Nas montanhas verdes da Nova Inglaterra

Durante recente o recesso acadêmico, encontrei uma professora de filosofia do Middlebury College, minha colega dos tempos de doutorado, e aproveitei para levar minha filha para uma daquelas visitas a faculdades que fazem parte da rotina de estudantes do ensino médio norte-americano.

por Felipe Pait

Durante recente o recesso acadêmico, encontrei uma professora de filosofia do Middlebury College, minha colega dos tempos de doutorado, e aproveitei para levar minha filha para uma daquelas visitas a faculdades que fazem parte da rotina de estudantes do ensino médio norte-americano. Vamos então fazer um intervalo entre jogos matemáticos e temas metamágicos para falar sobre ensino de engenharia, assunto às vezes enjeitado pelas comunidades acadêmicas dedicadas ao estudo da pedagogia, da engenharia, e até do ensino da engenharia.

Middlebury, numa pequena cidade homônima encravada no meio das Green Mountains do estado de Vermont, é um tradicional “liberal arts college”, uma instituição de ensino superior típica dos Estados Unidos. No college o estudante persegue uma formação interdisciplinar e flexível, que pode conduzir a uma especialização profissional, ou ao ingresso imediato no mundo do trabalho. Nos Estados Unidos cursos profissionais, como os de medicina, direito ou arquitetura, em geral são considerados de pós-graduação e exigem o estudo superior prévio em nível de graduação. Os colleges oferecem apenas os estudos de graduação, e o termo universidade se refere às instituições que também oferecem cursos profissionais ou acadêmicos em nível de pós-graduação. O sistema americano é diferente do brasileiro, onde as universidades se constituem em conjuntos de faculdades especializadas com graus variáveis de isolamento interno, e as faculdades por sua vez se organizam em torno da habilitação para o exercício de profissões específicas, sejam estas profissões existentes no mundo do trabalho ou apenas marcos conceituais nos diplomas regulatórios.

As universidades americanas, estaduais ou privadas sem fins lucrativos, são mais conhecidas entre nós devido aos estudos avançados, e tomaram sua forma atual a partir do século XIX inspiradas nas universidades inglesas e na pesquisa científica nas universidades alemãs. Porém, mesmo nas universidades o ensino de graduação se inspira fortemente no modelo de educação em artes liberais dos colleges, mal conhecido entre nós, mas indispensável para entender o funcionamento do sistema universitário dos EUA. Espera-se do estudante do college que escolha livremente 4 ou 5 matérias por semestre, combinando uma formação geral nas diversas áreas de estudo com um aprofundamento em algumas disciplinas, conduzindo ao final de 4 anos a uma área de concentração (“major”). Ou seja, não há nem especialização precoce nem um ciclo básico comum, mas escolhas individuais desde o princípio dos estudos. Os estudantes nas escolas mais acadêmicas e prestigiadas quase todos vivem dentro ou nas imediações ao campus durante os 8 meses letivos, aproveitando o recesso de verão para outras atividades, incluindo estágios. Veja mais sobre o tema no artigo de Heloisa Pait “As Faculdades de Artes Liberais Americanas” na coletânea Os Estados Unidos No Mundo Atual.

Middlebury segue um calendário um pouco diverso, com 2 períodos intercalados de um mini-período de 1 mês, talvez em resposta aos rigores do inverno nas montanhas da Nova Inglaterra. Durante esse mês os estudantes cursam apenas 1 matéria, uma quebra de rotina que oferece aos professores oportunidade de criar disciplinas experimentais ou multi-disciplinares. Talvez fosse uma boa sugestão para os cursos superiores brasileiros, engessados por grades horárias, pré-requisitos, normas, diretrizes, e bases curriculares que tornam nossa universidade um centro de estudos menos enriquecedor do que merecem estudantes e professores.

Por motivos históricos, o estudo de engenharia nos EUA ocorre no nível de graduação, ao contrário de especialidades como o direito, a medicina, a arquitetura. A variedade de conhecimentos da engenharia contribui para tornar as concentrações em engenharia muito exigentes, criando problemas num curso com a duração de 4 anos. Muitos colleges não oferecem a engenharia como opção de ênfase.

Middlebury usa uma fórmula cada vez mais comum, evitando a especialização precoce, que consiste em 3 anos de artes liberais seguidos por mais 2 anos de estudos de engenharia em universidade próxima. A duração total do curso fica próxima ao padrão comum europeu atual estabelecido pelo acordo de Bologna, e dos 5 anos da formação em engenharia no Brasil.

Em parte devido à sua localização rural, são importantes na cultura acadêmica de Middlebury, além dos esportes amadores, as atividades ao ar livre, e ligadas à agricultura e ao meio ambiente. A faculdade se esforça para oferecer aos estudantes de graduação oportunidades de envolvimento em pesquisa, mesmo não sendo uma instituição primordialmente voltada para investigações avançadas. Middlebury anuncia com orgulho ter um campus neutro em carbono. Essa iniciativa surgiu há 10 anos a partir de um projeto de formatura de estudantes, e hoje o campus produz energia usando fontes renováveis de forma a compensar o uso que faz de combustíveis fósseis, mesmo incluindo as significativas necessidades de calefação durante o longo inverno. Claro que a transformação exigiu investimentos e comprometimento de todas as instâncias, mas o fato de ter surgido a partir de ideias de alunos realmente serve como propaganda efetiva do sistema de ensino do college. Repensar o uso de energia no campus é um projeto criativo que exige um pensamento interdisciplinar, combinando aspectos humanos, de gestão, de engenharia, e da ciência do meio ambiente, muito além das barreiras departamentais do conhecimento apenas formal e mensurável.

Na Universidade de São Paulo também é possível identificar projetos de gestão e engenharia que poderiam tornar o uso do campus mais agradável e eficiente. Um exemplo é o transporte coletivo, feito por diversas linhas de ônibus com trajetos definidos caso a caso ao longo dos anos. Pode-se observar que em certos trechos os coletivos trafegam semi-vazios, enquanto em outros eles ficam superlotados, e que os passageiros aguardam longamente nos pontos enquanto vários ônibus passam indo e vindo em direções diferentes. A otimização de trajetos de linhas de ônibus é um problema de engenharia bastante complexo, objeto de pesquisas acadêmicas na USP e pelo mundo afora. Matematicamente, o desafio ocorre porque uma solução adotada ou proposta, ainda que razoável, pode ser de tal sorte que não é possível obter melhoras através de pequenas modificações. É o problema dos extremos locais na teoria da pesquisa operacional – um problema relacionado ao que encontramos ao buscar a melhor estratégia para um jogo de tabuleiro como o xadrez, o Go, ou o Hex. A busca de soluções ótimas, que maximizam o objetivo de transportar passageiros com rapidez dentro de um orçamento limitado, exige a consideração de todas os conjuntos de rotas possíveis, que são em número astronômico.

Outro exemplo é o uso dos estacionamentos e das vias do campus do Butantã por automóveis, que a universidade hoje oferece gratuitamente e sem controle, a despeito da complicada situação financeira que obriga a executar cortes em outras despesas. Seja do ponto de vista de política urbana, de justiça social, ou do bom uso do patrimônio público, é difícil fundamentar esse subsídio ao uso do automóvel em uma cidade como a nossa. Para alterar essa política e cobrar pelo uso dos bens públicos, são necessários cuidados com engenharia e administração da cobrança e do controle do uso, com os previsíveis protestos dos beneficiários dos subsídios costumeiros, e com os aspectos econômicos e legais da cobrança.

Já foram desenvolvidos na USP projetos de formatura estudando a cobrança pelo estacionamento e trânsito de passagem pelo campus, bem como de métodos para racionalizar o trajeto das linhas de ônibus internas. Ambos são projetos muito mais simples do que a mudança da matriz energética do campus, e tenho cautelosa esperança de que sua concretização leve menos que uma década. Falando nisso, os telhados planos preferidos nas construções universitárias parecem muito adequados para a captação de energia solar. Sejam quais forem os projetos, a integração entre a busca do conhecimento científico e a solução de problemas práticos interdisciplinares é parte fundamental da educação de futuros profissionais, na engenharia como em todas as áreas do conhecimento.

A contribuição das engenharias a um campus mais generoso com o meio ambiente e com as pessoas que nele transitam e trabalham ajudaria a comunidade acadêmica a construir uma verdadeira universidade, onde conhecimentos particulares não são base para nichos de poder, mas sim expressões de uma busca coletiva por meios de alcançar uma vida melhor.

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