por Felipe Massao
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Nestes tempos de crise, descrevo sete objetos cotidianos relacionados por mim à covid-19. São objetos simples, mas que ganham significado especial hoje. Também escrevo a partir de minhas impressões, de alguém que vive em Londres, em uma Europa combalida pela onda de contaminação da covid-19, enquanto o Brasil aguarda para enfrentar problemas iguais, maiores ou menores. Escrevo semanas à frente, semanas estas que podem tornar a realidade muito mais dramática. Da Inglaterra, penso neste texto como uma carta escrita a você, leitor. Uma carta que não poderia deixar de ser pessoal, com impressões fragmentadas, e sem o benefício de grande distanciamento físico, emotivo, ou intelectual. Uma carta cujos pontos fracos talvez possam ser vistos também como os maiores motivos para a leitura, nestes tempos de tanta fragilidade em nós.
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A chave de casa. Meu chaveiro tem seis chaves: duas para abrir a porta de casa, uma para o escritorio, outra para a bicicleta, e duas que nem sei para que servem mais. Todas elas normais, penduradas em um gasto mosquetão de escalada. Tenho quase sempre o cuidado de deixá-las no mesmo lugar ao sair ou chegar em casa — no criado mudo, no bolso esquerdo do casaco. Neste rito busquei uma pequena paz cotidiana, um ritmo, na constante pressa para sair. Com o isolamento imposto pelo governo britânico, o “lockdown”, passei a sentir uma falta inútil de minhas chaves. Confinado em casa, com direito a uma hora diária para o exercicio físico e comprar comida, sei que tenho de sair sozinho, assim como sempre haverá gente em casa. Por isso deixei de trancar a porta. Não tenho receio de ladrão. Não vou longe. Chaves proprocionam momentos de transição. Em uma vida estanque, onde trabalho, moradia, e familia passam a se empilhar em um espaco único, já não há mais passagem para outro lugar. De sua discreta e utilidade essencial, só me sobrou a falta inútil do meu hábito de guardá-las, e da sensação de encostar no metal frio do chaveiro que me marcava a cada vez que chegava ou saía. Um pequeno hábito, dentre muitas rotinas, que deixou de me orientar pelos dias.
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A bicicleta. Troquei de bicicleta recentemente. Preta, leve, dezoito marchas, um bagageiro, e luzes. Tive sorte porque já não há mais loja aberta. Nenhuma, até porque ciclismo não é essencial em tempos de covid-19. Teria de me conformar com a minha antiga, caindo aos pedaços, cortesia herdada de uma amiga que voltou ao Brasil. Sempre fui de bicicleta ao trabalho. Todos os dias, em todas condições de tempo e temperatura. No confinamento, a bicicleta perdeu seu uso como meio de transporte. Ao invés disso, passou a ser meu meio de forçar braços, pernas, e outros músculos que passaram o resto do dia parados, molengas, dentro de casa. Oxford Circus, Regent’s park, Hampstead Heath, são algumas das minhas destinações ciclísticas. Ao passar vinte e três horas por dia na cela domiciliar, andar de bicicleta virou uma maneira única de gerar liberdade. Sinto isso no momento em que abro a porta e sinto o cheiro da rua. Uma busca por mais sanidade, que me faz pensar na hora de sol a que prisioneiros têm direito. Da França, leio que só se sai de casa com alguma autorização impressa e motivo justificado. Da Espanha, nem mesmo isso pois saídas apenas para comprar comida. São as tais das curvas de gráficos contando mortos ao longo do tempo que informam tais restrições. Sei também que se pedalar um pouco mais longe, poderei ser parado pela polícia, questionado, e multado. Alguma liberdade e muitas restrições. Negocio ambas de dia, de noite, a qualquer hora, com a certeza de que no caminho só encontrarei deliveries de comida, ambulâncias, e carros de polícia atravessando Londres. De resto, ruas desertas e carros parados. Outro dia passei de bicicleta pela Abbey Road. É a rua marcada pela tal foto dos Beatles, que a atravessam a pé em seu último álbum, na frente do estúdio de suas gravações finais. Este canto da cidade vivia invariavelmente apinhado de gente, repetindo os Beatles, e na busca da recordação turística. Desta vez fui eu quem tirou a tal da foto, em plena luz do dia, mas sem ninguém por perto. Se o fantasma de John Lennon passasse por ali naquele dia, só haveria eu como testemunha.
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O pão. Há muito tempo faço pão de fermentação natural. Com o confinamento, li que a busca por ingredientes e equipamentos para se fazer pão em casa explodiu, numa enorme procura por farinha, potes, e cestos. Houve um surto aqui, e como reflexo disto de repente vejo vizinhos e amigos trocando receitas, fotos de pães, e sempre orgulhosos de suas mais recentes fornadas. Por trás disto tudo, penso no ingrediente fundamental para qualquer padeiro que se preze: o tempo. Fazer pão em casa sempre foi uma tarefa ingrata em dias normais. Misturar, amassar, dar forma, tudo isso é muito rápido. Mas há também o tempo de espera entre estas ações. O tempo da fermentação leva horas, o que sempre gerou dificuldades para se encaixar na programação dos dias. Em tempos de confinamento pode faltar farinha. Mas tempo, haverá de sobra.
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O rolo de papel. Assim que a sombra da covid-19 começou a ameaçar Londres, assisti passivamente a uma corrida pelo ouro. Neste caso, a grande moeda de troca eram rolos de papel higiênico. Li que pessoas saiam dos supermercados com pacotes e mais pacotes deste precioso bem. Em um claro comportamento de manada, me deparei com um vizinho, dentro da nossa loja de conveniências de bairro. Ele saía radiante porque tinha encontrado papel higiênico naquela lojinha que, dizia ele, tinha escapado do radar de terceiros. Diante do pânico e das incertezas futuras, meu vizinho também buscava alguma sensação de segurança e conforto ao comprar aqueles rolos. Ele me confessou, aliviado, que comprava porque todo mundo comprava, então achou por bem comprar também, para se garantir. Responda sem se enrolar: quantos rolos sua casa precisa por mês? Eu certamente não tenho a menor ideia. Do meu banheiro, não consigo deixar de pensar que o papel higiênico faz parte agora de nossa comédia humana.
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A galinha. Li um dia destes sobre um inglesa que conseguiu comprar uma galinha. Foi nos últimos dias antes do governo ordenar o confinamento generalizado. Também foi por um triz que a galinha sobreviveu, porque estava enferma e fazia parte de um descarte de aves para o abatedouro. Segundo o relato de jornal, esta mulher cuidou da galinha, e como recompensa agora apanha ovos todos os dias. Fiquei com inveja. Ter estes ovos em mãos me pareceu gerar a sensação de autossuficiência, a solução contra a contaminação do vírus à espreita em qualquer canto, qualquer loja de comida ou supermercado. Também pensei no trabalho que teria em construir um galinheiro no quintal. Há raposas perambulando por todo o centro de Londres, e que certamente devorariam a galinha sem teto. Há ainda mais raposas pelas ruas com o confinamento, especialmente à noite. O reencontro londrino com a Natureza passa por galinhas, raposas, assim como por mais pássaros, fotos de poluição de cidades, antes e depois do confinamento, gráficos com a queda da emissão de carbono de carros e aviões, além de muita jardinagem. Bulbo, sementes, fertilizantes, e mudas sumiram de qualquer prateleira no país. Ao invés de férias com visita a outras paragens europeias, viva o hobby nacional de se cuidar do jardim, que com certeza será exercido durante toda esta primavera de restrições. Perdendo a passagem de avião de um voo cancelado, nesta mistura entre campo e cidade, minha inveja da inglesa com a galinha me faz pensar na possiblidade de uma vida mais tranquila e simples. Nos dias iniciais de confinamento, assisti vários bens básicos sumirem da prateleira. Ovos, inclusive. Eu me lembro do dono da mercearia orgulhoso, me oferecendo então uma caixa improvisada. Dentro, meia dúzia de ovos, estocados a duras penas, em troca da minha gratidão. Ovos já deixaram de faltar, parei de pensar na galinha, mas a memória da sensação de racionamento ficou.
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O trompete. É quinta-feira e o país inteiro combinou de sair de casa às vinte horas da noite. Da soleira da minha porta, sempre consciente em manter distância, vejo vizinhos de frente, de muro, à esquerda, e à direita. Em cada casa, todos eles, sem falta, por toda a rua. Começamos a aplaudir longamente, neste encontro marcado. Nossa homenagem vai para todos que combatem na linha de frente neste exato momento contra o vírus invisível. São médicos, enfermeiras, e muitos outros que foram realocados pelo governo para trabalhar nesta árdua e arriscada tarefa. Também conheço pessoas já aposentadas, médicas e enfermeiras, que não hesitaram em se realistar, apesar da idade, para poderem contribuir diretamente. Num enorme esforço coletivo, movido a sacrifícios, tentamos lidar com a crise. Sinto muita gratidão neste momento, e um enorme sentimento de pertencimento coletivo. Nunca tive tanto orgulho e consciência de trabalhar para o sistema nacional de saúde (NHS), um serviço público de alcance nacional, mobilizado contra a covid-19. Também sinto que somos todos iguais nestes dias. Cada um de nós que porventura ficar doente será igualmente amparado pelo que a saúde pública pode nos oferecer em termos de respiradores e leitos de UTI. Uma pura forma de solidariedade, sem privilégios de classe, religião, gênero, origem social ou dinheiro. Vi a foto do primeiro médico a morrer na Inglaterra, em seu trabalho contra a covid-19. Medicina em seu estado mais nobre. Chorei por ele, de origem hindu, de outra geração, e bastante distante de Londres, como se fosse um amigo muito próximo. Foi então em meio aos aplausos coletivos no começo da noite que reconheci as primeiras notas de um trompete. Como se fosse uma marcha militar, o trompete toca notas de uma melodia muito familiar. Em clima solene escutamos todos em silêncio. Mas eu sabia que nós coletivamente cantávamos dentro de nós: “Hey Jude, / don’t make it bad, / take a sad song / and make it better / Remember / to let it into your heart, / then you can start / to make it better.” Uma noite memorável da soleira da minha casa, pouco importando as notas desafinadas do trompete do meu vizinho.
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A carta. Recebi um envelope branco, tamanho padrão, pelo correio. Em sua discrição, só com meu endereço impresso, não suspeitei do seu conteúdo. Era uma carta do primeiro-ministro direto de 10 Downing Street. Por meio dela ele comunica urgência. E uma instrução muito simples: eu tenho que ficar em casa. Não devo encontrar amigos ou parentes que não morem comigo, na mesma casa. Uma mesma carta, endereçada a cada morador do Reino Unido. Saídas, apenas para o mais essencial como comprar comida, remédios, fazer exercício e ir ao médico. Além de mencionar a possibilidade de ser multado, o primeiro-ministro me explica que temos de desacelerar a covid-19. Sim, haverá impactos econômicos e o governo tomará medidas possíveis para ajudar a tocarmos a vida e termos comida à mesa. Além disso, ele tenta ser transparente, ao dizer que as coisas vão piorar antes de começarem a melhorar. Em outras palavras, ainda não chegamos ao pico de mortes pela covid-19. Ele também menciona o esforço da saúde pública, de milhares de médicos e enfermeiras retornando ao NHS, e de centenas de milhares de voluntários se oferecendo para ajudar os mais vulneráveis. O primeiro-ministro foi claro. Mas ele deixa de mencionar a posição inicial de seu governo, que errou em apostar numa estratégia de imunização coletiva, e perdeu tempo precioso para preparação e prevenção contra a covid-19. A experiência internacional mostra que quanto antes exames e isolamento forem feitos, mais eficaz será nossa resposta contra o vírus. Apesar de não mencionar seus erros, pelo menos agora o primeiro-ministro parece ter corrigido a direção de seu governo. Fala-se também em um gabinete unificado, o que me faz lembrar do gabinete de Churchill, durante a Segunda Guerra Mundial. Foi quando tanto governo como oposição trabalharam unificados por uma questão nacional. Não sei se isso vai acontecer, mas a mera alusão a sangue, suor e lágrimas já me diz muito, nesta que já é a crise econômica mais séria desde a grande depressão de 1929. Em certa medida, os esforços atuais também se parecem com os preparativos de guerra: racionamento, convocação em massa de voluntários, fortalecimento do Estado, e mobilização de empresas e instituições (McLaren, Rolls-Royce, Airbus, Dyson, universidades de Cambridge e Oxford), neste caso para a produção de equipamentos médico-hospitalares essenciais. Foi também neste clima, no mesmo dia em que recebi a carta do primeiro-ministro, que a Rainha Elizabeth II fez um raro pronunciamento pela TV, como Chefe de Estado à Nação. Do Castelo de Windsor, via transmissão da BBC, ela nos agradece por nossos esforços nestes tempos difíceis. Menciona que lidamos juntos contra esta doença, invocando o desafio histórico de nossa geração, e lembrando que nosso sucesso só poderá ser um sucesso coletivo e global. Determinação, disciplina, e companheirismo: voltaremos a ver nossos amigos de novo, voltaremos a ver nossos parentes de novo. Voltaremos a nos ver.
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