por José Reinaldo de Lima Lopes
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Era com essa pergunta que o saudoso professor Willard de Castro Villar começava suas aulas sobre jurisdição e competência no curso de processo civil da Faculdade de Direito da USP nos anos 70. Com seu delicioso sotaque paulista, herança da língua geral que se falava por aqui antes da normalização linguística imposta pelo Marquês de Pombal, muita gente não o levava tão a sério quanto merecia. Eu, que já havia começado a estagiar, aproveitava tudo o que podia. Ele nos dizia: “Vocês não veem um juiz na porta do Fórum João Mendes sentado atrás de uma escrivaninha oferecendo seus serviços, dizendo ‘vai um despejinho aí?’, ‘vai um divorcinho?’ ou coisas semelhantes.” Essa maneira divertida de ensinar resumia milênios de experiência jurídica para os jovens, ignorantes e presunçosos, que ele tentava “desasnar”.
Essa milenar técnica de separar o juiz do interesse das partes — de qualquer uma das partes — e de impedir que ele interferisse na vida alheia como um censor, foi decantada no direito romano, particularmente no Codex de Justiniano, no direito canônico, nomeadamente nas Decretais de Gregório IX, Livros I e II, e nas Ordenações Filipinas, Livros I e III em particular. Essa tradição jurídica, sobre a qual foi construída a civilização Ocidental, à qual o Brasil tem a pretensão de se ligar pelo fato de falar majoritariamente a língua portuguesa, não está muito prestigiada hoje em dia. Às vezes é a própria magistratura que a desprestigia. Pode não parecer, mas a definição da jurisdição, suas regras, o modo de compreendê-la e instituí-la — as limitações que impedem o juiz de sair prestando seus serviços quando não é chamado, ou, pior, de sair fazendo as funções de outros porque acha que não estão fazendo o que deveriam — é parte fundamental da teoria do direito. Mais ainda, é parte fundamental de uma vida civilizada em sociedades como as nossas. É dela que nascem todas as filosofias políticas, e está depositada no saber jurídico com séculos de debates e discussões. Nela se pode apreender a gramática e a semântica da política.[1]
A tradição jurídica impõe aos juízes um limite. Eles dispõem de um poder que outros cidadãos não têm: o de privá-los de sua liberdade e patrimônio. A esse poder correspondem, como contrapartida, diversas fronteiras. A primeira é essa que o saudoso professor Villar nos ensinava: toda jurisdição é provocada. O Judiciário, para manter o poder que a República lhe confere, deve ser inerte ou, nas palavras de Montesquieu, “de um certo modo nulo”, ou ainda como escreveram os federalistas, deve ser privado “da bolsa e da espada”. Ele garante direitos, individuais ou sociais. Impõem limites a quem tem e abusa do poder. É sua função mais típica e intransferível no regime constitucional.
A essa inércia associam-se a outras limitações. Em primeiro lugar, restrições à manifestação política pública (como os militares e os policiais, outros dois grupos que em troca do poder de portar armas, são limitados nos direitos políticos). Em troca de poder julgar, não podem sair falando o que lhes dá na telha sobre a política nacional. Juízes não deveriam ser tagarelas. Em troca de seu poder devem poupar-nos de suas opiniões fora dos autos do processo. E considerando o que são as redes sociais, deveriam cultivar certo pudor, compostura ou reserva nos tuítes e nas páginas “pessoais”, que de privadas têm pouco. Mesmo que outros agentes públicos tenham perdido a vergonha de nelas exibir sua ignorância e falta de educação. Se fazem uso das redes, deveriam aceitar que alguém lhes impugnasse o direito de julgá-lo uma vez que suas postagens revelassem abertamente seus preconceitos ou atitudes, como, por exemplo, gabar-se de descumprir a lei ou os decretos das autoridades sanitárias. Juristas de verdade deveriam corar, para dizer o menos, diante de certas coisas que se publicam.
Se tiver irresistível vocação para a vida pública exposta, interessado em ver um partido ou uma visão de mundo prevalecer no espaço público, que abandone a magistratura e se dedique à política partidária. E que o faça o quanto antes, antes de julgar alguém, antes de exercer ilegitimamente seu poder sobre seus desafetos pessoais ou políticos. E que os órgãos de administração da magistratura o façam por ele, caso lhe falte o discernimento pessoal, retirando-o da carreira antes que seja tarde demais. Visitas ao Presidente, ao Governador ou ao Prefeito? Só protocolares e cerimoniais. Manifestações sobre o estado da Nação? Nada disso, pois um dia as diversas e opostas partes que fazem parte da Nação podem precisar de suas sentenças. Festinhas com candidatos ou pré-candidatos em uma eleição na qual tem interesse? Vade retro. Ensinar nas redes sociais como burlar e desprezar medidas sanitárias legitimamente instituídas? Quando o CNJ o dispensar da carreira e lhe der sua sonhada liberdade natural. Essas coisas não depõem apenas contra seu decoro, mas terminam contaminando a instituição absolutamente fundamental para a vida social e que devemos aprender a prezar.
O que disseram os juízes da Suprema Corte Norte-Americana sobre a invasão do Capitólio em janeiro deste ano? Nada. Como assim? Isso mesmo, nada. Sabem que mais cedo ou mais tarde os atos acontecidos no interior de um prédio federal podem cair sobre sua mesa para decidir. Não podem formar opinião sobre o assunto sem ter evidências e argumentos de todas as partes. No Brasil vemos a sem-cerimônia com que os juízes se manifestam fora dos autos. Dão entrevistas à imprensa sobre casos em andamento, casos pendentes de decisão de seu próprio tribunal ou de colegas, no que me parece uma violação clara do art. 36, III, da Lei Orgânica da Magistratura: “É vedado ao magistrado manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.” Houve um que disse, antes de ver a prova dos autos de um processo que lhe seria destinado que achava a sentença do colega de primeira instância “irretocável”.[2] Precisaria mais para escandalizar-nos?
Em segundo lugar, como devem ser inertes, tampouco têm o direito de escolher quem julgam, o chamado princípio do juiz natural. Eles, que têm poder sobre nós, não podem selecionar a quem julgam. Nós, que podemos ser constrangidos contra nossa vontade a seguir a lei, não escolhemos quem nos julga. Esse princípio não é bobagem, não pode ser trocado por “eficiência punitiva”, por exemplo.
Em terceiro lugar, ao princípio do juiz natural junta-se outro: o do juiz imparcial. Toda a tradição Ocidental o afirmou, e alguns acham mesmo que se trata de um componente da própria razão de ser de haver juízes. Não se pode entender o conceito de juiz sem pressupor que ele seja capaz de se distanciar das partes, sem que ele seja capaz de realizar seu julgamento apenas depois de ouvir igualmente as pretensões, argumentos e provas de todos os interessados. Que se ouça sempre a parte contrária (audiatur et altera pars). Em geral, o direito positivo dos países civilizados incorpora esse conceito por meio de proibições: já se sabe de antemão que um pai tende a favorecer seu filho, ou melhor, que um pai tem mesmo o dever de proteger seu filho. O mesmo vale para os amigos, que têm entre si deveres e direitos para além daqueles que têm para com quaisquer outras pessoas.
Mas é possível que o simples status de alguém não revele de pronto sua parcialidade. Ela se revela antes nas suas atitudes, no seu comportamento e na condução do processo. Aqui também a tradição Ocidental, da qual gostaríamos de participar, acumula uma longa história. A qualquer momento pode uma das partes alegar a suspeição do juiz. É princípio de justiça natural, quer dizer, qualquer um que tem a ideia do que é justiça tem, automaticamente, a ideia de que o juiz deve ser imparcial. Isso era tão importante que no período histórico que teve a má fama de se chamar “absolutismo” aceitava-se sempre a queixa contra o juiz parcial. Em Portugal, onde se consideravam os desembargadores “parte do corpo do próprio Rei”, os doutrinadores diziam que mesmo eles, no tribunal mais alto do Reino, poderiam ser impugnados pelas partes e afastados.[3]
Quem nos últimos tempos insistiu que esses princípios não podem ser tratados levianamente foi Ronald Dworkin, para quem há uma diferença entre princípios que garantem direitos aos cidadãos individualmente considerados, e “princípios” que estabelecem metas desejáveis a serem atingidas no agregado social. E não se deve confundir o “princípio da eficiência punitiva”, por exemplo, com o “princípio do juiz natural”. A palavra é igual, mas a substância da coisa é diferente. No primeiro caso propõe-se uma finalidade a ser cumprida pelo agregado do aparelho estatal. No segundo, define-se um direito de qualquer um, independente do resultado do processo. Como explicou com clareza John Rawls décadas atrás: uma coisa é ser a favor de que os crimes sejam punidos, outra coisa completamente diferente é ser a favor de punir uma pessoa em particular.[4]
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Esses princípios de organização da vida civil são deixados nas mãos dos juristas e dos profissionais do direito, os quais hoje provocam perplexidades no Brasil — no resto do mundo pelo que vem acontecendo no Brasil —, embora sua compreensão seja relativamente fácil, natural diriam os juristas clássicos.
Para quem observa a vida brasileira dos últimos anos é patente que são às vezes os próprios juízes a comprometer o poder a que pertencem com algumas atitudes que começam a ser naturalizadas, e tanto interferem na imparcialidade que deveria ser a característica mais marcante de seu trabalho. Agradando ou desagradando as multidões, as facções e as maiorias episódicas, como disseram os autores clássicos da teoria política, o prestígio e a legitimidade dos tribunais depende de seu apego às leis, à constituição e suas garantias de direitos, e aos princípios mais fundamentais da organização da vida civil. Os tribunais são a mais importante salvaguarda de que dispomos, o que é cada vez mais evidente nos dias que correm. Todos os juristas têm o dever de apoiar sua sobrevivência. Não podem enganar-se, não podem trocar o respeito à lei por conseqüências futuras incertas, pelas promessas vãs que os prestidigitadores de índices financeiros — venham eles de onde vierem — lançam em nossas faces como truques e despistes para o que realmente querem fazer, para distrair-nos com um coelho tirado da cartola, enquanto surrupiam nossos direitos com a “mão invisível”.
Isso inclui outra coisa a ser lembrada no Brasil contemporâneo. Assim como um juiz não se senta na praça do Fórum João Mendes oferecendo “um despejinho” ou “um divorcinho” também não deveria perder muito tempo com citação de trivialidades bem conhecidas de todos. “Vai uma liçãozinha aí de primeiras linhas de processo”? “Quer saber a diferença entre uma petição inicial e um recurso extraordinário?” Embora hoje jornalistas auscultadores “dos sentimentos do mercado” se arvorem em intérpretes da Constituição, o juiz não deveria ser quem lhes explica o direito que não conhecem. Não está ali para ministrar aulas para iniciantes. Não deveria dar entrevistas para explicar suas decisões, uma vez que isso pode ser feito por professores e profissionais do direito.
E não deve ficar procurando os meios de comunicação para se explicar. Para que gastar páginas e páginas explicando o que é dignidade da pessoa humana a cada vez que o tema apareça em suas decisões? Para quê fazer isso com citações de manuais de divulgação, muitas vezes de qualidade acadêmica apenas sofrível? Para que dizer em páginas e páginas o que todos sabemos, como por exemplo que a dignidade foi incorporada como fundamento da República no art. 1o, III da Constituição Federal? Para que proferir votos e sentenças em estilo oracular?
Lembra-me uma expressão atribuída a São Bernardo de Claraval quando indagado o que esperava de um papa: “Os santos nos santifiquem”, disse ele, “os sábios nos instruam, mas os prudentes nos governem.” Tribunais e juízes fazem parte de nosso governo republicano. Menos ornamentos e mais diretivas, menos tagarelices fora dos autos e, nos autos, menos trivialidades.
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Notas:
[1] Tomo a expressão emprestada de Pietro Costa, Iurisdictio. Milano: Giuffrè, 2002.
[2] Entrevista de Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz ao jornal “O Estado de São Paulo” em 7 de agosto de 2017.
[3] Cf. D. Camacho Aboim, Tractatus de recusationibus omnium judicium officialumque. Coimbra: J. Antunes, 1699.L. II, Cap. 2, p. 24.
[4] Cf. J. Rawls. Two concepts of rules. The Philosophical Review, 64 (1), 1955, p. 3-32.