por Gabriel Rostey
Imposto goela abaixo a despeito de muitas reações contrárias e inaugurado de maneira açodada em 1971 pelo então prefeito biônico Paulo Maluf, em meio ao regime autoritário da Ditadura Militar e à crença do urbanismo brasileiro de que todos deveriam se locomover por automóveis, o Minhocão é o maior símbolo material dos intermináveis equívocos do planejamento urbano da capital paulista. Construído sobre o que era a principal avenida da cidade – historicamente era a Avenida São João o equivalente paulistano à Broadway ou à Champs-Elysées, e não a Avenida Paulista (e não é por casualidade que deixou de sê-lo) – o elevado teve um papel determinante na cicatriz espacial que arruinou seu entorno, promoveu a degradação do centro e manteve a decadência de bairros como Campos Elíseos e Barra Funda.
Até meados desta década, era ponto pacífico que, “em havendo condições no tráfego paulistano para que o elevado fosse desativado” (com a sociedade ainda priorizando a equivocada mentalidade rodoviarista), o ideal seria a sua eliminação. Entretanto, após a inauguração e sucesso do High Line, paradigmaticamente implantado em uma linha de trem elevada e desativada em Nova York, movimentos passaram a usar o caso nova-yorkino como modelo para o Minhocão e foram bem-sucedidos no trabalho de comunicação, levando muita gente a crer que seria possível repetir em São Paulo o que se viu na Big Apple.
É comum que defensores do chamado “Parque Minhocão” mencionem originalidade, inovação e criatividade quando falam sobre a proposta. Entretanto, tais características são justamente opostas a uma visão que surgiu na esteira hipster um tanto quanto modista e superficial de uma reprodução que não resiste a análises mais aprofundadas.
A maior prova de que a proposta nasceu pela inspiração de macaquear o High Line é que quinze anos antes do case americano já havia em Paris o Viaduc Des Arts, parte elevada de um parque igualmente implantado em uma antiga ferrovia, o Promenade Plantée (rebatizado Coulée Verte René-Dumont), e nem por isso pessoas militavam por transformar o Minhocão em parque suspenso. Foi realmente após o High Line e sua aura moderninha, acompanhado da eterna identificação que paulistanos sentem com Nova York, que a moda pegou em certos setores da sociedade, até chegar à Prefeitura, que anunciou a decisão de implantar no viaduto o chamado “Parque Minhocão”.
Mas a verdade é que as estruturas de ambos os casos internacionais não têm nada a ver com a do Minhocão. São de épocas muito anteriores, antigas ferrovias implantadas nos quarteirões de modo ideal a não interferir no entorno e preservar o espaço público, verdadeiras medidas civilizacionais para suas épocas. Completamente diferentes de um viaduto construído por sobre a via, que tampa a rua e aflige diretamente cerca de 230 mil moradores em pleno centro nervoso de São Paulo.
Viaduc des Arts: a antiga ferrovia parisiense, implantada em 1859 e desativada em 1969, conta com uma parte elevada de cerca de 1,5 km de extensão e é reconhecida como o primeiro parque suspenso do mundo. Fora a estrutura elevada, a única coisa em comum com o viaduto paulistano é o fato de passar lindeiro a uma via. A partir disso, absolutamente tudo é incomparável. Não ocupa a via pública, como o Minhocão, mas sim o limite dos quarteirões: o elevado está junto à lateral de prédios que foram feitos para não ter mesmo relação com o vizinho, ou seja, com empenas cegas que poderiam receber outros edifícios grudados ao lado. Desta maneira, o viaduto não faz qualquer sombra no resto da via, pelo contrário, ele ocupa um espaço que seria preenchido por outros prédios (que seriam bem mais altos do que sua estrutura de cerca de 10 metros de altura). Portanto, quem caminha pelo nível da rua anda em uma avenida absolutamente normal da Cidade Luz, com calçadas largas, arborização padronizada, e mais de 30 metros de largura entre os prédios de um lado da via até o viaduto, no outro lado, exatamente como seria se houvesse prédios ocupando o espaço do elevado:
High Line: o parque suspenso nova-yorkino, inaugurado em 2009, tem uma implantação ainda mais diferente da paulistana. O viaduto teve origem como uma ferrovia elevada, construída nos anos 1930, parte de um investimento bilionário (em valores atualizados, mais de US$ 2,8 bilhões) para evitar os anteriores e numerosos acidentes com trens no nível da rua, tendo sido desenhada para passar no meio dos quarteirões, e não na via. Para isso, foi necessária a demolição de cerca de 640 edifícios que deram lugar à estrutura. Desta maneira, praticamente em toda sua extensão, o viaduto não passa ao lado de nenhuma rua, mas sim no meio das quadras, lotes privados, nos fundos dos edifícios pré-existentes (somente passa pela janela de edifícios que foram construídos posteriormente e fizeram a opção projetual por este desenho). Portanto, com exceção do trecho inicial (pouco mais de uma quadra) e em dois entroncamentos com a Tenth Avenue (com menos de 40 metros de extensão cada) ele sequer é visto da rua, só quando cruza as perpendiculares.
Ou seja, novamente se trata de uma estrutura que não sufoca nenhuma via do entorno.
Já o Minhocão foi construído simplesmente em cima de uma via, no meio do espaço público, e segue adoecendo a urbanidade da região ao longo de quase 3 quilômetros. Se não bastasse a diferença essencial de estar sobre o espaço público, enquanto os casos internacionais estão dentro dos quarteirões, sua largura varia de 15 a 22 metros (a do Viaduc des Arts vai de 10 a 13 m., e a do High Line de 9 a 15 m.), cobrindo uma avenida de 30 metros de largura. Ou seja, ele encobre até 3/4 da via e assim torna o ambiente sombrio, agrava a poluição do ar e sonora funcionando como uma “tampa de reverberação”, impede a circulação adequada do vento e a vista de qualquer coisa acima do térreo do outro lado da avenida, e passa ao lado das janelas de frente de prédios dos dois lados da via em toda sua extensão.
Para ficar mais claro: se hipoteticamente fossem demolidos o Viaduc Des Arts e o High Line, o que surgiria no lugar seria espaço privado, nos quarteirões, que poderiam abrigar novos edifícios; ou seja, são, de fato, estruturas que oferecem uma opção de lazer e acesso público onde não haveria. Já no caso do Minhocão, o que surge de um eventual desmonte é espaço público regenerado.
Não é por coincidência que todas as projeções do tal “Parque Minhocão” sempre focam na parte de cima. A parte de baixo é absolutamente impossível de ser solucionada, simplesmente porque a estrutura é um erro irrecuperável se não houver sua demolição.
O projeto da Prefeitura de São Paulo para o parque suspenso contempla a instalação de espaços comerciais e sociais na parte de baixo do viaduto, simulando inspiração no precursor parisiense (cujos baixos são ocupados por ateliês, estúdios etc.). Afora toda a diferença social entre as sociedades francesa e brasileira, nada pode solucionar a incontornável realidade física da aberração paulistana: com a ocupação dos baixos e a criação de novos acessos, a avenida ficará ainda mais fechada do que hoje, crescerá a sensação de sufocamento e não só continuará impossível ter qualquer panorama, como nem sequer o outro lado da via passará a ser visível.
Um problema de saúde pública
Dados do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo mostram que, independentemente do horário (o que inclui os períodos em que o elevado está fechado para carros, como seria no caso do tal “Parque Minhocão”), a média de Material Particulado 2,5 -partículas finas menores ou iguais a 2,5 ?m (micrômetro) – encontrada na área chega a ser 3 a 4 vezes superior ao limite de 25 ?g/m³ da Organização Mundial de Saúde (OMS). Até mesmo a mínima diária de MP2,5 por metro cúbico, de 73,8 ?g/m³, às 23h (horário sem carros no elevado) é 59% maior do que a média de 46,5 ?g/m³ registrada em toda a metrópole pela Cetesb no mesmo ano do levantamento.
Para dar uma dimensão do que isso representa na vida dos cerca de 230 mil moradores do entorno, de acordo com Paulo Saldiva, patologista especializado em poluição atmosférica e diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP, em matéria do jornalista Julio Lamas, “A maior parte dos estudos diz que, para cada 10 ?g/m³ de material particulado fino no ar, o risco de infarto aumenta em 8%, o de câncer de pulmão em 9% e a mortalidade por todas as causas aumenta em 6%. A poluição do ar veicular reproduz em pequena escala tudo que está no maço de cigarro”.
Algo semelhante ocorre em relação à poluição sonora. Em absolutamente todos os horários, mesmo com o Minhocão fechado para veículos, o nível de ruído medido na região é acima do limite estabelecido pela Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), de 55 decibéis. Segundo a OMS, com 50 decibéis já há “Interferência na comunicação – torna difícil a conversa entre duas pessoas, ou dificulta falar ao telefone, ou ouvir rádio ou televisão.”
Isso ocorre porque a estrutura do elevado desempenha um papel semelhante ao de uma cobertura que não permite que os gases emitidos pelos veículos se dispersem normalmente, e retém e reverbera os ruídos do trânsito, como uma caixa de ressonância. É muito comum que moradores do entorno imediato apresentem problemas respiratórios e estresse.
Na mesma matéria de Julio Lamas, o responsável técnico pelo citado estudo da USP e pesquisador associado da T.H. Chan School of Public Health da Universidade de Harvard, Marco Marins, reforça que “Isso evidencia o que chamamos de ‘efeito tampão’ do Minhocão, que facilita a concentração local de poluição. O pouco espaço entre os prédios e o elevado e as fileiras de construções contíguas na sua extensão impedem a dispersão do material particulado, resultante da queima incompleta dos combustíveis fósseis pelos veículos”.
E é importante destacar que a partir do momento em que o tráfego de veículos no elevado for interrompido, evidentemente o trânsito na avenida embaixo se tornará mais intenso do que hoje, por ser uma alternativa de escoamento, como reconhecido publicamente pela própria Prefeitura; o que somado à continuidade da estrutura -mesmo que com função de parque suspenso- elevaria os níveis da poluição potencializada pelo Minhocão. Para resolver esse problema, só eliminando o viaduto.
Determinados locais nunca serão sadios sem radicais mudanças nas estruturas físicas. Um bom exemplo em São Paulo é a Praça Roosevelt, deteriorada, deserta e inóspita na sua antiga versão modernista (não por casualidade contemporânea do Minhocão), que ganhou outra vida a partir da reforma concluída em 2012, com a demolição do antigo pentágono de concreto. Entretanto, argumentos sempre podem ser elaborados pelos que se negam a aceitar a inevitável insustentabilidade de aberrações urbanísticas, e o autor do projeto da fracassada versão anterior da praça chegou a prometer que “A Roosevelt não tem comparação no mundo, é diferente das novas praças de Montreal como é superior ao Lincoln Center de Nova York”. O que acontece agora com as projeções hiperotimistas e redentoras para o tal “Parque Minhocão” não é diferente.
É verdade que mundo afora pipocam os casos de parques elevados. Mas, geralmente, são feitos em antigas ferrovias, parques e novos trechos complementares que não comprometem o entorno. Nenhuma sociedade avançada toleraria algo como o Minhocão nos dias de hoje. Mesmo no Japão, onde ainda há muitos viadutos em funcionamento, a proporção entre a largura da estrutura em relação à da via é muito menor do que no caso paulistano, que, além de tudo, também é mais baixo do que seus equivalentes internacionais.
Sou fã do High Line. Não haveria melhor alternativa para aquele caso. Seria adorável ter “um High Line” em São Paulo. Mas ele definitivamente não seria o Minhocão. Não adianta forçar um arremedo preguiçoso em uma estrutura absolutamente diferente, que acarreta uma série de consequências negativas. Se realmente quisermos “um High Line paulistano”, é necessário que, a exemplo de outros casos internacionais, projete-se a construção de um parque elevado do zero. Só assim poderá existir uma iniciativa bem-sucedida como a nova-yorkina, com a estrutura adequada para a função (por exemplo, se é para sustentar pessoas e bicicletas, não há necessidade de ser tão massivo quanto para sustentar milhares de automóveis) e com implantação e localização apropriadas. Não há absolutamente nada que impeça a criação de um bem projetado parque suspenso em outro lugar da cidade. Inclusive, é possível explorar com -aí sim- criatividade o potencial de locais como as Linhas 7 e 8 da CPTM (que passam paralelas ao Minhocão) ou o canteiro central da ampla, arborizada e desabitada Av. 23 de Maio, que ainda passaria pelos viadutos que cruzam esta via expressa, e permite interligação com locais inusitados como as Passarelas do Piques (na Praça da Bandeira) e os Arcos da Rua Jandaia.
E se muito é dito sobre as “highlines” estrangeiras, também é importante falar sobre os frequentes casos de demolição, em que vias suspensas deletérias se tornam alvo de investimentos maciços do poder público para que sejam derrubadas e a área seja regenerada. Os casos mais emblemáticos são o Big Dig, em Boston, e o Rio Cheonggyecheon, em Seul, mas se espalham casos em cidades mundo afora, como Bogotá, Vancouver, Shanghai e Bilbao. Somente até 2012, a publicação “The Life and Death of Urban Highways” listava 17 casos internacionais de remoção de viadutos, e muitos outros surgiram desde então.
Os parques elevados e as demolições são duas faces da mesma moeda: a genuína aspiração por qualidade urbanística nas sociedades mais desenvolvidas, que não admitem mais ferrovias abandonadas ou viadutos nocivos com naturalidade, da mesma maneira que não concebem mais regiões portuárias degradadas ou centros esvaziados. Mas exemplos como a Cracolândia, a Praça da Sé, o Parque Dom Pedro II e a insistência em manter o Minhocão (com ou sem carros) são a comprovação de que São Paulo ainda está muito longe dessa realidade.
Entre as cidades que souberam se livrar dessas estruturas degradantes está a quase vizinha Rio de Janeiro. De 1960 a 2015 a orla da região portuária da Cidade Maravilhosa ficou sufocada pelo Elevado da Perimetral, um monstrengo com mais de sete quilómetros de extensão e as mesmas quatro faixas do Minhocão. Como parte das obras do Projeto Porto Maravilha, e também com vistas aos Jogos Olímpicos 2016, a demolição da Perimetral permitiu o reflorescer da Praça Mauá (onde estão o Museu de Arte do Rio-MAR e o novo Museu do Amanhã), da relação com a Baía de Guanabara e deu lugar ao Boulevard Olímpico. E com um interesse extra para o caso paulistano: graças à sua técnica construtiva, ele não foi simplesmente demolido; quase mil vigas de aço foram retiradas na demolição a frio (desmonte) e renderam por volta de R$ 8 milhões em dois leilões, além de cerca de 170 terem sido reaproveitadas em outras obras na cidade.
O desmonte do Minhocão: o que se sabe sobre custos, prazos e viabilidade
O elevado foi construído em vigas pré-moldadas que permitem que seja desmontado e que suas peças sejam reutilizadas. Ou seja, ao contrário do que se imagina, ele não seria simplesmente destruído, nem geraria um alto impacto de resíduos. São cerca de 900 vigas reaproveitáveis, que poderiam ser leiloadas (assim ajudando a cobrir os custos do desmonte) ou reutilizadas em outras obras municipais.
Em mais uma demonstração da falta de real comprometimento desta gestão municipal na busca da melhor solução para o Minhocão, a Prefeitura não fez projetos e cálculos das possibilidades, prazos e custo do desmonte. Ou seja, o Plano Diretor previa apenas essas duas alternativas para o elevado, e os últimos prefeitos simplesmente sonegaram completamente à população o conhecimento sobre uma delas, em um jogo de cartas marcadas que desconsidera absolutamente o debate público.
Em 2016 uma empresa chamada Desmontec apresentou ao Movimento Desmonte do Minhocão um orçamento de R$ 28 milhões de reais (R$ 32 milhões em valores atualizados pelo IGP-M) para desmontar todo o elevado. O prazo para as obras seria de seis meses saindo de uma ponta à outra, podendo ser reduzido para três meses se avançasse com duas equipes simultâneas, cada uma partindo de uma extremidade. Segundo a empresa, com o dinheiro da venda das vigas a iniciativa seria superavitária, ou seja, a arrecadação seria superior ao custo do desmonte.
Em 2005, o jornalista Gilberto Dimenstein publicou que “desmontar o Minhocão, como está em estudo pela Prefeitura, custa R$ 80 milhões e demora seis meses. Mas as cerca de mil vigas do elevado podem ser reaproveitadas (ou vendidas). Valem R$ 50 milhões. O gasto, portanto, seria de R$ 30 milhões”. Em valores atualizados, isso representa cerca de R$ 175 milhões para o desmonte completo; se descontada a potencial venda do material reutilizável, o investimento cairia para R$ 66 milhões.
A Prefeitura anuncia R$ 38 milhões apenas para transformar um trecho inicial de 900 metros do Minhocão em parque elevado. Portanto, é de se imaginar que o projeto da gestão municipal para o total de 2,8 km passe com folga dos R$ 100 milhões.
Ou seja, os números conhecidos até aqui indicam que os investimentos necessários para converter o Minhocão em parque elevado são mais altos do que para o desmonte que oferecerá o surgimento de uma nova região.
Um parque linear: verde de verdade
Algumas pessoas torcem o nariz para a ideia de eliminar o Minhocão porque dizem que “embaixo se tornaria uma avenida como outra qualquer”. Não é verdade. É um eixo especial, que não por acaso era a principal avenida da cidade. Mas ainda que fosse: avenidas centrais que aliam residências, serviços e comércio, voltadas para o pedestre e com acesso a metrô e ônibus, próximas a praças e espaços públicos de qualidade são o ápice das cidades. Casos como a Avenida Paulista, a Champs-Elysées, a Fifth Avenue e a Gran Vía tampouco passam de “avenidas normais”. E justamente por isso -a despeito de toda a ânsia modista por uma espécie de “pirotecnia urbanística”- proporcionam as experiências da vida urbana em sua máxima riqueza e complexidade, e não em alguma especificidade.
Só que há na região um potencial que permite o surgimento de algo muito além de “uma avenida normal”. Fora a configuração rara em São Paulo de prédios de uso misto (residenciais com comércio no térreo), sem recuo e no alinhamento da rua, com ótima oferta de transporte público, ao lado de equipamentos culturais como Theatro São Pedro, áreas verdes como Parque da Água Branca e bairros díspares como Higienópolis e Campos Elíseos -que permitem mercado e usos diversos-, este eixo conta com diversas praças que foram mutiladas para ceder espaço ao elevado e que poderiam ser restabelecidas. A mais representativa delas é a Praça Marechal Deodoro, que poderia perfeitamente voltar à configuração pré-Minhocão:
Mas há ainda outras áreas públicas neste eixo que poderiam ser ampliadas, como o Largo Padre Péricles, Praça Antônio Cândido de Camargo, Largo Santa Cecília, Praça Alfredo Paulino etc. Um grupo de arquitetos que desenvolve um estudo chamado “Bairros do Centro” estima que com a retirada do elevado e seus pilares e alças seria possível ampliar calçadas e/ou canteiro central em todo o eixo das avenidas, o que somado às novas praças geraria cerca de 36 mil m² de novos espaços públicos/áreas verdes. Além disso, somente nos passeios poderiam ser plantadas ao redor de 850 novas árvores.
Sobre o que fazer com o Minhocão, Valter Caldana, professor da FAU-Mackenzie, costuma dizer que “não há nada que se faça em cima, que não possa ser feito melhor embaixo”. Para efeito de comparação, a Prefeitura anuncia que o parque elevado teria 17.500 m² de jardins (basicamente ornamentais, de plantas rasteiras, folhagens e arbustos). Já o “Parque Sem Minhocão”, linear e no nível do chão, além de oferecer mais do que o dobro de áreas verdes, ainda permite que sejam árvores de grande porte, com raízes fincadas no solo, que apresentam outro nível de impacto na redução da poluição do ar e sonora, criação de sombras e diminuição da ilhas de calor. Ou seja, o local que há décadas é mais poluído do que os demais por causa do Minhocão, passaria a ser menos poluído do que o resto em virtude da natureza que o substituiria.
Investimentos modestos para a nova vegetação, ciclovia e instalação de bancos, podendo ainda contar com fontes e esculturas nos passeios ampliados, dariam ares completamente diferentes a esse eixo. Um bom exemplo ilustrativo é a Avenida José Pardo, em Lima, que tem os mesmos 30 metros de largura:
O parque linear também permitiria desfrutar o panorama do especial acervo de construções modernistas, art déco e ecléticos das avenidas, que conta com edifícios de assinatura como o Porchat (Rino Levi), Araraúnas (Franz Heep), Pacaembu (Artacho Jurado), Tupã (Samuel Roder) e Washington (Bernardo Rzezak), cujas fachadas hoje simplesmente não podem ser contempladas em sua integridade porque o Minhocão é um obstáculo visual intransponível.
Outro ponto são os custos operacionais de manutenção, obviamente muito mais baixos do que para um parque elevado, que precisaria de um sistema especial de irrigação para as plantas (como no fracassado caso dos jardins verticais), bem como de esquemas específicos de monitoramento, limpeza e segurança. O que acontece no parque linear está aos olhos e alcance de qualquer um que esteja na rua, sem separação de níveis ou necessidade de encontrar pontos de acesso ou rotas de fuga como em um parque suspenso. Isso para não falar na manutenção da própria estrutura do elevado, que deixaria de existir.
Há os que falam de uma suposta “apropriação do Minhocão por parte da população, que o ressignificou”. Ora, o espaço existe, e quando está fechado para carros é menos desagradável pedalar ou caminhar no elevado do que embaixo, justamente porque ele está ali, inviabilizando o nível do chão. Ou seja, a população não tem a oportunidade de “se apropriar” da parte de baixo, exatamente pela degradação que ele mesmo provoca. Ou alguém realmente acredita que a visitação ao Minhocão (que é sempre vista nos fins de semana e feriados, ou seja, nos dias de maior atração, pois durante a semana até mesmo o Ibirapuera fica vazio) é superior à de pessoas que circulariam e desfrutariam dos restaurantes, bares, padarias, livrarias, sorveterias e demais atividades ao longo destas avenidas regeneradas, em zona de alta densidade e com estações de metrô e corredor de ônibus? Infelizmente não é possível testar “horários em que o Minhocão estará desmaterializado” para fazer experiências que atestem o óbvio, como o é para a suspensão do trânsito de veículos. Mas é especialmente ilógico celebrar efeito semelhante ao de um parasita que passa a ter proeminência frente ao moribundo hospedeiro. Quanto menos “São João”, “Amaral Gurgel” e “General Olímpio da Silveira”, mais “Minhocão”.
A Avenida Paulista é prova da irresistível versatilidade que só lugares multifacetados têm. Com vida e diversidade de opções e atividades o tempo todo, ela é muito mais “apropriada” pela população do que qualquer outro lugar na cidade. Ainda que dividida com automóveis, supera com folgas o Minhocão até mesmo para a prática de atividades esportivas. Aos domingos e feriados, então, quando é fechada para carros (o que também pode ser feito no parque linear, após o desmonte), é uma goleada. Poucos optariam pelo Minhocão se ao lado tivessem uma avenida como a Paulista.
É importante esclarecer que este artigo se propõe a tratar se o Minhocão deve ser desmontado e dar lugar a um parque linear, ou transformado em parque elevado, conforme ficou em aberto pelo Plano Diretor. Discussões a respeito de se deveria ser mantido o trânsito de veículos, ou ainda sobre uma eventual “gentrificação” (conceito que em essência já é contestável, mas que além do mais é completamente deturpado no Brasil) que a medida poderia provocar, seguiriam do mesmo modo, com desmonte ou parque elevado.
Em reportagem do Estado de S.Paulo com o título “2014. Adeus, Minhocão… até nunca mais”, o professor da FAU-USP, Lucio Gomes Machado, declarou que “Derrubar o Minhocão vai ser a grande obra de São Paulo. O prefeito que fizer isso direito vai ficar com o nome marcado na cidade para sempre”. Entretanto o que vemos hoje é a opção deliberada por injetar dezenas (quiçá centenas) de milhões de reais de recursos públicos para perpetuar o Minhocão como uma passarela com plantas, justamente por parte do prefeito Bruno Covas, para “deixar sua marca na cidade”. É oportuno salientar que marcas podem ser positivas ou negativas, e até hoje o ex-prefeito Paulo Maluf sempre é relembrado pela responsabilidade de ser o criador do elevado e todos os males trazidos por ele.
Mas ao contrário dos tempos em que o Minhocão foi imposto, não vivemos mais em uma ditadura. Fora motivações eleitoreiras, não há qualquer urgência para que seja implantada aceleradamente uma iniciativa que é reprovada pela maior parte dos especialistas (sejam urbanistas, engenheiros de tráfego, profissionais de saúde ou agentes de segurança), pela maioria dos moradores e comerciantes, enquetes, entidades, e desejada por menos de 1/4 dos paulistanos (de acordo com pesquisa Datafolha de 2014). Torna-se ainda pior quando consideramos que Seul promoveu 1.900 reuniões para definir o que fazer no Rio Cheonggyecheon, ou que Seattle realizou um plebiscito para decidir se o Alaskan Way Viaduct seria inteiramente demolido ou daria origem a um “High Line de Seattle” (mais de 80% dos votantes rejeitaram a proposta de parque elevado e preferiram a regeneração do nível do chão).
O fato de a atual Prefeitura entender que deixar uma “marca” para a cidade é fazer um arremedo de atração estrangeira de modo superficial e inconsequente, a toque de caixa, tendo como base um mero estudo de urbanista contratado, sem desenvolvimento e análise das demais alternativas, promoção da participação do cidadão e nem concurso público, acabando assim por dobrar a aposta no maior equívoco material da história paulistana, é muito sintomático do estágio civilizatório em que se encontram nossas gestões públicas e sociedade.