por Tiago Pavinatto
As tecnologias evoluem e surpreendem a cada instante, os homens quase habitam outro planeta mesmo antes de ter realizado, conforme a inspirada observação de Carlos Drummond de Andrade, a dificílima e dangerosíssima viagem de si a si mesmo, cria-se vida em tubos de ensaio, mas a morte ainda assombra, assusta, fascina e se faz respeitar.
Há que se considerar, contudo, seja para um crente ou para um ateu, que a morte não santifica. É a vida que dignifica… ou não.
Portanto, advertimos de antemão, que o presente artigo não quer zombar da morte – e nem poderíamos, pois vamos, todos e sem exceção, morrer; e nem o faríamos dada a inutilidade do chiste –, mas apenas recordar, porque recordar é viver… e morrer não faz esquecer. No entanto, como dissemos, a morte ainda se faz respeitar – e tal reverência à morte e ao morto se perde na noite dos tempos.
Na Grécia Antiga, por exemplo, a proibição do sepultamento no túmulo familiar era a mais severa punição que se poderia cogitar contra alguém, pois, explica o historiador francês Fustel de Coulanges, toda a antiguidade estava persuadida de que, sem sepultura, a alma era miserável e que, somente pela sepultura, tornava-se feliz.
Segundo sua obra-mestra, La cité antique (1864), conforme as mais antigas crenças dos povos itálicos e gregos, a alma não passava sua segunda existência em um mundo diferente, mas continuava junto dos homens. Acreditou-se, durante algum período, que ela permanecia unida ao corpo, fechada com ele na sepultura, tanto que não deixavam de enterrar também objetos que supunham lhe ser necessários como vestimentas e armas ou, ainda, derramar vinho sobre o túmulo e levar alimentos, não sendo incomum, inclusive, a degola de cavalos e até escravos para que, sepultados conjuntamente, pudessem lhes prestar, ali, os mesmos serviços que em vida.
Os ritos fúnebres comprovavam essa crença, posto que, ensina o gênio positivista, era costume, na cerimônia, chamar três vezes a alma do morto pelo nome do falecido, desejando-lhe vida feliz sob a terra e lhe dizendo coisas do tipo “Que a terra lhe seja leve!” No epitáfio, declarava-se que o morto ali repousava, expressão que sobreviveu a essas crenças e que chegou, através dos milênios, até nós: Descanse em paz.
Nesse diapasão, nas cidades antigas, a lei punia os grandes criminosos com a privação da sepultura: Punia-se com um suplício possivelmente eterno.
Tamanho temor pode ser ilustrado pela revolta de Antígona, personagem de Sófocles, que, a despeito do risco de ser condenada ao apedrejamento, desafiou o decreto do soberano Creonte, que, injustamente, ordenara aos cidadãos a não guardar em cova o corpo de seu irmão Polínice.
Se, na Antiguidade, Antígona foi bem moderninha; agora, na Modernidade, ela seria bastante antigona.
Até o término da redação destas mal traçadas, Marisa Letícia Lula da Silva, vítima de um acidente vascular cerebral, já estava sem aparelhos – sem distanásia – e com o início dos procedimentos para doação dos seus órgãos autorizado pela família.
Faleceu Dona Marisa Letícia, a última moradora que era, originariamente, dali de São Bernardo, ela e o Tarcísio, conforme orgulhosamente afirmou em seu famigerado diálogo telefônico (ilegalmente divulgado, diga-se), aquele em que nos manda, a nós coxinhas, enfiar as panelas n’“a outra porta do prazer” (optamos por utilizar, uma vez mais, da poesia de Drummond ao invés do vocábulo empregado na conversa).
Nas redes sociais, um alvoroço a comprovar que a mundialmente propalada simpatia dos brasileiros não passa de um mito – e, sobre isso, valem as argutas observações do respeitado sociólogo Manuel Castells a partir dessas redes de indignação. A violência verbal é, lamentavelmente, sempre a tônica.
Nas manifestações virtuais, as condolências não só de mortadelas, mas de coxinhas e isentões. Se o mineiro só é solidário no câncer, como quer, segundo Nelson Rodrigues, Otto Lara Resende, o brasileiro pode ser solidário na morte. Contudo, os fatos se impõem e, na novel realidade lavada a jato sem o a, manifestações de ódio também se mostram, como também brotam manifestações de humor, que, se adstritas à realidade do objeto, não poderiam ser atacadas como se atacam as palavras de ira – se é que é direito calar mesmo as expressões de raiva.
Para que não reste injustiça, salutar a observação de que outra forma de desrespeito vem dos próprios simpatizantes do petismo quando querem fazer uso político da fatalidade no seio dos Lula da Silva ou mesmo através dos gritos de “Assassino!” lançados contra o Presidente Michel Temer durante sua visita de conforto ao Ex.
O fato é que as reações de desaprovação às manifestações não protocolares, condolentes portanto, representam a reverência, o temor, o tremor frente à morte. São não somente a Antígona que ainda existe dentro de nós, mas também demonstração de respeito e, é claro, civilidade. Mas, da sabedoria popular bíblica, o joio deve ser separado do trigo e, nessa hora, sempre haverá choro e ranger de dentes.
Se é certo que a falta de respeito não pode ser justificada para que possamos continuar a tentar viver em sociedade e que considerações e comemorações desrespeitosas e agressivas em decorrência da morte da ex-Primeira-Dama não devem ser toleradas, merecendo, assim, todo o repúdio, também é certo que, a contrário do Direito, para o qual mors omnia solvit, a morte não apaga a memória, nem as boas (uma mulher que labutou desde os nove anos de idade), nem as ruins (seu pensamento quanto aos revoltados com a corrupção levada a níveis pantagruélicos pelo petismo de seu esposo), e nem pode criar, somente pelo fato da sua ocorrência, novas e fantasiosas.
Com todo respeito à dor dos familiares e amigos, jamais poderei esquecer da frase das panelas, panelas que não cabem na outra porta do prazer e que, se lá enfiadas, causariam dor talvez maior.
Memento mori.