Socialite com engenho e arte

Umberto Eco disse que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. Quem somos nós para negar?

por Tiago Pavinatto

Se foi Umberto Eco que disse que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis, quem somos nós para negar? Não somos ninguém, mas não sabemos quanto ao leitor, que, caso entenda-se mais sábio que o escritor, semiólogo, filósofo, linguista e bibliófilo italiano, pedimos encarecidamente enviar o telefone.

Ao receber o título de doutro honoris causa da Universidade de Turim, na Itália, em 2015, Eco lamentou que o “idiota da aldeia”, já colocado pela televisão anteriormente em um patamar superior, tenha sido promovido pela internet “a portador da verdade” com “o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”.

Verdadeiras redes de indignação, bem observou o sociólogo Manuel Castells, que fizeram cair por terra a tão propalada simpatia do povo brasileiro, levando-a à categoria de mito quando sopesada a carga de ódio e ressentimento em cada postagem aquém ou além de 140 caracteres – e a lamúria é tanta que, mês passado, dobraram a meta pra boiada passar.

Prova disso (dentre, tristemente, incontáveis outras), o episódio no qual uma fulana – que, pelo retrato, achamos fosse menecma do Saudoso Michael Jackson – vociferou, em vídeo, ofensas racistas contra uma criança.

Quem é essa atriz?

Buscamos responder parodiando Carlos Drummond de Andrade: tal indivídua, bicho da Terra tão pequeno, chateia-se do espelho, lugar de muita miséria e pouca diversão, faz um perfil na rede social, uma cápsula, um módulo, toca para a realidade virtual… autointitula-se socialite.

Estas mal traçadas, portanto, representam desagravo às socialites, tão afetadas pela legião de imbecis quanto a racionalidade humana.

Bons tempos aqueles em que o substantivo de dois gêneros a designar pessoa de destaque nas rodas da alta sociedade que, geralmente, figura nas colunas sociais era alvo apenas de uma elite desinteressante e sem brilho que, tentando desqualificá-lo, disseminava que as pessoas realmente bem-nascidas e educadas só saíam nos jornais em três oportunidades, quais sejam, no nascimento, no casamento e na morte – pois, naquele tempo, gente fina, elegante e sincera (com habilidade pra dizer mais sim do que não) não ia parar na cadeia (muito embora não fosse por falta do crime, que estaria por trás de toda grande fortuna conforme epígrafe de Mario Puzo em The Godfather, de 1969, bem como paráfrase de Richard O’Connor em seu The Oil Barons: men of greed and grandeur, de 1971, ambos referentes a um trecho de Honoré de Balzac em Le Père Goriot, de 1835: “Le secret des grandes fortunes sans cause apparente est un crime oublié, parce qu’il a été proprement fait.” – “O segredo das grandes fortunas sem causa aparente é um crime esquecido, porque ele foi adequadamente executado”).

Sim, desde os tempos mais remotos, o recalque está aí.

Ora – e que não nos ouçam as feministas mais aguerridas e a patrulha do politicamente correto –, que mulher da alta roda, naquela época, não gostaria de ser perseguida pelos fotógrafos dos jornais, paparicada por Ibrahim Sued e admirada por sua beleza e elegância? Que mulher pertencente às classes mais abastadas não se sentia diminuída, um mero conviva, coadjuvante – quando não figurante – nos salões da sociedade, na presença de Carmen Mairynk Veiga?

De se registrar, assim, que a paulista radicada no Rio de Janeiro Carmen Mairynk Veiga, que se cansou deste mundo nesta semana aos 88 anos de idade, deixa como legado um estilo: ser socialite “com engenho e arte” – dentro e fora do Brasil.

Nascida Carmen Therezinha Solbiati, ela e seu marido, Tony Mairynk Veiga, com quem viveu por 60 anos, foram considerados o casal mais chique da América do Sul pela revista Vogue americana – e chegaram a essa conclusão Truman Capote e Anna Wintour. Já para a revista Vanity Fair, Carmen Mairynk Veiga figurava no panteão das mulheres mais bem vestidas do mundo. De fato, vestiam-na sob medida Pierre Balmain, Givenchy, Azzaro, Valentino, Pierre Cardin e Yves Saint Laurent, em cuja bibliografia oficial foi a única brasileira citada.

Primeira brasileira a ser entrevistada por David Letterman, em 1994, no icônico Late Show, retratada por Candido Portinari, Di Cavalcanti e Andy Warhol, foi descrita por Lino Villaventura como sinônimo de elegância em entrevista à Vogue brasileira: “Elegância, para mim, não é como você está vestida. É muito fácil uma mulher rica fazer um trousseau na alta-costura. Ir no Harry Winston comprar joias. Comprar peles. E ser apenas bem vestida. E nada elegante. Elegância é o todo. É uma pessoa que vive bem. Que a casa é elegante. Tudo desta pessoa é correto e sério. É este todo que faz dela uma mulher elegante. Com estilo.”

Elegância mantida mesmo que “cada vez mais down o high society”.

Autora do livro ABC de Carmen, a socialite trouxe valiosas contribuições à edição brasileira d’O Livro completo de etiqueta de Amy Vanderbilt, verdadeira bíblia do comportamento ocidental, através de seus comentários para adaptação do conteúdo aos hábitos e costumes brasileiros.

Mas socialite caiu em boca de Matilde, ou melhor, de Dayane, que pode até figurar na alta roda da sociedade em razão do seu extrato bancário, mas carecedora absoluta de qualquer destaque ou “colunabilidade”. Se a Sra. Mairynk Veiga trouxe arte ao significado do termo, a tal da Dayane a ele imprime facécia. Se aquela nos causou fascínio, esta nos causa espécie e constrangimento.

Era questão de tempo, pois as colunas sociais, há muito, vêm sendo suprimidas pelas redes sociais, em especial as fotográficas, que, na qualidade de única revolução popular que tem dado certo, representam uma coluna social democratizada, na qual cada um pode ver e ser visto a todo instante, compartilhando e invejando a alegria, a riqueza e a beleza artificiais do cotidiano que beija com boca de café.

Sem dúvida, duas notícias tristes para o substantivo socialite: a morte de Carmen Mairynk Veiga e o assassinato do seu significado, mais uma vítima do idiota da aldeia fortificado na plataforma da legião de imbecis. Quod erat demonstrandum.

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