Importa mais o saber ler do que o ser leitor

Quando aquilo que se tem por elite cultural nacional é composto por 0,4% da população, e quando, como já assinalou George Steiner, apenas 3% da população planetária são pessoas que têm disposição para ler livros, o saber ler deve vir antes. Por Carlos Alberto Gianotti.

por Carlos Alberto Gianotti

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Faz alguns dias que comparece nas mídias um debate sobre a importância da leitura e da formação de leitores neste país onde o nível médio de instrução da população é muito baixo. O cerne da discussão tem sido a importância ou não de jovens lerem obras de Machado de Assis, por extensão outros clássicos, nas escolas.

Faz tempo que, em diferentes âmbitos se fala das elites brasileiras. Quando se escuta ou lê o vocábulo elite, se pode conjecturar sobre quem é elite; numa redução confortável imediata, poder-se-ia dizer que se trata de grupo constituído por indivíduos pertencentes à classe socioeconômica mais alta, logo, a dominante, muito embora pareça impossível estabelecer uma condição ou um limiar que a separe da não elite.

Mas, para fins de dirimir a dúvida sobre a importância da leitura escolar de Machado de Assis, seria interessante analisar uma espécie distintiva de elite — a elite cultural brasileira. Pode-se bem a distinguir, ao contrário da elite socioeconômica, com definidos contornos estabelecidos por sua natureza notoriamente insular. A elite cultural constitui um exclusivo e requintado subconjunto da elite instruída — essa composta pela miríade de criaturas com curso superior completo —, e seus elementos são consumidores de livros (leram ou leem, entre outros, digamos, Proust, Montaigne, Balzac, Sartre, Eça, Borges, Saramago etc. — sendo escusado mencionar, por subentendido, Machado de Assis — e têm sempre à mão os melhores lançamentos editoriais); além do consumo de livros, até antes da pandemia frequentavam teatros assistindo montagens da dramaturgia clássica ou moderna, compareciam a concertos sinfônicos, mas também eram encontradiços em shows de música popular, mormente, jazz, participavam de rodas de conversa em congressos e simpósios, circulavam em vernissages, enfim, mantinham uma vida cultural bastante cheia. Certo que com a vacina antiviral e a volta à quase normalidade convivencial, as elites voltarão àquelas práticas culturais. Se pensarmos em quantos são os elementos que compõem essa elite cultural nacional, chegaríamos, numa avaliação pródiga, a uns 800 mil indivíduos, (ou, digamos, 0,4% da população). E, precisamente, são elementos pertencentes a esse conjunto os que mais alardeiam que ler livros é essencial para uma vida harmônica, e prescrevem: ler bons autores, clássicos ou modernos!

Professores da disciplina escolar de Educação Física, não pretendem em suas aulas formar atletas ou sequer criaturas que levem pelo resto da vida o tão recomendado hábito do exercício físico sistemático; sabem eles que para conseguir manter esse hábito é preciso muita disciplina, força de vontade; como disciplina e atenção são indispensáveis para a leitura. Aí, entendo, que radica a dificuldade: poucos conseguem a concentração disciplinada para ler, a leitura não é apenas uma questão de necessidade cultural de todos, como a prática do exercício físico continuado é uma necessidade sabida como saudável. Se professores colegiais de Física, Química e Biologia não têm a intenção de formar cientistas, os de Matemática, matemáticos, os de Geografia, geógrafos, os de literatura, ao contrário — sem reparar que não se obriga ninguém a ler, como não se obriga ninguém a dormir ou comer —, resolveram formar um tipo de gente que, ao fim do Ensino Médio, seriam “leitores”; gente que, por exemplo, indo para sua casa em Paraisópolis, ou no metrô para a praça da Sé, enquanto no ônibus ou no metrô, permaneceriam, sentados ou de pé, até a o momento de descer, a ler um bom livro.

As escolas Fundamental e Média brasileiras, que, com raras exceções, há muito deixaram de ensinar, têm o papel essencial de proporcionar o desenvolvimento de criaturas que saibam ler um parágrafo compreendendo o seu conteúdo ou o interpretando, consigam escrever um bilhete com estrutura de linguagem coerente e com correção, entendam a linguagem estrita das matemáticas fundamentais, tenham condições de discernir o falso, estruturem uma cosmovisão dinâmica própria. Para tanto, a leitura é imperativo indiscutível; mas não a leitura volumes inteiros de autores clássicos, senão que excertos curtos de obras desses autores, crônicas, contos curtos, trechos curtos e coerentes de ensaios de diferentes áreas do conhecimento. Assim se preparam, penso eu desde as minhas dezenas de anos de magistério, criaturas competentes para enfrentar o porvir adulto. Saber ler é uma competência; ser leitor, necessidade quase intrínseca. Terminado o Ensino Médio, aqueles raros com disposição inerente para leituras continuadas naturalmente serão os leitores.

Como já assinalou o crítico literário George Steiner (1929–2020), apenas 3% da população planetária são pessoas que têm disposição para ler livros. Todavia, disse-nos ele, todos cantamos ou dançamos.

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(Reprodução: Anthony Olmos/Newsweek/Acervo)

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