por Celina Alcantara Brod
Estamos em 2019, um tempo considerável escoou-se entre as fogueiras inquisitórias medievais e os dias hoje. Alguns séculos separam as labaredas que queimavam “bruxas” e livros “heréticos” do reacionarismo contemporâneo que enseja expurgos fracassados de HQs. Censuras afastadas pelo tempo e certamente diferentes em intensidade, porém semelhantes na intenção. A verdade é que, onde houver autoritarismo, haverá algum livro queimando. A razão que motiva o banimento de obras literárias e a censura da liberdade de expressão – de qualquer lado que alguém se posicione na atual guerra cultural – está precisamente no fato de estes excedem os limites rígidos de supostas verdades absolutas. Os livros desafiam a autoridade porque exprimem as múltiplas facetas, afetos e potências da ação humana. Além disso, a leitura carrega consigo um elemento de profunda imprevisibilidade entre leitor e autor.
Como escreveu o ilustre George Steiner, em um pequeno ensaio intitulado Aqueles que queimam livros, “o poder indeterminado dos livros é incalculável precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores.” Por isso, os livros são inevitavelmente anárquicos, antagonizam qualquer doutrina porque manipulam infinitos lados e jeitos de se contar e pensar o mundo. A literatura, por estes motivos, sempre foi uma forte combatente contra as tentativas das políticas demiurgas de higienizar a humanidade. Em outras palavras, os livros estragam os planos daqueles que se intitulam apóstolos de uma perene e estática ordem humana, pois a imaginação sempre escapa e rompe o controle previsível de regimes. Além disso, a escrita imortaliza signos e sentidos que conectam um homem ao outro, ao mesmo tempo que contrariam outros tantos. Logo, todo livro, seja ele analítico, teórico ou fictício é, por natureza, rebelde.
Os escritos de Galileu Galilei, por exemplo, rebelaram-se contra o geocentrismo, suas descobertas tornaram a humanidade órfã da constância e certeza de um mundo cuja moldura parecia segura onde estava. Apoiado na observação e metodologia empírica, Galileu registrou a morte de uma ideia, provocando um luto irreversível, que na escrita de Bertold Brecht, em sua obra Vida de Galileu, é representada na fala do pequeno monge:
“Que diria a minha gente se ouvisse de mim que moram num pedaço pequeno de rocha que gira ininterruptamente no espaço vazio, à volta de outra estrela, um pedaço entre muitos, sem maior expressão? Para que tanta paciência e resignação diante da miséria? Elas não ficariam sem cabimento?”
Os escritos do matemático italiano acatavam os axiomas de Copérnico, confirmando, portanto, que nós não estávamos no centro do universo. Era preciso encarar a insignificância humana. A Igreja, querendo proteger seu rebanho de tamanha desolação, achou que seria melhor censurar o filósofo junto com sua escrita. Um pouco mais de tempo também se passou desde a montanha de livros incendiados em maio de 1933 durante a Segunda Guerra Mundial. Hitler ambicionava aniquilar com qualquer obra que imprimisse uma imaginação que excedesse os limites de sua ordem deliberada. Na sua política asséptica era preciso manter a cultura alemã purificada. O mesmo ocorreu na Revolução Cultural de Mao Tse-tung, qualquer espécie de pensamento que perturbasse a engenharia social do ditador Chinês foi banida, enquanto seu pequeno Livro Vermelho instigava aquilo que George Steiner chamou de “o prelúdio ao massacre, sua justificação.” A história revela que livros e fogueiras é um encontro que teima em acontecer.
John Stuart Mill, um dos grandes defensores da liberdade civil, um direito que hoje nos é quase intuitivo – ou ao menos deveria ser –, anunciou que os limites do poder que a sociedade poderia legalmente exercer sobre o indivíduo seria “em breve reconhecida como a questão vital do futuro.” A disputa pela autonomia e a defesa de uma zona livre de coerção – seja de um grupo, do estado ou de uma maioria – é sem sombra de dúvida, o ponto nevrálgico das disputas políticas. Da mesma maneira, Benjamin Constant enfatizou a independência privada, argumentando que diferente dos antigos éramos, enfim, modernos: “queremos desfrutar, cada qual, de nossos direitos; desenvolver nossas faculdades como bem entendermos, sem prejudicar a ninguém”, escreveu o francês. Para Isaiah Berlin, a individualidade, essa redoma protegida da transgressão, teve Constant e Mill como “seus advogados mais convincentes e nobres”. Segundo ele, os dois foram os grandes defensores da liberdade negativa, aquilo que ele chamou de um “espaço político suficiente para que um homem não sufoque, não sobreviva sob a condição de ser um instrumento dos desejos alheios.”
A atualidade nos mostra que as liberdades de Benjamin e Mill, precisam ser constantemente revisitadas e reforçadas, afinal, o espírito de Voltaire entre os homens é uma raridade. Defender a liberdade alheia mesmo discordando do que tal liberdade diz não parece tão óbvio, nem para os censuradores dos livros de Monteiro de Lobato, nem para os paladinos dos bons costumes. Todos logo encontram uma justificação pura, bela e moral para silenciar os outros, isto é, coagi-los a não serem livres na sua expressão, seja por meio de uma patrulha exacerbada do politicamente correto ou pelo engessamento de costumes. Há pressa entre os repreensores em reeducar as massas. Eles esquecem, convencidos pela sua própria infalibilidade, que as questões da humanidade se desenvolvem na contrariedade. “Quem possui autoridade para decidir a questão por todos os homens?” questiona Mill ao defender a liberdade de expressão. Silenciar uma opinião é, para ele um “roubo à raça humana- à posterioridade, bem como a geração existente”, pois sem a exposição das ideias não é possível abandonar o erro pela verdade, ou tornar uma suposta verdade um erro.
Por todos estes motivos, a obra Fahrenheit 451, do escritor americano Ray Bradbury, é um livro acrônico. Publicado em 1953, no ápice da Guerra Fria, Fahrenheit é uma obra política, uma história sobra o valor da liberdade e como ser livre está intimamente ligado aos livros. Uma trama que muito embora seja fictícia, utiliza-se de verossímeis e sutis desdobramentos da realidade para denunciar a força emancipatória da literatura e as tentativas de exterminá-la. A distopia de Bradbury inverte a ordem das coisas: bombeiros são treinados para incendiar livros em uma sociedade anestesiada pelo espetáculo e pela trivialidade em excesso. Qualquer tentativa de proteger a leitura é considerada um crime. O bombeiro Guy Montag, personagem central da obra, depois de sucessivas incinerações, começa a tomar consciência do seu próprio embotamento ao testemunhar a resistência recalcitrante de algumas pessoas diante da censura totalitária.
Na sociedade imaginada por Bradbury a leitura foi gradualmente se apequenando e a curiosidade foi sendo trocada pelo entretenimento passivo; resumos de resumos, manchetes de três linhas, condensação e abreviação passaram a ser o padrão intelectual. Bradbury fantasia uma massa voluntariamente lobotomizada pelo estímulo ininterrupto de um entretenimento nivelado por baixo. Apenas o catálogo de programação da televisão permaneceu material de leitura. Tudo se passa depressa demais para que os por quês tenham espaço ou para que o tédio traga a inquietação contemplativa. Pessoas com mentes entretidas e entorpecidas pelo exagero e a nula profundidade naquilo que virtualmente escutam e enxergam incessantemente. “O zíper substitui o botão e o homem não tem muito tempo para pensar ao se vestir pela manhã; uma hora filosófica e, por isso, melancólica”, diz Beatty, o chefe de Montag, tentando o convencer da inutilidade e malgrado que acompanha os efeitos da reflexão.
Com espasmos de atenção cada vez mais curtos, ser social neste mundo criado por Bradbury significa engajar-se em diálogos que são meras trocas de palavras e ecolalia. Embriagados por uma atenção sempre rasa, os homens perderam a capacidade de se interessassem por qualquer coisa que não fosse utilitária e simples. A censura começou pelas próprias pessoas que não suportavam o desconforto da divergência e deixaram de ler por escolha própria, tornando fácil para o Governo extinguir de vez as controvérsias. Como não enxergar em Fahrenheit 451, pinceladas de nossos tempos? Toda vez que as tentativas de suprimir a expressão alheia, seja ela um livro, um assunto polêmico, uma ilustração provadora, uma peça de teatro ou um HQ é sinal de civilidade lembrar que coerções morais, neste mundo tão abrangente, são atalhos para abusos, tais como atear fogo em livros. “Os que não constroem precisam queimar. Isso é tão antigo quanto a história e os delinquentes juvenis “, alerta professor Faber, uma das personagens que não se afogou na constante diversão para sublimar suas incertezas. Os livros são representações físicas da abstrata liberdade política, comprovam a rebeldia humana e reafirmam que a uniformidade é uma quimera. Há em cada indivíduo tanta multiplicidade quanto há pessoas no mundo. O ideal Platônico, o qual Isaiah Berlin chamou de uma “solução do quebra-cabeça cósmico” continua, felizmente, sendo apenas um ideal.