do material normativo já existente, como uma possibilidade de diálogo entre o Executivo e o Legislativo. Outra medida interessante e que merece destaque é a chamada “PEC do Orçamento de Guerra” (PEC 10/2020), cujo objetivo é impedir que os gastos emergenciais para enfrentamento do estado de calamidade pública sejam agregados ao Orçamento da União, evitando-se assim qualquer irresponsabilidade fiscal.
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(Algumas) conclusões
Socorremo-nos, novamente,[24] da peça de Robert Bolton para corroborar nossa tripla aposta na legalidade, na democracia e no constitucionalismo.
Trata-se d’ O homem que não vendeu a sua alma (A Man for All Seasons), que serviu de base para o clássico filme estrelado por Paul Scofield. A determinada altura, Thomas More é surpreendido em sua casa, durante o jantar, por um conhecido que, por ordens de Cromwell, o primeiro ministro de Henrique VIII, o visitara para flagrar sua recusa em aceitar o casamento do rei da Inglaterra com Ana Bolena. More, um dos santos mais mundanos e sagazes da Igreja Católica, logo percebe a trapaça e, com vigorosa calma britânica, convida seu hóspede inesperado a se retirar.
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O espião aquiesce afobado, revoltando os familiares de More. Seu genro, de temperamento ardente, recomenda prendê-lo antes que possa retornar aos auspícios da realeza destemperada. More se recusa. O coitado não violou nenhuma lei com essa visita. O marido da sua filha se revolta e afirma, com todas as letras, que o sogro seria capaz de dar até ao Diabo a cortesia da lei. More o provoca, dizendo que o jovem não hesitaria em acabar com todas as leis da Inglaterra para ir atrás do Diabo. Mas, isso seria arriscado demais. Pois, pergunta-lhe o autor da Utopia, nesse mundo sem lei, de cara a cara com o Diabo, “crês realmente que poderias resistir com bravura aos ventos que se levantariam contra ti?”
A crença fácil e excessiva na ideia de que momentos de crise exigem, necessariamente, leis novas e mais rigorosas estabelece um mau precedente: o de que a constituição não dá soluções às crises. A história, “mãe da verdade, depositária das ações, testemunha do passado e anúncio do presente” nos ensina o oposto: as constituições modernas nasceram das crises e são as filhas redentoras dos tempos imemoriais da barbárie.
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Notas:
[1] Memento a Sir Roger Scruton, falecido em 12 de janeiro de 2020. Cf. SCRUTON, Roger. The Uses of Pessimism and The Dangers of False Hope, Oxford: Oxford University Press, 2013.
[2] Por uma defesa do diálogo, ver: ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro, 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 10.5, p. 1373 e ss.
[3] A tarefa que se nos impõe é esta: construir um norte ao Judiciário de como se manter coerente e íntegro na linha tênue que existe entre proteger a Constituição e direitos fundamentais e não invadir as atribuições constitucionais dos demais poderes. Para tanto, a relação entre Poderes deve ser cada vez mais harmônica mediante uma postura de verdadeira humildade do Judiciário, em deferência às leis democraticamente produzidas e que possa construir pontes para estabelecer verdadeiro diálogo institucional com o Legislativo e Executivo na solução dos temas sensíveis da democracia brasileira.” Cf. ABBOUD, Georges e MENDES, Gilmar. Entre ativismo e humildade, em Correio Braziliense, 13.12.2018.
[4] Ver: STRECK, Lenio. Uma ode à Jurisdição constitucional, disponível no Estado da Arte.
[5] Sobre o assunto, remetemos o leitor ao livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Como as democracias morrem, Zahar, tradução Renato Aguiar), especialmente capítulos 06, 07 e 11.
[6] LOSANO, Mario. Sistema e estrutura no direito. v.2, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 187.
[7] CAMPOS, Ricardo. Prefácio à edição brasileira. In: STOLLEIS, Michael. O direito público na Alemanha: uma introdução à sua história, do século XVI ao XXI. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 17. Sobre a relação da democracia e lei ver ainda: Jeremy Waldron. A dignidade da legislac?a?o. Sa?o Paulo: Martins Fontes, 2003; Gilberto Morbach. Entre positivismo e interpretativismo, a terceira via de Waldron, Salvador: JVSpodium, 2019.
[8] LOSANO, Mario. Sistema e estrutura no direito. v.2, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 244.
[9] RUNCIMAN, David. How Democracy Ends, New York: Basic Groups, 2018, p. 165.
[10] Ibidem, p. 169-170.
[11] Ibidem, p. 170-171.
[12] Ibidem, p. 203.
[13] Ibidem, p. 172.
[14] Nas precisas palavras de Runciman: “(…) one reason democracy is able to cling on is that it retains its negative capacitites. Frustrations have their uses, however empty the spaces in which they rattle around. When people are thoroughly sick of some politicians they can still replace them with others. Terrible leaders – ‘bad emperors’, as they used to be called in China – can be dispatched relatively painlessly. Moribund political parties get carted off to the breakers’ yard eventually. A truly inattentive or cowed democracy may find that a bad emperor is able to worm himself into its institutions, making it hard to get rid of him. Erdogan has been around in Turkey for eighteen years now, and shows no sign of going away. But that will not happen with Trump. American democracy is neither cowed nor inattentive enough to allow him to stay in office beyond 2025. And he is very unlikely to last that long.” (How democracies die, cit., p. 213).
[15] Ibidem, p. 187.
[16] É verdade, contudo, que o autor alerta para o fato de que esse “atributo negativo” da democracia pode não mais ser suficiente para sua manutenção no Século XXI, pois, para que ela sobreviva e continue a florescer, deve conseguir entregar à população reconhecimentos pessoais e reais benefícios a todos. Cf., no ponto, How Democracy Ends, cit., p. 214.
[17] Ibidem, p. 209.
[18] Em especial o PL 1179/2020. Em que pese o PL contenha boas proposições, contem tantas outras tautológicas, bem como a suspensão de alguns dispositivos essenciais em momentos de crise. Além disso, propõe um marco temporal que por certo gerará insegurança jurídica quanto à aplicabilidade de seus dispositivos (30 de outubro ou a revogação do DL 06/2020).
[19] GINSBURG, Tom. e VERTEEG, Mila. States of Emergencies: Part I, em Harvard Law Review Blog, 17.04.2020. No Brasil, sobre o tema ver: SERRANO, Pedro. Autoritarismo e golpes na América Latina, São Paulo: Alameda, 2016.
[20] Com efeito, vale a menção de que o Conselho Federal da OAB, o PSDB e o PSB ingressaram com ações diretas de inconstitucionalidades (n°s 6387, 6388 e 6389, respectivamente) contra a Medida Provisória n° 954/2020, editada em 17.04.2020 e que determina o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras do do Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC e do Serviço Móvel Pessoal – SMP com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, para fins de auxiliar na produção estatística oficial para acompanhamento da crise decorrente do coronavírus.
[21] LEVI, Primo. É isto um homem?, Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 41.
[22] Ver: STRECK, Lenio. Uma ode à Jurisdição constitucional, disponível no Estado da Arte.
[23] É nesse exato mesmo sentido a manifestação de Tom Ginsburg e Mila Versteeg quanto às medidas tomadas para o combate da COVID-19 e suas eventuais inconstitucionalidades: “While these measures are widely supported by the publics in many countries, some scholars and activists have raised the alarm that these might lead to a deterioration of civil liberties and constitutional democracy long-term. Specifically, they worry that many leaders might not easily give up their newfound powers, and that civil liberty restrictions will become the new normal.” Tom Ginsburg e Mila Verteeg. Ibidem.
[24] ABBOUD, Georges. Cinco mitos sobre a Constituição Federal Brasileira de 1988, In: Revista dos Tribunais, n. 996, outubro de 2018, p. 27-51.
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