por Tiago Pavinatto
Em seu O Presidente Negro, escrito em 1926, Monteiro Lobato conta que, em 2228 nos Estados Unidos da América, os negros, que já tinham conquistado um tratamento para branqueamento da pele, foram brindados com uma loção descarapinhadora para seus cabelos que ainda eram grossos e crespos. “Cem milhões de criaturas reviraram para o céu os olhos agradecidos. Os negros chegaram a tomar-se de puro êxtase.” Vida imitando a arte – e sem o saber –, temos o saudoso cantor Michael Jackson nessa situação muito antes do previsto pelo taubateano – descartando, por óbvio, os rumores de vitiligo.
De qualquer maneira, poderia algum “estudioso” alegar, mesmo sem nenhuma base científica, ter chegado a uma terapia de “branqueamento” e a ofertar ao público através dos argumentos do escritor britânico Herbert George Wells ou mesmo do sociólogo, psicólogo e físico amador francês Gustave Le Bon?
Não haveria problema algum para nossos liberais dos Tristes Trópicos, nossos liberadores (a mistura desastrosa entre liberal e conservador sem nada a conservar a não ser o próprio solipsismo). Diriam eles: não podemos barrar a ciência e nem o direito de escolha do afrodescendente de se tornar branco. “Pra que ser um preto de alma branca”, pensariam essas pobres almas, “se eles o podem ser por inteiro?”.
Nesta semana ocorreu algo similar. Uma decisão em caráter liminar atendeu o pedido da “psicóloga” Rozângela Alves Justino em processo aberto contra o Conselho Federal de Psicologia, que a impedira de oferecer a seus clientes sua terapia de “reversão do homossexualismo”.
O juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, sentado na 14ª Vara Federal do Distrito Federal, suspendeu, dessa maneira, os efeitos da Resolução nº 001/1990 (que proíbe qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas e a adoção de ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados, bem como a criação de eventos e serviços que proponham tratamento e cura das sexualidades), determinando ao Conselho Federal de psicologia que “não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do C.F.P., em razão do disposto no art. 5º. inciso IX, da Constituição de 1988”. Para o magistrado, “o tema é complexo e exige aprofundamento científico necessário”.
Assombra o fato dos pés no chão desse juiz: eles estão na mesma altura que as mãos.
Talvez o julgador queira aprofundar a “ciência” de meados do século passado, quando “[o]s homossexuais viviam num mundo à parte, criminoso e pervertido, como pecadores e objetos de ridicularização biológica. A pretensa ciência que existia sobre eles era tão opressiva em suas intenções quanto a teologia que a havia precedido” (John H. Gagnon, Uma interpretação do desejo – ensaios sobre o estudo da sexualidade); quando “[n]ão faltaram tratamentos médico-pedagógicos sugeridos – agregados à religião –, como remédios para a ‘inversão sexual’. O transplante de testículos, por exemplo, era uma dessas receitas ‘científicas’ para o problema. Outra era a convulsoterapia, ou injeção de insulina para ‘curar’ o que se considerava, então, um comportamento esquizofrênico. Outra opção era o confinamento em hospícios psiquiátricos” (Mary del Priore, História do amor no Brasil).
Talvez, ainda, ele não se recorde que, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria (a mais importante de todas no mundo desde seu primeiro Manual, que é mais valioso que a CID nessa área do conhecimento) retirou a homossexualidade da lista dos distúrbios mentais, abandonando a ideia de homossexualidade como doença. Que, desde 1991, a Anistia Internacional considera violação dos direitos humanos a proibição da homossexualidade. E que, em 1993, a Organização Mundial da Saúde (OMS) a inseriu no capítulo “Dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais” e, por fim, em 1995, deixou de considerá-la, de maneira absoluta e sem margens para qualquer outra interpretação, como doença.
Mas nossos liberadores continuam a relinchar: É voluntário! Vai quem quer! A pessoa, se maior e plenamente capaz, deve ter o direito de escolher sobre sua própria sexualidade!
Deveras, se é certo que um liberal tem – ao menos deveria ter – ojeriza de proibições fora da esfera penal, poderia ele entender, por simples silogismo, que as ditas “técnicas” de tratamento da sexualidade não devam ser proibidas de maneira absoluta, posto que uma pessoa homossexual maior e absolutamente capaz teria, de fato, o direito de optar por, voluntária e livremente, encarar tal alegado “tratamento” (e, somente nesta hipótese, não deveria encontrar proibição – a crianças, adolescentes e maiores incapazes de qualquer natureza não se poderia impor sua realização, sendo, bom alvitre, de se anotar a necessidade de inclusão dessa proibição em norma, preferencialmente no Estatuto da Criança e do Adolescente).
Eis a falácia liberal do caso: admitir que alguém é livre para procurar um tratamento é admitir que existe uma cura e, se há cura, há doença. Mais: pode-se admitir que uma universidade possa pregar que a terra é plana só porque ela é particular e seus alunos comungam dessa ideia? Seria razoável que ela formasse um engenheiro?
Mas não basta: O mesmo artigo 5º da Constituição da República invocado pelo juiz de maneira equivocada (ele se vale, em sua decisão, da liberdade de expressão da atividade científica inscrita no inciso IX para tutelar uma atividade contracientífica), estipula, também petreamente entre os direitos e garantias fundamentais, no inciso XXXIII que o Estado promoverá a defesa do consumidor, defesa esta que é um dos princípios gerais do Brasil conforme o artigo 170, V, da Lei Maior. Logo, estaria o Estado cumprindo seu dever constitucional de defesa do consumidor permitindo que se ofereça um tratamento para uma doença que não existe?
Não se pode olvidar, ainda, que estamos no terreno da Saúde Pública, no qual o Estado tem suas obrigações, não podendo, portanto, dar guarida a charlatas e permitir a proliferação de tratamentos inócuos e que comprometam a saúde psicossocial.
Seria, sustentasse-se a decisão, o caso de abolir também do Código Penal nacional o crime de curandeirismo previsto em seu artigo 284, posto que a “terapia” oferecida por Rozângela enquadra-se milimetricamente no tipo penal que comina penalidade de detenção de seis meses a dois anos mais multa se se der mediante pagamento.
Por fim, quanto à voluntariedade e o ridículo direito de se “reverter” (posto que consideram estar invertido o homossexual), esse eventual desejo partiria do homossexual de maneira espontânea ou decorreria do preconceito do meio no qual ele está inserido? No exemplo da solução branqueadora na ficção de Lobato: se ela existisse de fato, a sua procura seria pelo racismo que nos cerca ou porque ser branco é cientificamente melhor? A resposta é a mesma para ambos os casos.
Vou além antes de finalizar: apesar de inserido na mesma tradição, o Código Civil brasileiro não dispõe sobre uma hipótese de incapacidade (que retira do sujeito, portanto, a autonomia volitiva para a realização de um ato) presente nos códigos português, italiano e alemão. Trata-se da incapacidade denominada “acidental” ou “natural” e que atinge pontualmente uma pessoa capaz em razão de, entre outras, uma causa afetar sua autonomia impelindo-o a decidir mecanicamente (a título de exemplo, o homossexual inserido num contexto familiar ou religioso que insista diuturnamente que seu comportamento é anormal). Posso falar em livre e espontânea vontade ou a decisão é oriunda de pressão, mesmo que silenciosa?
Doente? Eu?
Deve ser por isso que, dia desses no shopping, quando espirei e uma gotícula de saliva minha caiu em um menino, ele começou a rebolar e a fazer uma coreografia da Madonna.