por Gabriel Rostey
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No dicionário, uma das acepções de “urbanidade” é “conjunto de preceitos de civilidade que revelam boas maneiras e respeito nos relacionamentos sociais; civilidade”. Não por acaso, “urbano” é aquilo relativo ou pertencente à cidade, que é a máxima expressão coletiva de pessoas intrinsecamente relacionadas. Já tratei mais profundamente sobre isso no artigo “Liberalismo e Política Urbana”, mas é na urbe e seu espaço coabitado que comportamentos individuais e suas consequências são permanentemente entrelaçados e colocados em involuntário teste de convivência.
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A pandemia do novo Coronavírus provocou que governos de todos os cantos do mundo recorressem à decretação de medidas de restrição social como nunca em tempos de paz. Tais imposições passaram, então, a ser criticadas por alguns, que as classificam até mesmo como “totalitárias” e, não raramente, lançam mão do conceito de liberdade como escudo.
O liberalismo político em sentido amplo é um dos pilares das democracias liberais. Os ideais de igualitarismo, consentimento dos governados, liberdades individuais e Império da Lei são conquistas civilizacionais consensualmente defendidas por qualquer pessoa verdadeiramente comprometida com valores republicanos. Um de seus mais influentes pensadores foi o britânico John Stuart Mill, que em 1859 publicou o importantíssimo ensaio “Sobre a Liberdade” (“On Liberty”, no original), que sugere definições filosóficas para relações dicotômicas de organização social como sociedade/indivíduo e autoridade/liberdade. Uma contribuição deste livro tem especial relevância na presente discussão: o Princípio do Dano (“Harm Principle”).
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Resumidamente, Mill defende que o homem não deve sofrer nenhuma sanção direta por práticas indesejáveis ou lesivas, por piores que sejam a si mesmo ou aos olhos da sociedade. Só há uma situação em que é admissível -e dependendo imperioso- que a autoridade evite e puna ações individuais voluntárias: quando provocam dano a outro indivíduo. O trecho a seguir apresenta mais detalhadamente o princípio:
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O objeto deste Ensaio é defender como indicado para orientar de forma absoluta as intervenções da sociedade no individual, um princípio muito simples, quer para o caso do uso da força física sob a forma de penalidades legais, quer para o da coerção moral da opinião pública. Consiste esse princípio em que a única finalidade justificativa da interferência dos homens, individual e coletivamente, na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção. O único propósito com o qual se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade, é impedir dano a outrem. O próprio bem do indivíduo, seja material seja moral, não constitui justificação suficiente. O indivíduo não pode legitimamente ser compelido a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, porque tal seja melhor para ele, porque tal o faça mais feliz, porque, na opinião dos outros tal seja sábio ou reto. Essas são boas razões para o admoestar, para com ele discutir, para o persuadir, para o aconselhar, mas não para o coagir, ou para lhe infligir um mal caso aja de outra forma. Para justificar a coação ou a penalidade, faz-se mister que a conduta de que se quer desviá-lo, tenha em mira causar dano a outrem. A única parte da conduta por que alguém responde perante a sociedade, é a que concerne aos outros.
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Os impactos da pandemia de Covid-19 afetam de modo sem precedentes a essência da vida urbana. Se cidades são justamente a manifestação definitiva da aglomeração e sociabilização humanas, o Coronavírus ataca justamente isso. É nelas que se estabelece e impõe um desafio em várias camadas para inviabilizar a dinâmica social de modo inédito: ao contrário de dengue ou febre amarela —transmitidas por mosquitos—, é propagado pelas pessoas; diferentemente de outros vírus alastrados por humanos, como o Ebola —cujo infectado só transmite quando já apresenta sintomas—, este é sorrateiro, transmitido antes de qualquer sinal; até mesmo o grande número de assintomáticos e a letalidade mais baixa se comparado à Mers e à Sars —que levam mais infectados logo para o hospital—, fazem com que se espalhe mais e de modo silencioso, por um período maior. Logo, é possível que aquele trabalhador que está nos atendendo exatamente como em qualquer outro dia, venha a nos contaminar. Do mesmo modo, podemos ser nós a passar o vírus Sars-Cov-2 para o colega de trabalho, com a doença se manifestando apenas nele, enquanto simplesmente desconhecemos nossa própria infecção. Uma trivial viagem no transporte público lotado pode representar uma roleta-russa biológica, sem que se possa saber se seremos vítimas ou algozes, tampouco se seremos assintomáticos ou engrossaremos as alarmantes estatísticas de mortos. Como seguir a vida cotidiana assim?
Entretanto, o principal ataque promovido pelo Coronavírus é, tal e qual a cidade, de ordem coletiva e não individual. Quando nos isolamos para evitar o contágio, não estamos fugindo de uma doença. Por mais que a Covid-19 seja grave e tenha potencial mortífero, não é pela ameaça direta à vida dos indivíduos que mais da metade da população mundial esteve sob determinações ou recomendações estatais de confinamento. Com duração média de internação na UTI por volta de 15 dias, o contingente de casos graves em locais nos quais a epidemia foge de controle é suficiente para esgotar a capacidade de qualquer sistema de saúde do mundo. Ou seja, entram em cena os protocolos para escolher as pessoas que serão deixadas para morrer, sem atendimento, e toda a rede hospitalar passa a ser insuficiente, transformando qualquer cidadão que dela necessite, pelo motivo mais banal que seja, em “grupo de risco”. Grosso modo, é como se a população não pudesse mais contar com cuidado médico intensivo até que a curva seja achatada.
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De acordo com o que se conhece até o momento, são as condições e comportamentos da sociedade os maiores determinantes para a evolução da curva de casos de Covid-19. Afinal, se as próprias pessoas são as transmissoras e receptoras, a dinâmica social define a velocidade do contágio na população. Por isso o desafio se mostra maior ou menor em diferentes cidades e países.
E é neste ponto que questões urbanísticas e de “urbanidade” fazem toda a diferença. Por exemplo: a Suécia —paradigma de local que praticamente não precisou de restrições sociais determinadas pelo Estado— conta com mais de metade da população vivendo sozinha em casa, o que favorece uma menor taxa de reprodução. Como comparar isso à realidade de mais de 13,6 milhões de brasileiros que vivem em favelas (30% a mais do que a população sueca) e sua média superior a 3,5 moradores por domicílio, na qual qualquer caso isolado pode ser estopim de um surto? E como comparar a “urbanidade” sueca, com senso de responsabilidade capaz de apresentar um índice de isolamento social de quase 75% em Estocolmo, sem restrições impostas pelo governo, com a paulistana, por exemplo, que sob quarentena jamais passou dos 59%? Como imaginar que as imposições da força de Estado para manejar a crise precisem ser as mesmas em tão diferentes contextos?
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Em abril, Angela Merkel explicou didaticamente o impacto que o ritmo de expansão de contágio tem no sistema de saúde e por que se justifica tanto esforço para reduzi-lo: na Alemanha sob quarentena, estavam trabalhando com um R0 (fator básico de reprodução, ou seja, para quantas outras pessoas um infectado transmite o vírus) de 1, ou seja, um contaminado só contagiaria uma outra pessoa. Se aumentasse para 1,1, a poderosa rede hospitalar alemã colapsaria em outubro; se 1,2, em julho; se 1,3, em junho. Ou seja, qualquer mudança de décimo pode significar meses nos quais pessoas morrerão simplesmente pela impossibilidade de receberem atenção médica.
Considerando-se que só o orçamento do Ministério da Saúde brasileiro para este ano é de RS 125 bilhões, e que os gastos públicos com saúde no Brasil representam cerca de 3,8% do PIB (o que, aplicado a 2019, equivale a cerca de R$ 280 bilhões), faz todo o sentido conceber que “proteger o sistema de saúde” neste momento é algo prioritário para toda sociedade, tanto individual quanto coletivamente.
Isso deixa clara a importância da responsabilidade individual na contenção de uma ameaça que transforma o que era corriqueiro em má ação, cujas consequências extrapolam em muito a autoexposição à doença, já que provocam dano aos demais. Quantas vidas a mais serão afetadas por infecções, internações e mortes a cada vez que saímos desnecessariamente? Quantas seriam poupadas se obedecêssemos às recomendações de distância, uso de máscara e higienização das mãos? O que dizer de quem sabe que está contaminado e não respeita o isolamento? Enquanto uns não se comportarem adequadamente e, por isso, mantiverem o vírus em circulação, todos os outros seguirão sob risco, por mais aplicados que estejam no combate ao Coronavírus. Tudo isso se conecta à noção de obrigação social, abordada desta maneira por Mill:
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Embora a sociedade não se funde num contrato, e embora nenhum proveito se tire da invenção de um contrato de que se deduzam as obrigações sociais, cada beneficiário da proteção da sociedade deve uma paga pelo benefício, e o fato de viver em sociedade torna indispensável que cada um seja obrigado a observar certa linha de conduta para com o resto. Essa conduta consiste, primeiro, em não ofender um os interesses de outro, ou antes certos interesses, que, ou por expressa cláusula legal ou por tácito entendimento, devem ser considerados direitos; e, segundo, em cada um suportar a sua parte (a se fixar segundo algum princípio equitativo) nos labores e sacrifícios em que se incorra na defesa da sociedade ou dos seus membros contra danos e incômodos. Justifica-se que a sociedade imponha essas condições a todo o custo, àqueles que tentam furtar-se ao seu cumprimento.
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Devemos ainda considerar que o desafio do Coronavírus estabelece questões de difícil compreensão para a população em geral: seu ritmo é determinado pela sociedade; a letalidade direta é baixa (o que propicia comentários que minimizam a ameaça da Covid-19, à la “gripezinha”); não se vê pessoas doentes nas ruas; o que se faz hoje só se manifesta mais claramente após cerca de duas semanas; “o pico nunca chega” (pois é determinado por nós mesmos, portanto o céu é o limite se nos comportamos mal) e tudo pode parecer uma grande histeria sem sentido. Especialmente quando isso é estimulado pelo ocupante do cargo de máxima autoridade política do país, que conta com apoio irrestrito de significativa parcela da população e a influencia com suas opiniões que colocam o distanciamento social como inútil e responsável pela inexorável crise econômica que uma pandemia como esta impõe.
Até mesmo a mais equivocada das opiniões deve ser exposta livremente. Eventuais más influências que pregue têm um custo que deve ser sustentado pela sociedade em nome da manutenção de um ambiente livre, contestador e inovador que provoca melhorias muito mais valiosas. E precisamente por seu equívoco também presta um serviço à humanidade, como belissimamente exposto por Mill:
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Se todos os homens menos um fossem de certa opinião, e um único da opinião contrária, a humanidade não teria mais direito a impor silêncio a esse um, do que ele a fazer calar a humanidade, se tivesse esse poder. Fosse uma opinião um bem pessoal sem valor exceto para o dono; se ser impedido no gozo desse bem constituísse simplesmente uma injúria privada, faria diferença que o dano fosse infligido a poucos ou a muitos. Mas o mal específico de impedir a expressão de uma opinião está em que se rouba o gênero humano; a posteridade tanto quanto as gerações presentes; aqueles que dissentem da opinião ainda mais que os que a sustentam. Se a opinião é certa, aquele foi privado da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errônea, perdeu o que constitui um bem de quase tanto valor — a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzidas pela sua colisão com o erro.
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Entretanto, até mesmo às opiniões pode ser atribuído um dano aos outros caso passem a ser expressas com vistas a incitar ações que provoquem desdobramentos nocivos às demais pessoas, na forma de exortação a comportamentos criminosos ou que firam a obrigação do compromisso social. Ou seja, que acabem por prejudicar outrem, como explicado por Mill em seu ensaio:
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SENDO essas as razões que tornam imperativo tenham os homens liberdade de formar opiniões e de exprimi-las sem reservas; e essas as funestas consequências para a natureza intelectual humana e, através desta, para a natureza moral, se essa liberdade não for concedida ou, a despeito de proibição, afirmada; examinemos, em seguida, se as mesmas razões não requerem a liberdade dos homens para agir segundo as suas opiniões — para levá-las à pratica, na sua vida, sem obstáculo, físico ou moral, da parte dos seus semelhantes, enquanto o façam por sua, própria conta e risco..
Esta última cláusula é, sem dúvida, indispensável. Ninguém pretende que as ações devam ser tão livres como as opiniões. Pelo contrário, mesmo as opiniões perdem a sua imunidade quando as circunstâncias em que se exprimem são tais que a sua expressão constitui um incitamento positivo a algum ato nocivo. A opinião de que os comerciantes de cereais matam à fome o pobre, ou a de que a propriedade privada é um latrocínio, não devem ser molestadas quando simplesmente veiculadas pela imprensa, mas podem incorrer em pena justa quando expostas oralmente, ou afixadas sob a forma de cartaz, em meio a uma turba excitada, reunida diante da casa de um comerciante de cereais. Atos de qualquer espécie que, sem causa justificável, produzem dano a outrem, podem ser refreados pelos sentimentos desfavoráveis e, quando necessário, pela interferência ativa da coletividade, e, nos casos mais importantes, exigem mesmo tal. A liberdade do indivíduo deve ser, assim, em grande parte, limitada — ele não deve tornar-se prejudicial aos outros.
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Trazendo isto para a realidade atual, uma coisa é contestar a efetividade da quarentena, a gravidade da pandemia e elaborar ou espalhar fake news que a minimize, todas práticas hoje tidas como indesejadas por estarem em desacordo com as evidências científicas conhecidas, mas que estão sob a necessária proteção à liberdade de expressão; outra, muito diferente, e sim passível de sanções, é promover manifestações com aglomeração de pessoas com vistas a pressionar pelo fim da política de distanciamento social e pela reabertura dos negócios, ou fazer apologia à desobediência civil, em um momento no qual isso pode representar o crescimento exponencial de uma doença contagiosa potencialmente mortal. Neste caso, a finalidade da expressão da opinião é conclamar para ações efetivamente danosas aos demais e à sociedade, o que torna necessário que seja suprimido e devidamente punido.
Não é por acaso que, mesmo com todas as consequências econômicas vindouras, diversos países proibiram grande parte da atividade econômica que implique em deslocamentos, criando para isso bilionários programas de socorro financeiro emergencial, apelidados “coronavouchers”. É uma espécie de preço que a sociedade está disposta a pagar para permitir que as pessoas possam ficar em suas casas, saiam só quando extremamente necessário, interajam menos fisicamente com outras, e consequentemente protejam a si mesmas e às demais para pôr fim à disseminação do vírus em suas cidades.
Em um exercício de imaginação, é plenamente possível conceber o seguinte cenário: uma pessoa foi a uma dessas aglomerações desnecessárias e com efeitos possivelmente maléficos como as que vimos no Brasil nas últimas semanas, por desejo próprio, e contraiu a Covid-19. Quando ainda estava assintomática, foi ao supermercado, onde infectou a pessoa que trabalhava no caixa. Depois, piorou, ficou em estado crítico e foi para a UTI, onde viria a ocupar um leito por mais de duas semanas. Nesse período, a situação daquela que trabalhava no caixa do supermercado também se agravou, mas já não havia mais vagas de UTI disponíveis —incluindo a preenchida pelo manifestante—, e por isso foi deixada para morrer sem atendimento. Isso pareceria justo? Como desentrelaçar os desdobramentos de decisões individuais durante uma pandemia desta natureza, em calçadas, metrôs, estabelecimentos e espaços indissociavelmente compartilhados?
Por isso, trata-se de algo muito além de moralismo social. A irresponsabilidade de alguns, decidindo descumprir determinações a seu bel prazer, tem desdobramentos práticos e imediatos para todos os habitantes da mesma cidade, inclusive para a determinação da extensão desse estado excepcional. Portanto, são justificadas e necessárias as intervenções estatais de coerção a essas condutas individuais, o que está amparado em John Stuart Mill há 161 anos:
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Se ela estraga a sua vida pela má orientação, não devemos desejar, por esse motivo, estragá-la mais ainda. Ao invés de querer puni-la, devemos esforçar-nos por lhe mitigar a pena, mostrando-lhe como evitar ou remediar os males que a sua conduta tende a trazer-lhe. Ela pode ser para nós um objeto de piedade, talvez de antipatia, mas não de cólera ou de ressentimento. Não a trataremos como inimiga da sociedade. O pior que será justo fazer, é abandoná-la a si mesma, se não queremos intervir benevolamente mostrando-lhe interesse ou solicitude. Muito diverso será o caso, se ela infringir as normas necessárias à proteção dos seus semelhantes individual ou coletivamente. As más consequências dos seus atos não recaem, então, sobre ela, mas sobre os outros, e a sociedade, como protetora de todos os seus membros, tem direito à represália: deve fazê-la sofrer pela falta, com o propósito expresso de puni-la, cuidando de agir com severidade. Ela se apresenta, então, como uma acusada ante o nosso tribunal, e pede-se a nós não apenas julgá-la, mas ainda, de uma forma ou outra, executar a nossa sentença.
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Obviamente este artigo não defende a simples imposição do Estado, sem critério, de restrições sociais como forma de combate à pandemia. Esse é um instrumento muito sério, ao qual se deve recorrer estritamente com base em diretrizes científicas que o justifiquem, ao se constatar que a sociedade não consegue responder sozinha às demandas para que se evite o dano comum. Não se trata de um elogio à intervenção estatal drástica como medida correta neste momento, pois ela pode ser inadequada ou mal aplicada; mas sim da justificação de por que ela pode ser, mais do que válida, absolutamente imprescindível no atual contexto. As acusações de que são uma violência em si absolutamente não se sustentam.
Neste momento, o Brasil é o segundo país com mais mortes diárias por Covid-19. Ambas as nações mais vitimadas pela pandemia, Estados Unidos e Reino Unido, que mais do que apresentarem a mais marcante tradição liberal, são extraordinários produtos desta, impuseram severas restrições de circulação de pessoas e funcionamento dos negócios, chegando a impor lockdown/quarentena e obrigatoriedade do uso de máscaras, com possibilidade de multa e até detenção policial para os desobedientes. Ainda assim, há muitos brasileiros —normalmente condicionados por rasteiras taras políticas— que têm o desplante de falar em “totalitarismo” para medidas implantadas em todo o mundo com vistas a proteger a coletividade. Isso se torna ainda mais absurdo quando constatamos que aqueles dois países atualmente são comandados por governantes que, embora muito controversos, fazem parte de instituições como o Partido Conservador inglês e o Partido Republicano americano, que legaram ao mundo estadistas como Winston Churchill e Abraham Lincoln, e ícones liberais como Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
A muitos desses supostos “neoliberais” (emprego aqui a palavra não como o estigma frequentemente utilizado por adversários ideológicos contrários a privatizações, mas sim para designar o recente modismo dos “liberais de manual” brasileiros) faz falta a elementar compreensão de que uma eventual liberdade plena afetaria as liberdades individuais alheias, e que liberalismo não é o mesmo que libertarianismo. Bem como uma grande dose de “urbanidade”.
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