Os dilemas da presunção de inocência e o debate que nunca foi

Entre o garantismo de conveniência e o pragmatismo ad hoc, entre o legalismo estático e o abandono da legalidade em nome das circunstâncias, existe um caminho possível — e constitucional.

por Gilberto Morbach

I do not forget the position assumed by some that constitutional questions are to be decided by the Supreme Court, nor do I deny that such decisions must be binding . . . At the same time, the candid citizen must confess that if the policy of the Government upon vital questions affecting the whole people is to be irrevocably fixed by decisions of the Supreme Court, . . . the people will have ceased to be their own rulers, having to that extent practically resigned their Government into the hands of that eminent tribunal.”

Abraham Lincoln, First Inaugural Address (Mar. 04, 1861)

 

I. A verdadeira — e simples — questão

No último dia 23 de outubro, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento e deu início aos votos dos ministros sobre a possibilidade de execução da pena após condenação em segunda instância. Com um placar de 4 a 3 pela constitucionalidade da medida, o julgamento segue no início de novembro após ter sido suspenso pelo ministro presidente da Corte, Dias Toffoli. (Ainda que tenham sido alegadas questões de calendário, a nova suspensão é representativa da Era Toffoli, em que o Supremo decide que é hora de decidir amanhã sobre começar a decidir na semana que vem.)

Em um país cada vez mais polarizado — e que jamais foi capaz de naturalizar uma noção genuína de rule of law — a controvérsia tem sido tão intensa quanto erroneamente articulada em torno de elementos que não guardam relação com o julgamento, com a lei propriamente dita. Afinal, embora o debate público atual (e até os votos de alguns dos próprios ministros) pareça(m) sugerir o contrário, a questão é simples: o STF está julgando ações declaratórias de constitucionalidade. 

Fulanização à parte, o julgamento não é sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sobretudo, não se está a discutir se a maioria da população é a favor ou contra a execução antecipada da pena ou como deve ser a política em matéria criminal no país. Esse não é o papel do Supremo Tribunal Federal. O que se discute é a (in)constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal. 

O dispositivo diz que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

A redação do dispositivo foi recepcionada pelo CPP após uma alteração do Código em 2011. Ou seja, por mais interessantes que possam ser as análises jurisprudenciais sobre entendimentos anteriores do Supremo e seus ministros — por mais que elas possam acabar revelando algo sobre suas convicções genuínas —, elas não mais se aplicam. Não se trata (mais) apenas de uma questão de interpretação constitucional, sobre juízos acerca da melhor leitura do princípio da presunção de inocência. Trata-se de uma discussão sobre a (in)constitucionalidade de um dispositivo legal à luz desse princípio.

Em seu art. 5º, LVII, a Constituição Federal diz que “ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Esse, basicamente, é o princípio da presunção de inocência tal como sacralizado na lei positiva.

Daí por que, do ponto de vista jurídico que, afinal, é (ou deveria ser) a perspectiva adotada por uma Suprema Corte —, aqueles que são favoráveis à execução antecipada da pena via entendimento jurisprudencial têm uma difícil tarefa: a de demonstrar que o art. 283 do Código de Processo Penal não é compatível com a Constituição Federal.

Dito de outro modo, e explicando uma vez mais por que a questão é mais simples do que parece: o julgamento é sobre a (in)constitucionalidade do art. 283 do CPP à luz do princípio constitucional da presunção de inocência. Sendo assim, à ala favorável à execução provisória não basta (apenas) demonstrar que a prisão após decisão em segunda instância é possível; para que o entendimento seja legítimo, é necessário demonstrar que a Constituição Federal exige a prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Só assim se poderia declarar inconstitucional o art. 283.

Não basta argumentar que a melhor leitura do inciso LVII do art. 5º da Constituição permite a prisão antes do trânsito; o art. 283 torna-a ilegal. Existe uma vedação legal, infraconstitucional, à execução provisória da pena. Ainda que se argumente que, por si só, o princípio da presunção de inocência não impede a prisão antes do trânsito em julgado, o fato é que ele foi ampliado pela legislação infraconstitucional. 

Em apertada síntese: o art. 283 do CPP veda a prisão após decisão em segunda instância. Para que o texto seja declarado inconstitucional, o STF precisa demonstrar que a Constituição Federal não apenas permite, mas exige a execução antecipada da pena. Basta uma leitura rápida dos textos legal e constitucional para perceber que a tarefa é muito difícil. Como, afinal, declarar inconstitucional “um dispositivo legal que reproduz o próprio texto constitucional a ser por ele guardado?

 

II. Mitos, verdades, e a função da Suprema Corte

Há muitas razões pelas quais uma questão constitucional que deveria ser simples acaba transformada em algo complexo. Algumas delas são absolutamente legítimas e devem ser enfrentadas em tempo e lugar adequados; outras são lamentáveis, seja por mal-entendidos ou por argumentos antijurídicos (por vezes até falaciosos e oportunistas). 

A própria noção de império da lei é, entre nós, um desses lamentáveis mal-entendidos. Jamais se naturalizou, no país, uma ideia robusta de impessoalidade, de respeito à lei para além de casuísmos.[2] Nesse cenário, não é nada mais que natural que o grande público esqueça tão facilmente o fato de que a questão é, antes de tudo, constitucional.

Para além disso, há ainda uma série de mitos que obscurecem e dificultam o enfrentamento da matéria em julgamento. Um desses mitos, gravíssimo, é o de que eventual entendimento contrário à prisão antes do trânsito em julgado levaria à soltura de classes inteiras de presos perigosos. Por equívoco ou má-fé, aqueles que sustentam essa posição esquecem que a enorme maioria dos acusados ou condenados por crimes de natureza grave e gravíssima, hediondos, estão presos por razões que não têm a ver com a execução provisória ou a presunção de inocência. Todo preso que implique risco à investigação policial ou à ordem pública já podia, pode e poderá ser preso, até desde o primeiro grau, por força de prisões cautelares, independentemente do entendimento fixado no julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade.

Esse detalhe não é só um detalhe: confundir institutos jurídicos é o tipo de coisa que dá margem às notícias falsas como a que superestima em, no mínimo, 3.350% o número de presos beneficiados por eventual declaração de constitucionalidade do art. 283. Os mais de 169.000 presos das correntes de WhatsApp são no máximo, segundo o CNJ, 4.895. Não só isso, nenhum desses presos seria libertado automaticamente.

Esse tipo de confusão é escusável quando vem de um leigo e tem até sua razão de ser quando se considera que os indicadores de violência no Brasil são assustadores. O ponto é que é também assustador que a confusão seja reforçada e incentivada por um ministro do Supremo Tribunal Federal que profere seu voto em um julgamento de ADC. 

O ministro Luiz Fux chegou ao ponto de citar casos de grande repercussão, como os crimes cometidos por Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, e Roberto Aparecido Alves Cardoso (conhecido como “Champinha”). O pai e a madrasta da menina Isabella Nardoni foram ambos presos de forma preventiva; “Champinha”, menor de idade, respondeu sob as regras do ECA em um episódio que, discussões que levanta à parte, jamais teve qualquer relação com qualquer regra do CPP. Ou seja, nada disso tem a ver com o debate (constitucional) sobre a presunção de inocência. A estratégia adotada por Fux é um desserviço à noção e à compreensão do papel do direito no debate público. O ministro emprega um argumento que, não apenas nada tem de jurídico, é completamente falso, populista — na acepção mais rasa do termo — e reforça uma lógica que, no limite, fragiliza a autoridade da própria Suprema Corte diante da opinião pública.

O ministro Luiz Fux.

Dito isso, e deixando os absurdos de lado, seria ingenuidade — ou até desonestidade intelectual — dizer que, pelo fato de ser muito mais simples do que parece do ponto de vista constitucional, a questão não é complexa do ponto de vista de moralidade política. Ainda que se ignore — como deve ser — os argumentos que transformam moinhos de vento em monstros, o debate sobre os parâmetros para o início de cumprimento de pena é mais que legítimo; é necessário. Embora o papel do Supremo Tribunal Federal seja e deva ser o de fazer valer a autoridade do direito vigente, abstrair as questões de moralidade política da discussão não faz com que elas desapareçam.

Muitos, talvez a maioria dos que defendem a prisão após decisão condenatória em segunda instância têm a dignidade de não optar por argumentos objetivamente falsos. É verdade que a maior parte dos países do mundo permite a execução da pena após a condenação em segunda instância. É verdade que os processos judiciais parecem eternos. É verdade que há um enorme paradoxo em ver, por exemplo, Gilmar Mendes — um dos ministros que reivindicam para o STF poderes de investigação em um inquérito inconstitucional e sem objeto — subitamente alçado a símbolo de respeito à lei (e, tornando o paradoxo ainda maior, sendo celebrado pelo casuísmo dos mesmos que antes o tinham como inimigo público). É verdade que, por muito tempo, no país dos estamentos, foi muito difícil imaginar poderosos criminosos de colarinho branco atrás das grades. É verdade que há algo de constrangedor em um sistema que reconhece o valor da liberdade de alguns ao mesmo tempo em parece incapaz de fazê-lo em casos de réus pretos, pobres e primários.

Tudo isso é verdade. 

Mas também é verdade que, em uma democracia liberal, o papel genuíno de uma Suprema Corte é fazer valer a autoridade do direito e decidir de acordo com a ordem legal vigente. À direita, à esquerda, no próprio Supremo há quem pareça disposto a abrir mão disso. “O Supremo é um tribunal político”, “é tudo jogo de poder”. “O STF deve ouvir a voz das ruas”, deve ser “iluminista” e “empurrar a história” contra a “corrupção” e a “impunidade”.

A pergunta que fica, porém, é a seguinte: senão com base no direito, a Suprema Corte decidirá com base em quê? 

De acordo com o ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, o STF precisa de um “giro empírico-pragmático”. É claro que decidir com responsabilidade significa levar em conta as circunstâncias da realidade. Mesmo assim — e sem entrar no mérito da frágil empiria empregada no voto do ministro, que já usou números equivocados em argumentações prévias —, o papel de um ministro de uma Corte Constitucional é o de interpretar o direito vigente, não o de fixar políticas públicas em seu próprio nome.

Por mais que isso imponha dificuldades, por mais que as exigências que o direito coloca sejam altas, ao menos o compromisso com uma decisão verdadeiramente jurídica ainda é o critério decisório mais seguro a exercer controle e estabelecer limites à atuação dos tribunais. Uma certa versão de pragmatismo jurídico, que tem o impacto decisório como principal ratio, é perigosa porque não tem qualquer instância superior que o regule. 

Legitimar o ativismo judicial em nome de conveniências políticas momentâneas pode parecer positivo quando juízes decidem na linha daquilo que nos parece moral ou politicamente melhor — mas e quando for o contrário? O que acontecerá quando eles não mais favorecerem aquilo que desejamos enquanto maioria eventual em uma comunidade política? Hungria e Venezuela mostram que a instrumentalização e o aparelhamento das Cortes, além de não ser privilégio exclusivo de apenas um lado no espectro político, são uma ameaça verdadeira. Aceitar a politização integral do direito como realidade pode ter consequências graves, ainda que elas demorem a aparecer.

Uma decisão judicial que não tem o compromisso de decidir com base no direito já é perigosa, portanto, até mesmo quando não parece haver direito claramente aplicável ao caso concreto. Nem mesmo nesses casos juízes devem abrir mão de critérios jurídicos em nome de juízos morais ou políticos, exatamente pelo fato de que essa não é sua competência funcional. Em vez de abandonar o direito, trocando-o “pelo canto das sereias da moralidade ao primeiro sinal de dificuldade”, o juiz deve perguntar “o que decorre da melhor compreensão sobre o direito [como um todo] em um caso como este?” Mesmo quando não se apresentar de forma direta ou explícita, a resposta judicial deve ser jurídica. Isso porque, nas palavras de Waldron, “é isso que o império da lei exige. Decidir a questão do ponto de vista moral é submetê-la ao império dos homens”.[3] 

Jeremy Waldron.

No caso das ADC sequer é necessário ir tão longe. Se aceita a premissa de que o papel de uma Corte Constitucional é interpretar corretamente aquilo que a Constituição determina, a resposta jurídica não parece distante. A tão criticada ministra Rosa Weber (muito atacada quando decidiu a favor do entendimento vigente por entender que, em um julgamento de habeas corpus, a colegialidade deveria prevalecer) definiu bem a questão: “Não se tratando de prisão de natureza cautelar, todavia o fundamento da prisão — a prisão pena — será a formação do que chamamos de culpa. E, segundo a norma expressa da Constituição, essa convicção somente pode irradiar efeitos normativos a partir do momento definido como o trânsito em julgado da condenação criminal.”[4]

A ministra Rosa Weber.

Ainda que se concorde com a execução da pena após decisão de segunda instância, é possível sustentar que a Constituição de 1988 exige a prisão antecipada — e, portanto, que o art. 283 do Código de Processo Penal é inconstitucional? Não me parece ser o caso, e os riscos trazidos pela flexibilização de parâmetros constitucionais por parte de juízes e tribunais parecem-me demasiadamente altos. “Gostemos ou não, esta é a escolha político-civilizatória manifestada pelo Poder Constituinte, e não reconhecê-la importa reescrever a Constituição para que ela espelhe o que gostaríamos que dissesse, em vez de a observarmos. O Supremo Tribunal Federal é o guardião do texto constitucional, não o seu autor.”[5]

Isso não significa dizer que esses parâmetros constitucionais não possam ser (re)discutidos. 

Pessoalmente? Concordo com a ideia de que a vedação legal à prisão já após decisão de segunda instância é algo que não se alinha à grande maioria das democracias modernas e que traz uma série de embaraços práticos. Como disse, discutir o critério legal para início de cumprimento de pena é algo que me parece não apenas possível, mas necessário. Acontece que as coisas têm seu lugar.

 

III. Um possível caminho (constitucional)

Até aqui, meu ponto é, repito, muito simples: (i) existe um dispositivo legal infraconstitucional que determina que a prisão, exceção feita às medidas cautelares, só se dá após o trânsito em julgado. Parto da premissa de que, (ii) ao STF, cabe interpretar o direito vigente, de modo que um entendimento jurisprudencial pela possibilidade de execução provisória da pena precisa, necessariamente — sobretudo quando é este o objeto em julgamento —, demonstrar a inconstitucionalidade desse dispositivo. Assim, (iii) para que o art. 283 seja declarado inconstitucional, é necessário que a ala favorável a essa leitura demonstre que a Constituição exige a prisão antes do trânsito. Considerando-se os textos constitucional e legal, e a função da Suprema Corte em um contexto de liberalismo democrático, (iv) tal como colocada a ordem legal hoje, a prisão antes do trânsito em julgado é inconstitucional.

Mas e as verdades incômodas? Devemos simplesmente aceitar que um processo comum possa percorrer quatro graus de jurisdição, sobrecarregando o Judiciário e, em última análise, prejudicando o acesso à Justiça? Não é, afinal, indiscutível que a prisão já é a realidade para muitos réus pobres, e que as democracias mais avançadas não fazem as mesmas exigências prévias para o início de cumprimento de pena? 

Isso é muito relevante. Mas não cabe ao Supremo discutir essa questão. Cabe ao Parlamento.

É verdade, já está em tramitação uma Proposta de Emenda à Constituição no sentido de autorizar a prisão antes do trânsito em julgado. Falo da PEC 410/2018, que alteraria o texto do art. 5º, LVII, para prever que “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.

Também esse não me parece ser o melhor caminho. Ainda que se apresente pela via adequada, a proposta parece muito frágil, na medida em que o § 4º do art. 60 da Constituição Federal proíbe, entre outras coisas, emendas que venham a abolir “os direitos e garantias individuais”. É claro, cabe discussão se a PEC realmente viola essa exigência constitucional; o ponto é que a discussão por si só já demonstra a fragilidade da proposta. Seria muito prejudicial ao próprio movimento em favor de uma Justiça mais célere que todo o ônus político de uma PEC do tipo fosse assumido para logo depois terminar em uma inconstitucionalidade declarada.

Existe um caminho melhor, constitucional, e ele foi indicado ainda em 2011: pela proposta que ficou conhecida como PEC dos Recursos, articulada pelo então ministro Cezar Peluso.[6] 

Basicamente, os problemas enfrentados pela proposta de emenda do ministro Peluso eram exatamente a lentidão dos processos e a impunidade. Uma vez que “[o] Brasil é o único país do mundo em que um processo pode percorrer quatro graus de jurisdição”, e que a Constituição fixa o trânsito em julgado como parâmetro, a PEC dos Recursos procurava estabelecer o fim do processo após duas decisões judiciais.

O ministro Cezar Peluso.

Pela PEC dos Recursos”, explicava o ministro Peluso, “os processos terminarão depois do julgamento do juiz de primeiro grau e do tribunal competente”. Basicamente, a PEC modificava o status jurídico dos recursos aos tribunais superiores — STJ e STF —, transformando-os em ações autônomas. Não mais tendo o caráter de recursos, sua interposição continuaria possível sem obstar a configuração do trânsito em julgado das decisões. Estaria respeitado, assim, o critério legal para início de cumprimento da pena, uma vez que transitaria em julgado a decisão já em segunda instância.

Nas palavras de Cezar Peluso, “[o] projeto não [interferia] em nenhum dos direitos garantidos pela Constituição, como as liberdades individuais, o devido processo legal, a ampla defesa, o tratamento digno do réu. O que se veda[ria] é apenas a possibilidade da utilização dos recursos para perpetuar processos e evitar o cumprimento das decisões”. O ministro tem razão, porque, não apenas os recursos continuariam existindo, (i) as decisões poderiam ser atacadas por meio de ações autônomas e, sobretudo, (ii) a PEC em nada alteraria o remédio constitucional do habeas corpus que é, este sim, o instrumento mais utilizado para reverter prisões ilegais.[7] 

O critério constitucional de 1988, estabelecendo quatro graus de jurisdição para o trânsito em julgado, não parece mais se justificar à luz daquilo que justificou sua adoção à época. Mas o critério é esse. Modificá-lo via entendimento jurisprudencial, quando não há inconstitucionalidade em um texto legal que só reforça o que a Constituição estabelece, é arriscado e ilegítimo.

Não cabe ao STF modificar os critérios constitucionais, mesmo quando a realidade mostra que existe a possibilidade de manobras protelatórias que, degradando a intenção do Constituinte, retardam o andamento dos processos e impedem a execução de sentenças. Mas a realidade é essa. Respeitar o critério enquanto posto não significa ignorá-la, não significa que o critério não possa ser (re)discutido pelas vias legítimas.

A Constituição de 1988 acerta ao proibir que direitos fundamentais sejam flexibilizados. O direito, afinal, é a limitação institucional da autoridade por excelência. Não é necessário nem sequer desejável, então, que garantias jurídico-constitucionais sejam atacadas com base em juízos de moralidade política — sobretudo por intermédio de uma superinterpretação jurisprudencial ilegítima. 

O que deve ser enfrentado, sim, é um sistema recursal disfuncional que acaba por dar razão aos argumentos daqueles que preferem atacar as garantias; um sistema que sobrecarrega os tribunais — desvirtuando o papel de Corte Constitucional do STF e dificultando o acesso à Justiça — e serve de garantia de impunidade àqueles que conseguem utilizá-lo num país que, ao mesmo tempo, parece até hoje incapaz de reconhecer o princípio da insignificância. 

Hoje, a prisão após decisão condenatória em segunda instância é inconstitucional. Mas não precisa ser. Uma nova PEC dos Recursos resolveria problemas reais, graves, sem que para isso fosse necessário recorrer ao Supremo em busca de uma inconstitucionalidade que não existe. Entre um pragmatismo raso e um legalismo de ocasião, existe um justo meio que respeita a legalidade e a realidade brutal de um país que só será capaz de dar conta dela quando souber lidar com seus dilemas e idiossincrasias de modo adequado e legítimo.

. . .

[1] Ver, nesse sentido, o texto da petição inicial da ADC 44, elaborada por Lenio Streck e André Karam Trindade, com revisão de Juliano Breda. Os autores demonstram que a declaração de inconstitucionalidade do art. 283 opera uma “superinterpretação” da expressão “trânsito em julgado”, ultrapassando os limites semânticos do texto legal e os próprios limites da interpretação. Streck atuou como amicus curiae no julgamento perante o Supremo Tribunal Federal e, em sua sustentação, reforçou os argumentos da ADC, lembrando o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal, a responsabilidade política subjacente ao ato decisório e o paradoxo de uma declaração de inconstitucionalidade em um texto infraconstitucional que reforça o que a Constituição (já) diz.  

[2] O tratamento que é por vezes dedicado ao direito por alguns setores da imprensa não especializada parece-me ter uma parcela de responsabilidade nisso, ao distorcer e fulanizar ainda mais uma questão já distorcida e fulanizada. Exemplo disso, por todos, é um tweet da jornalista Mônica Bergamo após o voto da ministra Rosa Weber: “Rosa Weber vota contra prisão depois de condenação em segunda instância e Lula pode ser solto”.

[3] Waldron, Jeremy. Stare Decisis and the Rule of Law: A Layered Approach. Michigan Law Review, vol. 111, n. 01, 2012, pp. 15-16.

[4] ADCs 43, 44 e 58. Voto da Senhora Ministra Rosa Weber.

[5] ADCs 43, 44 e 58. Voto de Rosa Weber.

[6] A PEC foi desidratada e, em sua versão final, simplesmente autorizava a prisão após decisões condenatórias. O próprio ministro disse à época que isso seria inconstitucional. Além disso, como lembrou o Prof. Rafael Mafei, em belíssimo ensaio sobre todo esse debate, “[o] fato de que o presidente do STF tenha buscado essa alteração por emenda há pouquíssimo tempo sugere o reconhecimento institucional de que não seria possível fazê-lo por mera interpretação”. 

[7] Cf. Streck, Lenio Luiz. De Oliveira, Rafael Tomaz. As Garantias Processuais Penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, pp. 23-30.

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