por Rodrigo Toniol
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Em um texto publicado no dia 23 de março, quando registrávamos no Brasil “apenas” trinta e quatro mortes por Covid-19, argumentei que não há pandemia sem Estado. Com isso não me referia, nem remotamente, à irrealidade do agente biológico e de seus efeitos nas nossas vidas. Não era a um construcionismo raso que apelava, mas sim ao fato de que a pandemia como evento é resultado do alinhamento de uma cadeia de fatos: vírus, curvas epidemiológicas, testes, confinamento, fechamento de escolas, obrigatoriedade do uso de máscaras, um mercado de animais exóticos na China, viagens internacionais e fronteiras — itens de uma lista interminável. No dia em que escrevo este texto, dezenove semanas após a publicação do anterior, já ultrapassamos a marca dos noventa mil mortos. Em cinco meses temos a nossa própria Hiroshima.
Continuo sustentando o princípio de que não há pandemia sem Estado, que é esse agente de coordenação e de alinhamento da cadeia de fatos listada que materializa a forma da crise que experimentamos. Passados noventa mil mortos, o que hoje nos abate é a perversidade desse princípio. Neste canto do mundo, a máquina do Estado tem contribuído para introduzir na cadeia que dá realidade à pandemia uma série de ruídos, de marcos diversionistas, de elementos de negação da própria realidade que se está tentando descrever. A pandemia no Brasil se consolidou a partir de uma cadeia paradoxal de fatos, a partir da qual para cada noção que a afirma temos que lidar com elementos que as negam. Para a falta de oxigenação nos pulmões afirmamos a gripezinha, para a falta de tratamento promovemos a cloroquina, para o número de mortos enfatizamos os curados. Essa é a superfície retórica, que nada tem de superficial, da nossa experiência da pandemia.
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Não nos enganemos: fazer do paradoxo o modelo narrativo para descrever esta crise não tem como finalidade atenuar a pandemia, mas sim transformar o vírus em aliado. Um aliado na medida em que ele próprio se integra ao modus operandi do bolsonarismo, a afirmação pela negativa. O bolsonarismo se afirma pelo que nega, em sua retórica toda proposição é vista com desconfiança, todo plano de ação é visto como soberbo e toda criação é compreendida como hipocrisia. Sobre nossos noventa mil mortos marcha uma lógica que se recusa até a afirmar condolências. Aos mortos nega-se a própria morte.
Aos efeitos devastadores da pandemia, os agentes do Estado nos oferecem uma miragem, uma espécie de realidade distorcida na qual somos todos inadivertidamente implicados. O paradoxo da pandemia brasileira nos impõe uma tarefa de Sísifo, a de debater as alucinações do alucinante. Se o paradoxo dessa nossa pandemia é tão explícito quanto os atos falhos daqueles que a sustentam, também temos nos deparado com fórmulas um pouco mais sutis, mas igualmente comprometidas com o realismo mágico que move uma multidão a adorar uma caixa de remédio. Esse é o caso da ideia de um novo normal, mais um ato falho que agora aguça imaginações. Ocorre que, nessa fórmula, o “normal” está longe de ser sinônimo para regular; antes, trata-se de um desejo normalizante. O novo normal não descreve as transformações pelas quais estamos passando com a pandemia. O novo normal apenas escracha nossa pulsão normalizadora do caos. Essa não é a expressão que descreve o futuro, mas sim a tentativa de normalizar nosso presente.
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