por Tiago Pavinatto
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Enquanto escrevemos, apesar da perspectiva (e esperança) de derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), vige a decisão monocrática do Ministro Kassio Nunes que permitiu a abertura de templos religiosos requerida pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos.
Sobre o Requerente, a impressão inicial e que fica — além da curiosa imagem de cruzados iconoclastas do mito — é de absoluta estranheza. Como pode ser, de um lado, jurista evangélico de um ordenamento jurídico laico? De outro, como pode um evangélico negar a César o que é de César (o ordenamento jurídico do Estado)?
De qualquer modo. Ultrapassado essa dúvida deontológica, vamos à decisão do Ministro Kassio: é decisão de direito empresarial disfarçada atrás de um biombo retrátil (e, por isso, expansível) que é o direito fundamental de liberdade de crença e culto, o qual chamaremos de direito de liberdade religiosa.
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A liberdade religiosa é um direito. Mesmo que fundamental — e Norberto Bobbio ensina que da finalidade visada pela busca do fundamento nasce a ilusão do fundamento absoluto —, é um direito e, definindo o direito em uma só palavra, ele é limite.
A religião, portanto, só pode extrapolar os limites da reserva mental porque o direito assim estabeleceu. A experimentação social das liberdades se deve ao direito; ela, por ser parte do direito, é o próprio direito — mas não todo o direito.
Como no corpo humano, o direito da liberdade religiosa é uma célula que coabita o mesmo espaço com incontáveis outras células e, caso sua mitose se acelere e vá além dos limites estipulados para o conjunto, torna-se câncer e prostra todo o corpo. Tal como a mitose é fundamental para a célula, a liberdade é fundamental para o Estado Democrático de Direito. Contudo, tanto o corpo humano quanto o Estado, para que não padeçam e morram, devem combater o anormal aceleramento e manter dentro de certos limites, respectivamente, as mitoses e as liberdades.
Por essa razão, definir o direito fundamental da liberdade religiosa é tarefa sempre incompleta — até por ser inglória qualquer definição fechada de religião (coisa que nem a Constituição brasileira, acertadamente, faz) — e, dado não ser de nosso interesse ficar, como os cegos hindus, apalpando um elefante, interessa-nos dizer que a liberdade é, essencialmente e sempre, ilimitada. Não fosse, não seria liberdade.
Todavia, a expressão “direito de liberdade” não tem a mesma essência da palavra “liberdade”. Se direito é limite, falar em “direito de liberdade” é dizer “permissão para tudo dentro dos limites”, pois, quando a “permissão para tudo” cai nas graças do agente limitador, o legislador, é certo que, não tendo sido ela o fiat lux do ordenamento jurídico, já estejam estabelecidos limites, outros direitos dentro do Direito com os quais, tal qual a célula saudável, deverá conviver e se desenvolver em harmonia, cabendo lembrar, por fim, que esses limites identificados externamente podem ser alterados, no que muda, restringindo-se ou se expandindo, o espaço de “passeio” da liberdade positivada.
Logo, o direito da liberdade religiosa é a possibilidade de fazer tudo o que quisermos em decorrência de nossa orientação religiosa dentro dos mutáveis limites (fatores exógenos) do Direito, o todo do qual faz parte e sob o qual se assenta.
Mesmo que fundamental, existem outros direitos tão fundamentais quanto ele… Sem contar a peculiaridade do choque da liberdade religiosa de um com a liberdade religiosa de outro, uma vez que as entidades religiosas vivem numa espécie de “cativeiro babilônico” no atual Estado constitucional, laico e multicultural, em contínuo e ininterrupto teste dos limites da aceitação do pluralismo.
Somente a dimensão interna, subjetiva, desse direito é algo absoluto e não suscetível de restrição, haja vista que a reserva mental, em qualquer caso, é a última e, até o momento e a depender do desenvolvimento das Neurociências, intransponível barreira de que dispõe o indivíduo, onde, como Álvaro de Campos encarnado em Pessoa, podemos sentir tudo de todas as maneiras, ter todas as opiniões, ser sinceros contradizendo-nos a cada minuto, desagradar a nós próprios pela plena liberdade de espírito, ir para a cama com todos os sentimentos, ser souteneur de todas as emoções e trocar olhares com todos os motivos de agir.
Observamos, por derradeiro, que, mesmo a liberdade natural, para que o sujeito continue a gozar dela é preciso, obviamente, que ele viva. Então, se o gozo da liberdade natural encontra os limites na Natureza, o direito da liberdade os encontra no Direito. Assim e sempre, não pode haver liberdade que perdure sem responsabilidade.
A liberdade religiosa é corolário da dignidade humana, direito fundamental basilar que predica outro direito fundamental de primeira ordem que é a vida. Não basta vida; é fundamental a vida com dignidade.
Há que se esclarecer, embora óbvio, que, apesar da vida digna configurar, em nosso ordenamento, a grande ordem fundamental, a vida precede a dignidade: pode haver vida sem dignidade, mas é impossível dignidade sem vida.
Portanto, em tempos de peste, a dignidade humana integral, em todo seu esplendor, com o gozo de todas as liberdades, fica reduzida para que se preserve a vida através da saúde, sem a qual não pode haver dignidade nem indignidade.
A decisão do Ministro pela abertura de templos religiosos fere a lógica jurídica mais elementar, bem como o pedido da Associação evangélica fere a lógica cristã mais elementar: desprovidas de qualquer ascética e de toda a koinonia cristã, evidenciam a decadência da fé e a profanação do sagrado — inserido nas relações de oferta e procura de um mercado de consumo específico através de bens simbólicos, articulados e sustentados por meio da crença ou, ainda, pelo inegável recrudescimento da velha venda de indulgências revista à luz do materialismo moderno (uma redenção prêt-à-porter, digamos) — por religiões cujos templos estão repletos de fiéis que mais parecem clientes buscando soluções mágicas para os problemas do cotidiano.
Disso decorre que o evangélico profana o Cristo, que se deu na cruz pela raça humana como sacrifício último e, pela ressurreição, condenou a morte exigindo a vida em comunidade. Viver em comunidade não significa somente estar fisicamente junto, significa importar-se, preocupar-se, esforçar-se e privar-se pelo outro. Ao evangélico deve bastar, em tempos de peste, rezar em casa com o irmão, pois, diz o evangelista que Cristo estará onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome (Mt 18,20). Ou Jesus está equivocado?
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Um fato curioso merece registro: tem sido a tônica de muitas igrejas evangélicas pentecostais e, especialmente, neopentecostais — estando à frente a Igreja Universal do Reino de Deus com seu nababesco Templo de Salomão — uma deturpada utilização dos textos e ornamentos judaicos em seus cultos em detrimento até do próprio Evangelho (numa corrente de evangelismo antievangélico portanto). Essa figura “judangélica” ou “evandaica”, contudo, ignora que o judaísmo, que se firmou dentro e floresceu ao redor Templo, sobrevive bastante bem sem essa estrutura central desde o ano 70 da nossa era (há 1950 anos apenas!), quando o Império Romano devastou Jerusalém e, daí, desenvolvendo-se como judaísmo rabínico. Da matriz cristã, a Igreja Católica romana (que encontra, na comunhão eucarística, um motivo para a abertura do templo), essas igrejas também estão em dissintonia, pois aquela tem apoiado o isolamento social.
O pedido dos evangélicos prejudica a comunidade e a decisão do Ministro só homenageou um comércio em detrimento à vida: no minuto seguinte ao da decisão, a Igreja Mundial do Poder de Deus, do famigerado Waldomiro Santiago, reuniu um grande número de pessoas e divulgou, ela mesma, imagens da grande aglomeração formada sem nenhum respeito às medidas de distanciamento social entre os presentes.
Ouvimos, certa feita, um discurso feito abertamente por um bispo neopentecostal: “Quem é maior: Deus ou o cardiologista? Quem é maior: Deus ou o oncologista? Em quem você deve confiar: em Deus ou nos médicos?”
Esse é um exemplo que demonstra como muitos fiéis dessas igrejas abandonam tratamento médico e, quando a condição deles piora, recorrem ao sistema público de saúde — que é sustentado pelo mesmo Estado que isenta as igrejas de impostos e permite construção de templos irregulares.
Ao mesmo tempo em que o Estado deixa de arrecadar impostos sobre cifra que ultrapassa 20 bilhões de reais, ele também acaba arcando com esses pacientes em estágio quase que irreversível das doenças (requerendo, portanto, um tratamento mais intensivo e, via de consequência da urgência, muito mais caro). Esse mesmo Estado, agora, banca a contaminação dos fiéis nesta pandemia indomada.
É uma situação assustadora decorrente da hipocrisia e desumanidade de um setor evangélico cheio de cólera.
Templos difíceis os nossos.