por Caetano Vilela
“. . . . As pessoas andavam falando do fim da física. Parecia que a relatividade e a mecânica quântica, juntas, iam dar conta de resolver o problema todo. Uma teoria de tudo. Mas elas só explicavam o muito pequeno. O universo, as partículas elementares. As coisas de tamanho normal, que são a nossa vida, os temas dos poemas – nuvens – narcisos – quedas d’água – e o que acontece numa xícara de café quando alguém põe leite – essas coisas são cheias de mistérios, são tão misteriosas pra nós quanto o céu era pros gregos. Nós somos melhores em prever eventos nos limites da galáxia ou dentro do núcleo de um átomo do que em saber se vai chover na festinha no jardim da casa da tia daqui a três domingos. Porque no fim o problema é diferente. A gente não consegue prever o próximo pingo de uma torneira quando ela fica irregular. Quando você mete os números no computador, dá pra ver na tela. O futuro é a desordem… É o melhor momento para estar vivo, quando quase tudo que você achava que sabia está errado.
Arcádia (tradução Caetano W. Galindo)
Há exatamente cem anos, Lenin interrompeu o seu auto-exílio na Suiça para comandar a Revolução Russa. Antes de partir de Zurique à Estação Finlândia, se despede – em uma biblioteca pública – de James Joyce (que se esforça para encontrar as palavras certas para o seu novo livro ‘Ulysses’) e Tristan Tzara (que entre recortes de palavras soltas declama aos brados seus recém-criados poemas Dadaístas). Não, isso não aconteceu, mas poderia ter acontecido já que essas três figuras históricas coincidentemente estavam em Zurique no não menos histórico ano de 1917. Tom Stoppard promoveu esse encontro em sua peça Travesties (1974)[1] uma verdadeira roleta-russa de trocadilhos, aliterações e revisão histórica que foi concebida depois que Stoppard leu na biografia de James Joyce, de Richard Elmann, a informação sobre a presença de Lenin, Tzara e Joyce em Zurique no mesmo ano.
Como se não bastasse a simples reunião dessas personalidades na peça, Stoppard não seria Stoppard se não promovesse um outro tipo de encontro, e aí entra Oscar Wilde (não por acaso outro biografado por Richard Elmann), mais precisamente a sua peça A importância de ser Prudente, e o jogo da metalinguagem do teatro-dentro-do-teatro se completa coroando o estilo deste autor que desde a sua primeira peça, Rosencrantz e Guildenstern estão mortos (1967) descortina as entranhas do teatro para mostrar temas recorrente em todos os seus dramas: a corrupção moral e ética da sociedade, o esfacelamento das ideologias do pós-guerra e o poder exercido pelos regimes totalitários.
Nascido na Tchecoslováquia e considerado britânico, Tom Stoppard virou ‘Sir’ em 1997 por título recebido da Rainha Elizabeth, título aliás criticado na época por alguns intelectuais britânicos de esquerda; o que não chega a surpreender dado o conservadorismo político de Stoppard e suas provocações liberais nos enredos de suas peças.
Every Boy Deserves Favour (1977) é deliberadamente anticomunista assim como Jumpers (1972) e mesmo Travesties podem ser lidas como um ataque ao marxismo. A Costa da Utopia (2002) é uma trilogia (Viagem, Naufrágio e Resgate) escrita sob a sombra do livro Pensadores Russos do filósofo liberal Isaiah Berlin e precisa de pelo menos uns 40 atores para dar vida aos revolucionários e pensadores russos como Bakunin, Alexander Herzen e Ivan Turguêniev. Já Arcadia (1993) viaja entre o passado e o presente para explicar o desaparecimento do poeta romântico Lord Byron com teorias matemáticas sobre a ordem e o caos e as transformações sociais na vida inglesa com a mudança dos formatos dos seus jardins, por exemplo.
Infelizmente, Tom Stoppard não é muito popular nos palcos brasileiros, seja pela dificuldade em produzir as suas peças ou mesmo uma certa dificuldade intelectual (sic) da intelligentsia teatral. Mas se somos privados do brilhantismo das suas provocações cênicas para poucos o mesmo não acontece com o público do cinema onde Stoppard já é assimilado com mais naturalidade e sem ranço ideológico.
Sua primeira peça Rosencrantz e Guildenstern estão mortos virou filme dirigido por ele mesmo e recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1990. Outros dois filmes em que assinou o roteiro poderiam perfeitamente virar peças de teatro de sua autoria já que assim como Rosencrantz e Guildenstern… são extensões metalinguísticas das suas experiências no teatro; Shakespeare Apaixonado (1999), seu maior sucesso até agora dirigido por John Madden, lhe deu o Oscar e o Globo de Ouro de melhor roteiro e a recente adaptação de Anna Karenina (2012), dirigida por Joe Wright, não poderia ter outro roteirista senão Stoppard por alguns motivos: sua intimidade com a história e personagens russos assim como a vivência dos bastidores teatrais. Sua opção por contar a história como se fosse uma peça de teatro sendo ensaiada é tão genial que nas mãos de outra pessoa poderia se resumir a um enfadonho “teatro filmado”.
Mesmo tendo colaborado no roteiro em filmes com diretores tão diferentes entre si é possível reconhecer características do teatro ou mesmo da vida de Tom Stoppard como por exemplo em O Império do Sol (1987), dirigido por Spielberg. No filme, adaptação do romance autobiográfico de J.G.Ballard, lembramos de um pré-adolescente Christian Bale vivendo um garoto britânico perdido dos seus pais na China, dias antes da invasão japonesa, tentando sobreviver em um campo de concentração e aos horrores da II Guerra. História que se assemelha a fuga da família de Stoppard quando os nazistas ocuparam a antiga Tchecoslováquia.
Vejo o trabalho de Tom Stoppard com o mesmo fascínio que me despertou o quadro Las Meninas de Velázquez (1656, Museu do Prado); quanto mais você observa, mais planos se descortinam na sua frente e a sensação é que você está sendo observado.
Ortega y Gasset, em um estudo seminal sobre o pintor espanhol do século XVII, chama a atenção sobre a importância da utilização do espaço nessa obra e como a espacialidade passou a dominar suas pinturas. Há o cotidiano de um palácio, os nobres, os plebeus, o próprio pintor, a perspectiva e os falsos reflexos em efeitos de profundidade “obtido mediante uma série de bastidores como no cenário de um teatro”, misturando o que é privado e confundindo a hierarquia oficial.
Não encontro melhor definição para toda a obra de Stoppard senão essa profusão de camadas metateatrais onde a fantasia dialoga com a realidade objetiva.
Caetano Vilela é encenador e iluminador.
[1] Conheci Tom Stoppard em 2008 (ano de sua participação na Flip), nos encontramos no aeroporto de Cumbica antes de uma conexão dele para Londres por 2h para acertarmos detalhes dos direitos autorais e minhas ideias para a montagem de Travesties. Expliquei que o meu interesse era produzir Rock ’n’ Roll mas um produtor carioca já havia se antecipado e comprado os direitos estreando uma linda montagem encabeçada por Thiago Fragoso e Otávio Otávio Augusto; me lembrei então de uma crônica do Sergio Augusto para o Estadão sobre Travesties e corri atrás do texto. Stoppard não acreditava no interesse da peça na América do Sul, achava um texto “difícil”, mas era exatamente aquilo que eu queria falar na época: as consequências do jogo do poder nas artes. Mas o texto é muito mais do que isso, estreei no Festival de Teatro de Curitiba em 2009 mas não consegui patrocínio para colocar a peça em cartaz; diretores de marketing se recusaram a patrocinar uma peça com esse título, e eu me recusei a traduzi-lo ou modificá-lo. Anos depois foi lançado pela Cia. das Letras um livro com sete peças de Stoppard traduzidas por Caetano W. Galindo, Travesties virou Pastiches. Embora correto, acho pobre.
Quando estávamos nos despedindo Stoppard me perguntou se podia fazer uma pergunta indelicada, queria saber o meu ‘nível’ do idioma inglês. Eu respondi que era ‘funcional’, mas que estava estudando russo e com um nível avançado no francês pois iria trabalhar em Paris; ele riu e me deu um conselho: “peça para alguém que entenda a linguagem do teatro traduzir, meus textos só fazem sentido no palco, leitores sempre se aborrecem e eu dependo do jogo cênico”. Encomendei a tradução ao ator e diretor Marco Antônio Pâmio, durante o processo ainda promovi um encontro dele com Stoppard em Londres para revisar algumas dúvidas. Stoppard tinha razão, quando começamos os ensaios o texto parecia outro, seu jogo metalinguistico só se tornava claro quando interpretado. Uma verdadeira aula de domínio da linguagem cênica.