Mãos ao Alto de Natal

Um boneco de Papai Noel foi enforcado e queimado numa Catedral da França em 1951. Hoje, o Estado de São Paulo noticia: “Guloseimas acabam e crianças atiram pedras em Papai Noel no Interior de São Paulo”.

por Tiago Pavinatto

Em França, na véspera do Natal de 1951, o France-Soir noticiou algo que, conforme Claude Lévi-Strauss já no limiar do seu ensaio Le Père Noël supplicié (1952), repercutiu de forma polêmica e imprimiu azedume no alegre clima dezembrino: “Diante de crianças órfãs, Papai Noel foi queimado no átrio da Catedral de Dijon”.

Sim, um boneco de Papai Noel foi enforcado e, depois, queimado na Catedral de Dijon às três da tarde de um domingo, 23 de dezembro. A execução se realizou na presença de internos dos orfanatos locais e contou com o aval do clero, que condenara Papai Noel – acusado de paganizar a festa de Natal, ocupando um espaço cada vez maior em todas as escolas públicas e, inclusive, o lugar do sagrado presépio – como usurpador e herege. O pobre velhinho de barbas brancas pagou por um erro cujos culpados eram aqueles que aplaudiam a execução de pé. O fogo queimou as suas barbas e ele esvaiu-se na fumaça.

No Brasil, sessenta e seis anos depois, noticiou O Estado de S. Paulo: “Guloseimas acabam e crianças atiram pedras em Papai Noel no Interior de São Paulo”.

Pois bem. Um Papai Noel humano foi apedrejado por crianças em um domingo, 10 de dezembro de 2017, no Município de Itatiba. Ao perceberem que as guloseimas que o ingênuo velhote distribuía acabaram, os infantes velhacos, no exercício do fundamental direito constitucionalmente garantido da liberdade de expressão e pensamento, deram início a um protesto tão legítimo quanto aqueles levados a cabo pelos soturnos blocos pretos: com linguajar despido do modorrento uniforme exigido pelo politicamente correto, chamavam Papai Noel de filho de uma profissional do sexo, bem como sugeriam que ele utilizasse a outra porta do prazer em suas relações sexuais – muito embora, conhecessem os envolvidos ativa e passivamente as poéticas lições de Carlos Drummond de Andrade, saberiam que o “Amor não é completo se não sabe coisas que só o amor pode inventar” e que, nesta toada, completa-o a procura pelo “estreito átrio do cubículo aonde não chega a luz, e chega o ardor de insofrida, mordente fome de conhecimento pelo gozo” (O amor natural).

Antes que algum movimento em nome da tradicional família brasileira que resolva “boicotar” Drummond – mantenhamos, então, por debaixo dos panos a sua ode à parte traseira do corpo entre as costas e as pernas –, finalizemos a nossa leitura dessa manifestação anormal contra Nicolau: além da pachouchada, a criançada atacou com pedrada.

Se este fato mostrou que Gonzaguinha, ao ficar com a pureza da resposta das crianças, errou na brincadeira do O que é? O que é?, a confrontação dessas duas notícias, apesar de distantes tanto no tempo quanto no espaço, traz conclusões bastante reveladoras sobre nossa sociedade.

No caso francês, quando à voz da Igreja Católica se uniu a da Protestante contra um símbolo do consumismo, personagem que passou a habitar o calendário natalino dos franceses no pós-guerra, ou seja, Papai Noel, o que emerge é uma clara reação, o primeiro dos últimos suspiros de uma sociedade industrial, de produtores – uma era, ensina Zygmunt Bauman, de fábricas e exército de massa, de regras obrigatórias e conformidade a elas, na qual os bens adquiridos não se destinavam ao consumo imediato e deviam ser protegidos da depreciação ou dispersão e permanecer intactos, pois a satisfação residia na promessa de segurança a longo prazo e não no desfrute imediato dos prazeres (Vida para consumo) –, que vai dar lugar a uma sociedade de valores e anseios opostos: a sociedade de consumo. Nela, ainda conforme Bauman, todos os atores sociais são consumidores de jure do berço ao túmulo e, assim, a ética passa a se pautar pela satisfação imediata dos prazeres, numa busca incessante pela felicidade de objeto desconhecido, mas tudo sempre passando pelo caminho do consumo.

Já a ocorrência itatibense do presente Natal sem presente, por sua vez, é uma caricatura do ponto em que chegamos nessa sociedade de consumidores, um retrato do despreparo cívico no abandono das significações, que revela uma essência humana intolerante e independente de qualquer ética.

Mas, na contramão do entendimento binário que não ultrapassa a barreira das conclusões aparentes, a razão dessa miséria identificada não repousa no consumo e nem mesmo na sua elevação a estandarte cultural. Muito além de um jocoso brocardo “paulum cibi debebit, ante plate” (“farinha pouca, meu pirão primeiro”), posto que revela tão somente um comportamento egoísta – e, na sensatez do pensamento ayn-randista, denominado Objetivismo, o egoísmo tem suas virtudes (se não é, por si só, uma delas) –, o episódio destes dias demonstra que o consumismo, cujo espírito se revela até mesmo no campo das relações afetivas através do finório neologismo “poliamor”, só é daninho se apartado da educação – como tudo nesta vida em sociedade.

A sociedade de consumo, em si, é libertadora, pois permite e, de certo modo, democratiza a experimentação, catalisa a mudança e otimiza a vida em diversos aspectos. Sem nos enveredarmos no aspecto biológico do vício, convém assinalar que toda majoração de liberdade requer, para que seja harmônica, responsabilidade; esta, por sua vez, requer educação, que é o instrumento capaz de permitir o egoísmo virtuoso quando internaliza o comando essencial para a pacificação social, qual seja, não lesar ninguém (inclusive, talvez, a si próprio – e “talvez” porque nessa insinuação reside um debate filosófico de fôlego).

Isso explica muita coisa nestes tempos de reacionarismo, mesmo quando não se tenha nada a resgatar, a não ser a figura de um voluntário a tirano, que, fajutão, tem todas as respostas para a complexidade da vida e, por tal razão, a quem se entrega o fardo das escolhas e, via de consequência, toda a responsabilidade individual. Ponto para o Diabo ao dar mais um toque certo quando Freud explica as coisas: para o Pai da Psicanálise, as pessoas têm medo da responsabilidade e, portanto, não conseguem lidar com liberdade demais.

Contudo, tal qual a Avenida Paulista, a relação do povo deseducado (e do educado que só acredita na própria educação) com o ditador começa no Paraíso e termina na Consolação. O natural desejo por liberdade se faz sentir. Obtida, mas não havendo educação para que todos os envolvidos no jogo democrático consigam lidar com as responsabilidades adjacentes, ela se degenera e abre espaço para nova ditadura. Em suma, sem educação, nossas misérias rodam incessantemente na linha de um círculo vicioso.

Se a fogueira de um boneco de Papai Noel acendida por adultos na presença de crianças foi uma tentativa inglória de barrar as interferências da “deusa” Liberdade, que, como qualquer divindade de qualquer mitologia, pode ser benigna ou maligna (o que nos remete à comparação da Religião com o câncer), as ofensas e pedras contra um homem vestido de Papai Noel lançadas por crianças na presença de adultos representam os estragos dessa deusa porcamente cultuada num país em que a educação não vai além de ler e escrever bem o próprio nome, ameaçando, inclusive, até mesmo a virtude teologal da caridade. Afinal, Papai Noel não é Geni.

Sem caridade, resta esperança e fé. E, porque nada se vislumbra em favor da educação (muito pelo contrário), é certo que só reste a fé. Mas, para quem não crê, resta lamentar tanto pelo voluntário agredido quanto por essas crianças, cuja alegria natalina futura, muito possivelmente, coincidirá com uma saída temporária ou, quem sabe, o indulto.

Para saber mais: 

O mistério dos santos inocentes

Anatomia da democracia

Contos do Talmud

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