Camille Paglia: Educação superior, gênero e liberdade de expressão

Em entrevista exclusiva ao historiador Gunter Axt, a ensaísta e crítica cultural Camille Paglia comenta o recente boicote sofrido na Universidade da Filadélfia, o papel obscuro das mídias sociais e problematiza o posicionamento dos Estudos de gênero.
(Foto: Michael Wirtz)

por Gunter Axt

Em 9 de abril de 2019, a reconhecida historiadora cultural Camille Paglia, autora de oito livros – alguns icônicos em muitos países, como Personas Sexuais –, estava pronta para falar de Mick Jagger e David Bowie em uma conferência intitulada “Imagens Ambíguas: Dualidade Sexual e Multiplicidade Sexual na Arte Ocidental”, na Universidade das Artes da Filadélfia, quando manifestantes a interromperam. Antes da palestra, um grupo protestava contra comentários sobre agressão sexual e transgenerismo, divulgados nas mídias sociais, que teriam sido feitos há anos por Camille em entrevistas diversas. Cerca de 40 minutos depois do início da palestra, um manifestante acionou o alarme de incêndio no corredor, causando o cancelamento do evento, pois todos os 17 andares do prédio da universidade tiveram de ser evacuados. No dia seguinte, o presidente da UArts, David Yager, publicou, via e-mail, uma contundente declaração em defesa da liberdade de expressão: “limitar o leque de vozes na sociedade corrói nossa democracia. As universidades, além disso, estão no centro da noção revolucionária de liberdade de expressão: promover a livre troca de ideias é parte da razão central de sua existência.” E concluiu, enfático: “agora não, não na UArts!”. Os ativistas, rejeitando a declaração como “ignorante”, promoveram uma petição online exigindo a demissão de Camille da universidade, onde ela leciona desde 1984, e sua substituição por uma “pessoa queer e de cor”.

A resposta do presidente poderia ser considerada óbvia: em defesa de um membro do corpo docente sênior (com relevante produção acadêmica, de repercussão internacional), da autonomia para decidir sobre o currículo e da liberdade de expressão. Mas a verdade é que provocou forte impressão. Porque os Estados Unidos vêm sendo sacudidos por episódios cujo desfecho tem sido frequentemente o oposto.

Como na Universidade de Yale, em novembro de 2015, quando por duas horas um grupo de estudantes cercou o respeitado sociólogo Nicholas Christakis, o Mestre do Silliman College, com gritos e explosões de choro. A fúria foi desencadeada porque sua esposa, uma psicóloga infantil, sugeriu em um e-mail que os alunos de graduação poderiam escolher seus trajes de Halloween sem a aprovação do “escritório de diversidade” – como se no Brasil precisássemos de um departamento para regular o carnaval. Alguns interpelaram Christakis: “Não importa se você concorda ou não. Não é um debate!” Uma garota gritou: “Você é nojento!” As imagens de vídeo são perturbadoras, pois vemos Christakis acreditando na força do diálogo, cercado por estudantes infantis e desesperados – representação perfeita do que é chamado de “geração floco de neve”: uma turma ultrassensível que explode em lágrimas diante de qualquer frustração. Nenhum aluno foi repreendido por insubordinação, e Yale até mesmo concedeu prêmios a alguns, depois que o presidente, Peter Salovey, agradeceu àqueles que invadiram o gramado de sua casa à noite, abraçando a ideia de que tinha algo a aprender com eles. Diante da capitulação adulta, o assédio e a intimidação aos Christakises continuou por meses. O casal finalmente renunciou e deixou a residência do Mestre, embora Christakis tenha continuado com sua posição na faculdade de Yale. Sua esposa, porém, não ensinaria mais lá.

Em maio de 2017, um grupo de estudantes invadiu a aula de biologia do popular professor Bret Weinstein, um progressista de esquerda de longa data, no Evergreen State College, e o chamou de “racista” por ter recusado o decreto do diretor de orientação multicultural para todos os professores brancos suspenderem seus cursos e permanecer fora do campus em um “Dia da Ausência”, uma forma de empatia por não-brancos. Weinstein chamou o banimento de brancos do campus de um “ato de opressão por si mesmo”, por causa de seu direcionamento da cor da pele. Weinstein e sua esposa bióloga, Heather Heying, finalmente renunciaram à Evergreen, depois de entrarem com uma ação judicial alegando que a faculdade “não protegeu seus funcionários de repetidas hostilidades verbais e escritas provocativas e corrosivas baseadas em raça, bem como de ameaças de violência física”.

O psicólogo canadense Jordan Peterson também teve aulas de pós-graduação e palestras interrompidas, como em março de 2017 na Universidade McMaster, e, um ano depois, na Queen’s University. Ao discordar de certos exageros do politicamente correto e da intervenção do Estado no modo como as pessoas podem falar ou escrever, Peterson foi acusado de “transfobia”. Recentemente, em um episódio nebuloso, a Universidade de Cambridge cancelou um convite a Peterson para um período como professor visitante, sem dar uma razão.

Em maio deste ano, a Harvard College demitiu o professor Ronald Sullivan e sua esposa, Stephanie Robinson, de seus cargos de dez anos como co-reitores residentes da Winthrop House porque Sullivan decidiu se juntar à equipe de defesa do controverso produtor de filmes Harvey Weinstein, acusado de múltiplos estupros e assédios e pivô do movimento #MeToo. Embora Weinstein não tenha sequer sido julgado e o direito a um advogado de defesa seja uma garantia constitucional para todo réu, os estudantes argumentaram que não se sentiam “seguros” na Winthrop House com Sullivan, diretor do Instituto de Justiça Criminal da Harvard Law – que, aliás, já havia representado clientes impopulares no passado, como assassinos em série e até acusados de terrorismo, sem nunca provocar qualquer sentimento de insegurança entre os estudantes. Mas Harvard capitulou, abrindo um precedente perigoso que coloca a presunção de inocência em segundo plano, tornando o advogado culpado apenas por defender um acusado impopular.

Na entrevista que segue, conversei com Camille Paglia sobre o recente episódio na UArts, bem como sobre o contexto de outros incidentes em campus na América do Norte.

Sobre o que exatamente era sua palestra, e quais assuntos você não conseguiu abordar por causa da interrupção? O Sunday Times de Londres mencionou que você estava prestes a falar sobre Mick Jagger e David Bowie.

Camille Paglia – No outono passado, o diretor da Escola de Estudos de Crítica (onde meus cursos estão listados) me pediu para dar uma palestra em sua nova série de conferências. Então eu escolhi o assunto de gênero, porque o meu curso “Imagens de Gênero na Mídia”, que eu ministrei pela 29ª vez na primavera passada, foi o primeiro curso sobre gênero já oferecido pela Universidade das Artes. Começou em 1986 como “Mulheres e Papeis Sexuais”, dois anos depois que eu cheguei para ensinar aqui. Naquele primeiro semestre, iniciei uma discussão com os estudantes sobre o tema feminista de assédio sexual. Minha turma desenvolveu diretrizes moderadas apropriadas para uma faculdade de artes e eu apresentei a proposta completa à administração. Foi a primeira vez que o assédio sexual foi levantado como uma questão pública neste campus.

Minha palestra de 9 de abril, “Imagens Ambíguas: Dualidade Sexual e Multiplicidade Sexual na Arte Ocidental”, era um comentário sobre uma série de 50 imagens sexualmente ambíguas ou relacionadas a gênero tiradas de toda a história da arte, começando com a Idade da Pedra e se movendo cronologicamente, através do antigo Egito, da Mesopotâmia e da era greco-romana até a cultura popular moderna. Entre as imagens pop estavam Marlene Dietrich em seu smoking masculino e de cartola no Marrocos; Katharine Hepburn em seus terninhos e calças jeans; as drags e trans superstars de Andy Warhol, Jackie Curtis e Candy Darling; Mick Jagger e David Bowie em seus “vestidos masculinos” de Michael Fish; a sessão de fotos de Jim Morrison como um Antinoo de cabelos compridos e peito nu; e seis fotos espetaculares de Grace Jones vivendo personas sexuais deslumbrantemente diferentes, de femme fatal a açougueira.

As imagens terminariam com um pôster de filme de Raquel Welch como a transexual Myra Breckinridge de Gore Vidal no filme baseado em seu romance best-seller de 1968 (que vendeu mais de dois milhões de cópias em um mês). Myra Breckinridge foi relançado em maio, depois de estar fora de catálogo nos EUA por mais de 30 anos. A editora me pediu para escrever a introdução. Em 1991, Vidal disse à revista New York para sua reportagem de capa sobre mim (“Woman Warrior”) que meu primeiro livro, Sexual Personae, “soa como Myra Breckinridge em um rolo. Eu não tenho elogios maiores”. Vidal estava absolutamente correto: a voz do livro é uma construção transexual, expressando minha alienação vitalícia do sistema de gênero. Após sua publicação, eu chamei Sexual Personae (718 páginas) “a maior mudança de sexo na história”.

Daí o absurdo de um protesto transgênero contra um professor e autor que se descreve como transgênero – e que foi a única pessoa abertamente gay (estudante ou professor) na Pós-Graduação de Yale durante os anos que estive lá (1968-72). Todo mundo estava em segurança no armário. Minha tese de doutorado, Personas Sexuais: Categorias do Andrógino, foi a única dissertação sobre sexo em toda a pós-graduação – numa época em que essa questão não era levada a sério e tratar dela era profissionalmente arriscado.

Não há papa e nenhuma doutrina oficial nem no feminismo nem no transgenerismo. Qualquer feminista ou transexual é completamente livre para assumir qualquer posição sobre qualquer assunto. Nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos tem o direito de impor a conformidade em assuntos controversos, especialmente quando um movimento ainda está em suas fases iniciais. Assumir que a ideologia feminista ou transgênero já está congelada e que o menor desvio dela é heresia é uma profunda estupidez. O pensamento contemporâneo progressista deve estar sempre em fluxo livre – e especialmente no campo do gênero, sobre cuja fluidez venho escrevendo há mais de meio século.

Minha palestra terminou abruptamente enquanto ainda estávamos na Antiguidade: minha imagem da estátua de culto estranhamente mumiforme de Diana de Éfeso acabara de aparecer na tela. Antecedendo, havia duas magníficas esculturas do amante do imperador Adriano, Antínoo, assim como a ambígua “Hermafrodita Adormecida” no Louvre. Era bastante óbvio que os manifestantes (rindo e tagarelando como crianças de colégio inquietas nas filas superiores) ficaram desapontados que minha palestra foi realmente pró-transgênero e que não havia nada sobre o que vaiar. Em vez de admitir para si mesmos que haviam sido grosseiramente mal informados sobre mim e meu trabalho, um co-conspirador acionou o alarme de incêndio no corredor – um testemunho do desespero narcisista dos manifestantes em se tornarem rebeldes. Essa intervenção grosseira foi um ato ilegal que colocou centenas de ocupantes estudantis do prédio de 17 andares em perigo, pois todos foram forçados a sair rapidamente pelos estreitos degraus até as movimentadas ruas da cidade e a aguardar até os caminhões de bombeiros chegarem. Somente quando os fiscais de incêndio inspecionavam todos os andares, foi permitido que as pessoas voltassem a entrar no prédio para retornar às aulas ou aos estúdios de arte. (Eu mesmo fui escoltada pelos agentes de segurança do campus para o camarim do auditório, onde durante uma hora presenciei os principais funcionários da universidade enfrentando heroicamente essa ameaça emergencial à segurança pública.)

Esse episódio escandaloso, que privou outros estudantes pagantes de seu direito de adquirir amplo conhecimento histórico, foi um ataque a toda a tradição ocidental universitária. Quando o alarme de incêndio disparou, os manifestantes nas filas superiores levantaram-se e gritaram como maníacos, apontando para o palco e amaldiçoando-me. Seu comportamento era excessivo e anormal por qualquer padrão psicológico. Enquanto o auditório degenerava em caos, o que me veio à mente foi uma cena brutal no filme Julia (estrelado por Jane Fonda e Vanessa Redgrave), de 1977, onde uma horda de jovens nazistas rindo ataca uma escola de medicina em Viena. Seja o que for aquilo que os manifestantes pensaram que estavam alcançando, o objetivo foi minado por seu comportamento e ações incivilizadas. Mostrando indiferença e desrespeito à exibição pública de artefatos clássicos (como o requintado Hermes de Praxiteles ou a majestosa estátua verde-diorita do entronado faraó Quéfren, de Gize), eles se alinharam com as forças da barbárie. E seu recurso primitivo ao reinado da turba foi um fiasco político na medida em que (através da cobertura da mídia nacional) já enfraqueceu a esquerda e inevitavelmente fortalecerá a oposição conservadora, que se manifestará nas próximas eleições presidenciais nos EUA.

Apenas três dias antes da minha palestra, o ex-presidente Barack Obama fez um discurso em Berlim, onde expressou “preocupação” sobre “um certo tipo de rigidez” entre os progressistas nos EUA: “Começamos a criar o que pode ser chamado de esquadrão circular de tiro, onde se começa a atirar em seus aliados, porque um deles está se afastando da pureza sobre os problemas”. Foi exatamente o que aconteceu no incidente em minha universidade: por seu extremismo auto-indulgente e insensível desrespeito pelos direitos dos outros, incluindo seus próprios pares, os manifestantes causaram danos profundos a si mesmos e à sua própria causa progressista.

Você se declarou transgênero. Por que você foi acusada agora de transfobia?

Camille Paglia – Em primeiro lugar, a transfobia, como a homofobia, é uma condição psicológica. Este termo clínico foi erroneamente apropriado e distorcido por ideólogos políticos, que o injetaram com um moralismo de cruzada. A fobia é um medo ou obsessão compulsiva, que tudo consome, às vezes produzida por uma atração inconsciente para aquilo que é temido. Simplesmente expressar uma crítica racional ao ativismo transgênero ou gay não torna ninguém transfóbico ou homofóbico.

Sim, ao longos dos últimos anos, eu tenho sido publicamente crítica a vários princípios do atual ativismo transgênero, e eu encorajo fortemente outros dissidentes gays e transexuais a se manifestarem. O silêncio sobre essas questões urgentes não ajuda ninguém além da extrema direita, para a qual grande parte dos eleitores é levada quando a esquerda se torna tão consumida por sua própria ideologia que reivindica poderes repressivos e ditatoriais sobre a vida pública e privada.

Em primeiro lugar, oponho-me categoricamente ao uso de bloqueadores da puberdade em crianças, o que considero uma violação dos direitos humanos. As crianças não estão equipadas para fazer uma escolha informada sobre questões médicas e devem confiar na sabedoria e prudência dos adultos. Os efeitos no longo prazo dos bloqueadores da puberdade são desconhecidos. Por que qualquer sociedade ética realizaria experimentos médicos com crianças? Eu prevejo que o futuro olhará para este momento que vivemos com incredulidade.

Eu me identifico fortemente com essa questão porque eu mesma tenho vivido com uma massiva disforia de gênero desde a infância – tanto quanto me lembro. É de fato a fonte primária da minha perspectiva e é a principal motivação do meu trabalho. Eu sempre contemplei a vida humana do lado de fora, como um visitante de uma galáxia alienígena. Ao longo das décadas, descrevi repetidamente meus extravagantes trajes masculinos de Halloween, algo inédito para uma menina pequena nos EUA conservadores e conformistas da década de 1950: Robin Hood (de uma revista em quadrinhos); o toureiro de Carmen (de um livro de ópera); um soldado romano (modelado a partir dos atormentadores de Jesus na Via Crucies); Napoleão Bonaparte (de um anúncio de brandy na revista Time); e Hamlet (de uma revista em quadrinhos ilustrada). Uma foto minha aos oito anos em traje completo como Napoleão aparece no meu livro mais recente, Provocations.

Identificar-me como lésbica na adolescência parecia oferecer uma solução para meu desajustamento social, mas nunca fui uma lésbica particularmente boa ou de sucesso. Entre outras coisas, as lésbicas raramente gostaram de mim ou me aprovaram – acho que provavelmente é porque eu lhes pareço muito um garoto adolescente rude e barulhento! Muitas vezes pensei que as coisas seriam muito mais simples se eu fosse simplesmente um homem gay, dada a frequência com que encontro interesses profundamente compartilhados em arte, beleza e filmes clássicos de Hollywood com homens gays espirituosos e cultos de todo o mundo.

Digo tudo isso para enfatizar o quão profundamente e pessoalmente tomo a questão dos bloqueadores da puberdade, porque não há dúvida alguma de que eu era obviamente uma excelente candidata para essa intervenção médica desde os meus primeiros anos. Eu tinha zero identificação com qualquer coisa convencionalmente feminina – começando com bonecas, que eram constantemente dadas a mim, mas que eu detestava. Eu queria espadas! (Eu comprei minha primeira espada real em uma loja de sucata rural quando eu tinha 12 anos.) Se eu tivesse ouvido o menor rumor de que existiam operações de mudança de sexo, eu teria ficado obcecada com a ideia de que seria realmente um menino e que a cirurgia poderia recuperar e restaurar meu verdadeiro eu. De fato, eu acho que teria permanecido vulnerável a essa ideia fixa até meus 20 e poucos anos, quando eu já estava dando aulas no meu primeiro emprego no Bennington College.

O que baniu o fascínio dessa transformação física foi a minha realização e externalização do meu eu verdadeiro em outra forma: o gigantesco manuscrito de Sexual Personae (originalmente com mais de 1.700 páginas), no qual projetei todas as minhas reflexões e insatisfações com o gênero. Nesse livro, sustento que nosso verdadeiro opressor não é a sociedade, mas a natureza, que em sua ecologia fascista nos impôs o gênero biológico no nascimento. A mudança de sexo é literalmente impossível: cada célula de nosso corpo, exceto o sangue, permanece codificada com nosso gênero biológico de nascimento para a vida. No entanto, eu me alio à grande tradição dissidente de Marquês de Sade, Baudelaire e Oscar Wilde, que exigem e celebram o desafio à natureza – como o Capitão Ahab de Melville agitando seu punho no céu tempestuoso. De encontro à natureza: esse é o argumento do meu livro, e continua sendo minha definição de arte.

Por isso, estou muito preocupada com a pressa de tantos jovens questionadores de gênero em relação aos hormônios e à cirurgia. Por que é necessário solidificar e literalizar a identidade mercurial e em constante evolução no frágil envelope da carne –  que todas as principais religiões do mundo descreveram corretamente como uma ilusão destinada a decair e a desaparecer. Ninguém está completamente satisfeito com seu corpo, o que inevitavelmente nos trairá de qualquer maneira, à medida que deslizamos em direção à morte. Por que essa ansiedade entre os jovens pela servidão à indústria farmacêutica voraz? Por que fazer mudanças irreversíveis no corpo quando não há nada no corpo que realmente expresse nossa identidade mais profunda e verdadeira?

Os jovens da minha geração rebelde dos anos 1960 libertaram a sexualidade da censura e do controle institucional, mas, mais importante, procuraram uma expansão e um refinamento da consciência. Em Provocations, minha mensagem para os jovens que questionam o gênero é: “Mantenha-se fluido! Fique livre!” Liberdade é o meu valor final. O filósofo pré-socrático Heráclito disse: “Todas as coisas fluem”. Uma verdadeira revolução no gênero começa na mente.

A imaginação é muito maior que o corpo. Um dos meus momentos favoritos no cinema ocorre em Blow-Up de Michelangelo Antonioni (1966), onde um fotógrafo desiludido (David Hemmings) encontra uma modelo glamorosa (Veruschka) em uma festa regada a drogas em Londres. “Eu pensei que você estava indo para Paris”, diz ele. Ela responde: “Estou em Paris”.

Como você se sente ao se dirigir aos alunos como eles preferem?

Camille Paglia – Dentre as mentiras grotescas que circularam sobre mim nas redes sociais, espalhadas por ativistas transgêneros sem escrúpulos no mês anterior à minha conferência pública, está que me recusei a usar os pronomes preferidos de um aluno na sala de aula e insultei essa pessoa diante de outros alunos declarando que o único pronome que eu usaria seria “isso” – como se o aluno fosse sub-humano.

Essa fabricação alucinatória expõe a amoralidade desavergonhada de muitos ativistas políticos de hoje, que são tão viciados em sua auto-imagem messiânica que usam qualquer ferramenta, incluindo o assassinato de personagens, para destruir seus oponentes. Esses ideólogos fanáticos são os inimigos da democracia.

A questão dos pronomes transgêneros nunca ocorreu em nenhuma das minhas aulas e certamente não no meu curso regular ” Imagens de Gênero na Mídia”, que é conduzido como uma grande série de palestras , consistindo de material puramente histórico e cultural. Minha posição de longa data sobre essa questão é que usar os pronomes preferidos de um indivíduo é uma questão básica de cortesia humana. Não o fazer seria desnecessariamente grosseiro e certamente inaceitável em uma situação de sala de aula com outros estudantes presentes.

No entanto, eu me oponho fortemente a qualquer intrusão do governo no controle da língua, a menos que essa linguagem envolva ameaça física ou perigo público. Minha posição é exatamente igual à do principal intelectual canadense, Jordan Peterson, que enfatiza a liberdade do indivíduo durante todo o seu trabalho. Peterson também declarou publicamente que evidentemente usaria os pronomes preferidos como uma simples cortesia, mas ele e eu concordamos que o governo não tem nenhum direito de monitorar a linguagem ou de obrigar a conformidade. Entregar nossa autonomia à vigilância punitiva de uma burocracia inchada convida e, afinal, produz o totalitarismo.

Meus princípios de gênero pertencem à minha filosofia libertária mais geral: eu defendo que todo indivíduo possui direitos totais sobre sua identidade, assim como sobre seu corpo, que podem ser alterados ou modificados à vontade. Eu apoio fortemente a criação de uma categoria “X” nos passaportes e carteiras de identidade: na minha opinião, o governo não tem autoridade, nem precisa sequer perguntar, sobre gênero, que deve permanecer completamente dentro do domínio da escolha pessoal.

O direito fundamental do indivíduo ao seu corpo também se estende ao aborto. Embora eu aceite que o feto em desenvolvimento é de fato uma pessoa (como sustentado por religiosos tradicionalistas), nego que o Estado tenha qualquer direito de intervir nas escolhas de uma mulher sobre as operações internas de seu próprio corpo, que foram formadas pela natureza e apenas por ela. Assim, na minha opinião, tanto o feminismo acadêmico quanto o transgenerismo atual erraram ao apagar a biologia de seu sistema teórico. A natureza é maior que a sociedade e é a fonte última do nosso poder como seres vivos. Uma mulher que termina sua própria gravidez está atuando como representante da própria natureza, impiedosa, cujo plano mestre, ao longo de muitos milênios, cobriu a terra com seus sacrifícios de sangue.

Também intrínseco à minha filosofia libertária é minha exigência de que o Estado deve tratar todos os indivíduos exatamente da mesma maneira. Essa é a verdadeira igualdade perante a lei. Não deve haver proteções especiais para nenhum grupo – nenhuma protração condescendente do status histórico de “vítima”. Por isso, oponho-me às categorias generalizadas de “discurso de ódio” e “crimes de ódio”, que considero totalmente reacionárias. Nunca devemos permitir que o Estado investigue o pensamento ou motivação de qualquer cidadão (exceto na fase de condenação de um julgamento, após a condenação por um crime). Tanto o pensamento quanto a linguagem devem ser protegidos de forma vigilante contra a invasão do Estado.

Eu tenho expressado minhas objeções à legislação de “discursos de ódio” e “crimes de ódio” há décadas, e minha sombria profecia sobre a desordem que eles desencadearam foi abundantemente confirmada. A sociedade ocidental tem sido constantemente consumida pelo politicamente correto, que se espalhou através de burocracias inchadas e parasitas em todas as áreas da vida e agora ameaça a grande tradição universitária em si, cujas raízes estavam na erudição medieval, tanto cristã quanto muçulmana.

Você também endereçou críticas ao movimento #MeToo. Em uma entrevista, você comentou como esse movimento foi empanado pela defesa organizada por Judith Butler para sua amiga Avital Ronell, uma professora acusada por um estudante de sexo masculino de assédio sexual. (A Universidade de Nova York posteriormente suspendeu Ronell por um ano sem pagamento.) Até que ponto suas críticas ao #MeToo ressoaram entre os manifestantes da UArts?

Camille Paglia – A intervenção manipulativa de Judith Butler no caso Avital Ronell surpreendeu e desanimou muitos de seus admiradores, que não haviam percebido até que ponto Butler é um produto e símbolo da elite acadêmica internacional. Butler nunca desafiou o sistema acadêmico, mas se adaptou suavemente a ele, desde o momento em que se transferiu da faculdade de Bennington (onde eu lecionava durante minha fase feminista mais inflamatória e conflituosa), na década de 1970, para a Universidade de Yale, onde o pós-estruturalismo era a nova oportunidade quente para jovens carreiristas ambiciosos. Butler nunca fez meus cursos em Bennington (uma faculdade muito pequena na zona rural de Vermont), mas eu a conhecia, bem como seu círculo social, e, portanto, estou bem ciente de sua trajetória.

Em relação aos manifestantes do UArts, sim, alguns deles (a julgar por cartazes no corredor que mais tarde vi nas imagens das notícias) pareciam ter sido focados em questões de agressão sexual. Mas era óbvio que os manifestantes nunca leram ou sequer viram meus livros e que eles foram estimulados por trechos dispersos de entrevistas anteriores circuladas nas mídias sociais. Eles sem dúvida desconheciam totalmente que eu havia sido a primeira a introduzir diretrizes de assédio sexual na Universidade das Artes em 1986 – o que mostra quão pouco eles haviam pesquisado sobre isso.

Eu realmente disse muito pouco publicamente sobre o #MeToo, exceto por um artigo no início do ano passado no The Hollywood Reporter, onde registrei: “A grande questão é se a presente onda de revelações, muitas vezes consistindo em alegações infundadas de décadas atrás, ajudará as ambições das mulheres no longo prazo ou se já está criando mais problemas ao reviver os estereótipos antigos das mulheres como histéricas, voláteis e vingativas”.

Uma resposta preliminar já veio de Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook, que disse à CBS News, em maio, que, no mundo dos negócios, os gerentes masculinos estão agora limitando e diminuindo suas interações profissionais com mulheres, que estão perdendo oportunidades cruciais para mentoring (aperfeiçoamento e treinamento) e mesmo para reuniões individuais com seus chefes masculinos. Sandberg disse que houve um aumento enorme em apenas um ano (de 32% para 60%) no número de gerentes do sexo masculino que admitem que agora estão “com medo” de se encontrarem em particular com mulheres. Isso não é uma boa notícia para as mulheres, mas era totalmente previsível. Comportar-se como Fúrias uivantes ou implacáveis cães de caça não ajuda no avanço das mulheres em direção ao poder profissional e político.

Desde o primeiro artigo de opinião que escrevi sobre a controvérsia do date-rape (encontro-estupro) no campus no New York Newsday em 1991, opus-me fortemente ao envolvimento das administrações universitárias em qualquer aspecto da vida sexual dos estudantes. Se ocorrer um assalto ou estupro, ele deve ser prontamente denunciado à polícia. Os comitês universitários não são profissionalmente treinados ou competentes para servir como investigadores de crimes ou tribunais judiciais. Além disso, a menos que exista evidência concreta e objetiva, apresentar uma queixa sobre um incidente sexual meses ou anos após o evento é incompatível com a democracia moderna ou mesmo com a Justiça.

A intrusão agora universal dos escritórios administrativos na vida social privada dos estudantes é um retorno aterrador às regras estritas in loco parentis (“no lugar dos pais”) contra as quais minha geração de mulheres universitárias se rebelou durante a década de 1960. Para nossa segurança e proteção, éramos escandalosamente trancadas em nossos dormitórios às onze da noite, enquanto os estudantes homens podiam ficar livres a noite toda. Enfurecidas por esse duplo padrão, conquistamos a liberdade pessoal e sexual para futuras alunas – mas, evidentemente, muitas jovens hoje não a querem. Como órfãos nos romances de Charles Dickens, elas anseiam por proteções paternalistas e apaziguamento materno. Como donzelas vitorianas refinadas, elas se sentem incapazes de se expressar ou se defender no trabalho ou no lazer sem o apoio autoritário de superintendentes punitivos.

Meu código de feminismo amazonas é baseado no empoderamento pessoal: toda mulher é responsável por sua própria vida. As mulheres da classe trabalhadora têm dolorosamente poucas opções e são vulneráveis ao abuso, mas não há desculpa para as mulheres profissionais de classe média alta bem-educadas reivindicarem impotência no trabalho. Elas devem falar firme e imediatamente para defender sua própria dignidade e auto-respeito, que são princípios espirituais muito mais importantes do que qualquer vantagem na carreira material. Ninguém está aceitando ou inventando desculpas por comportamento criminoso. Mas a existência humana é repleta de perigos – também para os homens. A sexualidade é uma força instável e primitiva enraizada no instinto animal. Existem psicóticos vagando pelo mundo que todos devem temer. Nenhum conjunto de regras adotadas por um campus ou local de trabalho eliminará os riscos que todos nós incorremos apenas por estarmos vivos. A utopia segura, higienizada e rigidamente regulada, exigida por muitas feministas, é uma fantasia burguesa que impede as jovens de ver a vida como ela é. Um feminismo baseado na vitimização e no martírio é um desastre para as mulheres modernas.

Qual o papel das mídias sociais na mobilização desses estudantes para o evento? O Facebook tem sido usado para difundir mensagens difamatórias e alegações de grupos esquerdistas e de extrema-direita nos EUA e no Brasil. Ao mesmo tempo, os administradores de mídias sociais estão aplicando estratégias de censura. Eu mesmo já tive um post bloqueado porque continha um link para uma reportagem no jornal O Globo sobre uma exposição das obras do fotógrafo Otto Stupakoff no Museu de Arte Moderna de Nova York. Eu também vi posts bloqueados por causa de um link a um ensaio seu no The Hollywood Reporter, que continha ilustrações sensuais conhecidíssimas de Rihanna e Kim Kardashian.

Camille Paglia – As mídias sociais foram a origem e o impulso para este incidente na minha universidade. Dois meses antes da minha palestra, um ex-aluno me contatou para dizer que vários ativistas transgêneros na Filadélfia estavam visando alunos da UArts nas mídias sociais e pressionando-os a apresentar uma queixa contra mim no escritório do Título IX [1] da universidade. Ele previu que haveria “problemas” pela frente. Os escritórios do Título IX, cuja autoridade no campus vêm do governo federal, têm sido objeto de controvérsias há algum tempo nos EUA. Por exemplo, há dois anos, a escritora e professora Laura Kipnis publicou um livro amplamente resenhado sobre os procedimentos totalitários do Título IX na Northwestern University, Unwanted Advances:  Sexual Paranoia Comes to Campus (“Os indesejados avanços: a paranoia sexual chega ao campus”). Em muitos campi, os escritórios do Título IX usurparam a autoridade da faculdade e tornaram-se monitores e executores intrusivos de um rígido politicamente correto.

Eu posso ter sido o primeiro professor a alertar publicamente sobre o crescente abuso do Título IX, uma emenda de 1972 à Lei dos Direitos Civis de 1964 que tinha como objetivo eliminar a discriminação sexual nos campi universitários. O artigo polêmico que escrevi em 1996 para o USA Today (no qual protestei contra a eliminação do programa de luta greco-romana masculina na Universidade de Princeton) está reimpresso em meu livro de 2017, Free Women, Free Men (“Mulheres Livres, Homens Livres”). Lá denunciei a “corrupta master class” de administradores de universidades “cujas fileiras grotescamente aumentaram nos campi dos EUA nos últimos 30 anos e que desviaram a missão educacional para uma ideologia sufocante de bem-estar social”.

Quando recebi esse aviso do meu ex-aluno no início deste ano, não me preocupei, porque a Universidade das Artes sempre apoiou muito meu trabalho. Após o lançamento, em 1990, do Sexual Personae, houve uma enorme e prolongada controvérsia por vários anos, quando escrevi artigos de opinião de jornais que causaram um alvoroço entre as feministas da velha guarda como Gloria Steinem, que me comparou a Hitler. Apesar do fato de que eu claramente representava uma nova facção no feminismo (a ala pró-sexo para a qual Madonna era o ícone), eu era rotineiramente condenada e difamada na mídia nacional nos EUA, no Reino Unido e na Europa. Em 1991, houve uma campanha organizada por grupos feministas (que pareciam estar sediados no Meio-Oeste dos EUA) para pressionar o presidente e fundador da UArts, Peter Solmssen, a me demitir. No entanto, o presidente Solmssen, tal o nosso admirável presidente atual, David Yager, respondeu corajosamente aos queixosos que meu trabalho público como crítica social estava totalmente protegido pela liberdade acadêmica.

O que deve ser enfatizado aqui é que minha carreira docente na Universidade das Artes não teve nenhuma conexão com minha atividade profissional como escritora. Meu primeiro livro não foi publicado até seis anos depois que comecei a lecionar aqui. Até a recente chegada das mídias sociais, nunca houve a menor intrusão ou interrupção de minha celebridade ou notoriedade internacional. Meus alunos raramente tiveram alguma ideia de que eu escrevo livros. Eu não ensino “minhas” ideias na sala de aula, nem jamais atribuo meus livros como textos obrigatórios – como muitos acadêmicos narcisistas “estrelados” nos EUA. Ocasionalmente, um aluno pode mencionar para mim depois de nossa primeira aula que um de seus pais é fã meu, mas nada mais. Sempre mantive um perfil discreto no campus e (apesar dos constantes pedidos) nunca permiti que pessoas de fora visitassem minhas aulas, na condição de ouvintes. Como tenho repetidamente dito, sou simplesmente uma professora universitária: essa é a minha identidade central, inspirada na das freiras de ensino do catolicismo italiano e ibérico!

Daí a atroz amoralidade das mídias sociais sendo usadas como arma por ideólogos implacáveis para espalhar mentiras grotescas sobre minhas aulas e para agitar contra mim estudantes que não me conhecem e que não têm ideia sobre a expansividade acadêmica e interdisciplinar de meus prolíficos livros e ensaios publicados. Citações de minhas entrevistas na mídia tiradas do contexto foram divulgadas, mas não havia nenhuma referência à enorme quantidade de material em todo o meu trabalho que glorifica vividamente e celebra a sexualidade, fluidez de gênero, arte, beleza e individualismo radical.

A jovem atriz Selena Gomez disse recentemente em Cannes: “As mídias sociais têm sido terríveis para minha geração”. Esse incidente em minha universidade é um exemplo clássico da destrutividade das mídias sociais para uma geração que perdeu tragicamente o acesso aos livros. Por causa da concorrência da Amazon, as livrarias praticamente desapareceram nos EUA, mesmo em uma grande cidade como a Filadélfia. É incrível – eu raramente vejo uma livraria em qualquer lugar, enquanto elas já foram uma característica padrão dos shoppings. As livrarias eram centros culturais da minha geração da década de 1960: como estudante com pouco dinheiro, aprendi muito com as livrarias itinerantes e folheando livros. Mas a leitura de livros está em forte declínio para a geração mais jovem, que agora obtém todas as suas informações online. Por mais de quinze anos, tenho testemunhado a crescente relutância dos estudantes em ir à biblioteca pesquisar: eles querem tudo instantaneamente disponível na ponta dos dedos. A densa fisicalidade dos livros, que eu adorava como estudante, agora parece pesada e entediante para os jovens.

O problema com este movimento frenético e imparável é que somente através da leitura de livros se aprende a seguir ou construir um argumento sequencial com raciocínio dedutivo, em que a evidência é ponderada e uma conclusão, alcançada. Uma geração criada no Facebook, Twitter e Instagram nunca foi exposta à argumentação racional. No mundo online, as questões são polarizadas de maneira simplista: “gostar” ou “não gostar”; polegares para cima ou polegares para baixo. É um universo maniqueísta de anjos versus demônios, onde não são possíveis sutilezas ou qualificações: você está conosco ou contra nós.

Essa geração, casada com as mídias sociais, é cercada durante todo o dia, com fragmentos desconexos e apelos estridentes à emoção. Eles são varridos para ultrajes instantâneos, ondas de pânico, a luxúria do sangue dos julgamentos das Bruxas de Salem – que Arthur Miller invocou como um paralelo ao macarthismo vicioso dos EUA em sua peça clássica de 1953, The Crucible. Muitos jovens parecem incertos, nervosos e solitários, desesperados por afiliação e validação em grupo, e é por isso que eles se voltam tão rapidamente para a ação da multidão.

Os jovens de hoje tiveram pouca ou nenhuma exposição a escritores dissidentes que não podem ser facilmente classificados em termos ideológicos. Na minha juventude, havia muitos modelos de pensamento ousado e contrário: Simone de Beauvoir, Mary McCarthy, Allen Ginsberg, Marshall McLuhan, Norman O. Brown, Susan Sontag, Norman Mailer, Gore Vidal. Uma citação de Kafka foi amplamente divulgada quando eu estava na faculdade: “Um livro deveria ser o machado para o mar congelado dentro de nós”. Nós procuramos corretamente livros que nos fizeram sentir inseguros. A iluminação, não o conforto emocional, era o nosso objetivo.

A histeria epidêmica das mídias sociais demonstra o fracasso catastrófico do humanismo secular, sobre o qual venho advertindo há anos. Embora eu seja ateia, tenho enorme respeito pelas grandes religiões mundiais como vastos sistemas simbólicos que fornecem uma profunda perspectiva metafísica da vida. Os jovens de hoje que foram criados sem religião, em lares liberais progressistas, têm apenas a política para dar forma e significado ao mundo. Essa é uma troca muito triste, porque a política, importante e vital como é, ocupa um nível inferior na existência humana. O materialismo marxista, agora o credo universal da academia ocidental, não vê nada no universo além de si mesmo.

Eu me sinto muito feliz por ter frequentado a faculdade quando a contracultura dos anos 1960 foi inundada por temas espirituais do hinduísmo e do budismo, que podiam ser ouvidos até mesmo na música popular. Foi também um grande período para filmes internacionais de arte, que nos introduziram ao multiculturalismo mundial e nos presentearam com uma visão super-sofisticada da sexualidade. Minha mente estava saturada e transformada por esses grandes filmes, desde Orfeu Negro, de Marcel Camus; Persona, de Ingmar Bergman; Belle de Jour, de Luis Buñuel; até Rashomon, de Akira Kurosawa – que nos ensinaram sobre multiplicidade e subjetividade de perspectiva sobre eventos humanos.

Compare essas riquezas culturais com a banalidade monótona da atual cultura popular, fortemente comercializada e mecanicamente digitalizada. Não é nenhum mistério por que os jovens estão desesperadamente procurando por significado. Infelizmente, eles estão procurando nos lugares errados. As mídias sociais são uma zona de guerra de ilusões ansiosas, como as sombras na parede da caverna de Platão. Nenhuma estabilidade ou segurança jamais será encontrada lá. E injetar a política com o dualismo cósmico do bem contra o mal nunca trará verdade, sabedoria ou paz de espírito.

Algumas de suas declarações recentes foram recebidas, especialmente por críticos da esquerda e por setores de estudos de gênero (como Judith Butler, que a atacou em uma entrevista em O Globo), como apoio a Donald Trump e a Jair Bolsonaro. Como você responde a isso?

Camille Paglia – Aqueles que vivem em uma bolha ideológica fechada não podem entender nada fora dela. Tenho repetidamente chamado a atenção do público para a escassez de evidências de que Judith Butler, cuja formação acadêmica foi em filosofia e cuja metodologia é pós-estruturalista, empreendeu a extensa pesquisa histórica e científica necessária para uma professora que se apresenta como especialista em gênero e sexualidade.

Minha afiliação política é bem conhecida. Eu sou uma democrata registrada que votou no esquerdista Bernie Sanders na primária presidencial de 2016 e, depois, para Jill Stein, do Partido Verde, nas eleições gerais. Todos os anos, contribuo financeiramente para o Partido Verde. Eu tenho todo o direito de criticar a esquerda quando seu comportamento e suas táticas tolamente insultam e alienam os eleitores e os empurram para a direita. Isso é exatamente o que aconteceu antes da eleição surpresa de Trump e de Bolsonaro.

É um fato da história mundial que, quando ansiedades sociais e problemas urgentes não são enfrentados por uma elite governante egocêntrica, há um movimento para a direita por cidadãos comuns, que sentem que apenas um “herói” rude, vigoroso e ultra-masculino esmagará o impasse e finalmente fará as coisas. Essas figuras barulhentas, esnobes e egoístas frequentemente oferecem uma restauração da identidade nacional e do senso de destino – contra a insularidade arrogante da elite afluente, que é “cosmopolita” em suas suposições, associações e estilo de vida peripatético e que despreza o patriotismo como simplista e ingênuo.

Foi assim que Hitler e Mussolini chegaram ao poder. Mussolini “fez os trens rodarem a tempo”. Hitler promoveu o orgulho da identidade alemã medieval após a humilhação da derrota na Primeira Guerra Mundial e fez campanha contra a “divina decadência” (para citar Sally Bowles, de Christopher Isherwood, em Cabaret) da Berlim da República de Weimar – com sua vasta paisagem erótica de prostituição organizada, aberta à homossexualidade, e pródigos bailes drag.

Deve ser enfatizado que eu me identifico alegremente como uma criatura da decadência de Weimar que molda o gênero – o que moldou profundamente Marlene Dietrich, nascida em Berlim, cujas sofisticadas ambiguidades bissexuais e estilo blindado “hard glamour” podem ser traçados através da história de Hollywood até Madonna e as drag queens performáticas em todo o mundo hoje.

Decadência tem sido um tema central em meu trabalho – do subtítulo de Sexual Personae (“Arte e Decadência de Nefertiti para Emily Dickinson”) ao meu curso de assinatura, “Estética e Decadência”, que ministrei várias vezes durante os anos 1970 e os anos 1980 em Bennington, Wesleyan, Yale e na Universidade das Artes. No entanto, não me atrevo mais a ensinar “Estética e Decadência” porque o material sexual (como os romances do Marquês de Sade, um dos maiores e mais audazes escritores dos últimos 250 anos) é muito intenso e problemático para os estudantes de hoje.

Na faculdade, fui fortemente influenciada pela Factory de Andy Warhol, uma célula decadente da Berlin de Weimar transplantada para Nova York e povoada por suas extravagantes estrelas de travestis e transgêneros. Desde que vi os primeiros curtas-metragens em preto-e-branco de Warhol em meados da década de 1960 (acima de tudo, Harlot, estrelado por Mario Montez em drag), eu me chamei de “Warholite”. É por isso que a imagem de capa do meu livro mais recente, Provocations, é minha foto alterada para imitar o estilo policromo vívido de uma pintura de Warhol. (A Fundação Warhol concedeu muito graciosamente permissão.)

No entanto, como scholar, vejo a história de forma clara e não sentimental, sem distorção de preferências ou lealdades pessoais. Foi durante minha laboriosa pesquisa para minha tese de doutorado em Yale naquele grande santuário gótico, a Sterling Memorial Library, que descobri um padrão sinistro na história: as civilizações são frequentemente cíclicas, com padrões recorrentes distintos registrados na arte. As fases “tardias” da cultura são frequentemente caracterizadas por estilos “irônicos” altamente elaborados, homossexualidade aberta e um fascínio pela androginia, subvertendo as normas sociais e religiosas tradicionais.

Sinais de contra-reação ou retrocesso podem ser perceptíveis, mas a elite sofisticada, complacente em sua refinada “tolerância” e seu controle das principais instituições e comunicações, os ignora. O tempo passa. Então, uma onda gigante parece vir do nada – de um estrato social marginalizado ou de estranhos saqueadores – e toda uma sociedade supercomplexa é subjugada e se desintegra.

Isso é exatamente o que aconteceu durante o Império Romano, cuja religião se tornou vazia e estereotipada. Um movimento espiritual puritano começou entre os pobres e despossuídos no Mediterrâneo Oriental e se espalhou lentamente até varrer o paganismo romano. Chamava-se Cristianismo, e ainda está prosperando dois milênios depois – mesmo enquanto continuamos desenterrando restos quebrados da grandeza que era Roma.

Daí minha convicção de que aqueles que veem a história, seguindo Rousseau e Marx, em termos utópicos, como uma marcha linear de progresso ascendente, têm feito um estudo insuficiente do registro sombrio da humanidade. Cada civilização acabou caindo, até mesmo o antigo Egito, que durou três milênios. Os esquerdistas parecem supor que a “tolerância” é incremental e cumulativa e que a supressão agressiva de crenças contrárias é útil e benéfica – quando, na verdade, a censura da liberdade de expressão apenas força as principais ideias subterrâneas, que se espalham sem serem detectadas até que seja tarde demais.

Repetidas vezes desde o nascimento do esquerdismo na França, no final do século 18, os líderes esquerdistas mergulharam em um elitismo arrogante, afirmando que sabem o que é melhor para “o povo”, que eles definem como infantilmente incapazes de pensar por si mesmos. O que “o povo” realmente quer e acredita torna-se irrelevante para os estrategistas de esquerda, que reduzem a liberdade de expressão para sua própria agenda, criam burocracias intrusivas e ineficientes e começam a se ligar mutuamente, assassinando dissidentes em um novo reino do terror.

Foi assim que os franceses conseguiram Napoleão. Os revolucionários derrubaram e executaram um rei, mas depois, perseguindo e assassinando uns aos outros, eles reduziram a França à anarquia. Então a população que derrubou um rei conseguiu um imperador – Napoleão, coroado em Notre Dame pelo Papa! E a França já estava embarcando em uma grandiosa missão de ambição imperial que traria morte e destruição a milhões na Europa e na Rússia.

Ao longo da sua carreira, você enfatizou fortemente a importância das Humanidades – especialmente a história da arte, a religião comparada e a história militar – para a construção de um novo ambiente mental para os cidadãos no mundo democrático. No entanto, você critica repetidamente os estudos de gênero pós-estruturalistas. Por quê?

Camille Paglia – Sim, sou uma crente apaixonada no poder da arte de revelar as verdades últimas sobre a experiência humana. Uma educação sobre as artes, que deveria começar nos primeiros anos de escolaridade, introduziria os jovens à grande poesia, música e arte visual de todo o mundo. As artes envolvem e desenvolvem diferentes partes do cérebro, algumas das quais estão enraizadas em nossa vida primitiva na natureza, antes do nascimento da civilização. Tanto a criação quanto a apreciação da arte estão profundamente ligadas ao processo do sonho, um estado visionário para o qual todos descem à noite, embora muitas vezes as nossas viagens sejam apagadas ao amanhecer.

Eu venho atacando o cinismo venenoso e o ignorante filistinismo do pós-estruturalismo há três décadas. Minha declaração mais extensa foi Junk Bonds and Corporate Raiders:  Academe in the Hour of the Wolf, um extenso artigo publicado em Arion, em 1991, que foi reimpresso em minha primeira coletânea de ensaios, Sex, Art, and American Culture (1992). Ali demonstrei em detalhes exaustivos como os pós-estruturalistas acadêmicos usam o jargão opaco e labiríntico para esconder suas próprias enormes lacunas no conhecimento histórico e cultural básico. Por exemplo, eles ingenuamente atribuem a Michel Foucault ideias que ele tomou emprestado, sem a referência pertinente, de sociólogos anteriores, como Emile Durkheim, Max Weber e Erving Goffman. Além disso, critiquei fortemente como o esquerdismo acadêmico havia se tornado um grande negócio, um caminho mercenário para o avanço na carreira. A maioria das pessoas fora dos EUA não percebe que os principais esquerdistas acadêmicos neste país são operadores muito perspicazes que se tornaram multimilionários nas universidades de elite.

Duas décadas depois de Junk Bonds, fiz outra avaliação do estado do pós-estruturalismo quando o Chronicle of Higher Education pediu que eu revisasse três novos livros de jovens acadêmicos sobre sujeição e dominação, um novo campo chique nos estudos de gênero. O ensaio, Scholars in Bondage, foi reimpresso em meu livro Free Women, Free Men. Fiquei horrorizada com o quão desajeitada, repetitiva e superficial a análise pós-estruturalista se tornou. Essas três mulheres inteligentes e bem-intencionadas estavam lutando para encontrar suas vozes em meio ao feio lixo da terminologia pós-estruturalista, que lhes fora imposta pelos mais velhos para a sobrevivência na carreira. Enquanto isso, seu conhecimento factual da história da sexualidade, mesmo nos tempos modernos, foi lamentavelmente limitado e truncado.

Nunca deveria ter sido deixado para os agitadores da direita ou evangélicos cristãos dizer o óbvio: que os estudos de gênero, como estão atualmente constituídos, são um culto monolítico que prega uma ideologia fortemente politizada, da qual o estudo da biologia foi ilogicamente banido desde o início. Os estudos de gênero, embebidos nas premissas paranóicas e friamente desensualizadas do pós-estruturalismo, não se basearam em princípios acadêmicos e não mostram nenhum desejo de adquiri-los.

Os jovens, naturalmente interessados ??em sexo e gênero como temas vitais em suas vidas, estão sendo doutrinados de maneira não ética por esses programas, que se espalharam internacionalmente desde suas origens nos EUA e no Reino Unido. Para entender sexo e gênero, você deve estudar uma ampla gama de história, antropologia e biologia. Mas os estudos de gênero, que raramente permitem visões divergentes, tornaram-se um feudo autoritário, divorciado da realidade social.

O Brasil tem sua própria civilização, um casamento brilhante de arte e natureza. As imitações fantásticas e o deslumbrante artifício do Carnaval são contrapostos à sublime grandeza da montanha, do mar, do rio e do céu. Por qual pretensioso vazio os acadêmicos brasileiros se afastaram daquela beleza e majestade para importar os exaustos clichês do pós-estruturalismo?

[1] Título IX é uma lei federal de direitos civis aprovada como parte das Emendas de Educação de 1972. Esta lei protege as pessoas de discriminação sexual em programas ou atividades educacionais que recebem assistência governamental. O Título IX estabelece que: “Nenhuma pessoa nos Estados Unidos poderá, com base no sexo, ser excluída da participação, ser impedida de usufruir dos benefícios ou ser sujeita a discriminação sob qualquer programa de educação ou atividade que receba assistência financeira federal.” O Título IX aplica-se a qualquer instituição que receba assistência financeira federal do Departamento de Educação, incluindo agências educacionais estaduais e locais.

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