por Caetano Vilela
“Onde quer que eu vá, descubro que um poeta esteve lá antes de mim”
(Freud)
“(…) penso que se dá com a arte o mesmo que se dá com o amor: Como pode o homem do mundo conservar, em meio à vida dispersa que leva, o fervor em que deve viver um artista, se pensa produzir algo perfeito, e que não há de ser alheio nem sequer àquele que pretenda mostrar um interesse tal pela obra, assim como o deseja e espera o artista? Creiam-me, meus amigos, ocorre com os talentos o mesmo que com a virtude: deve-se amá-los por si mesmos ou renunciar inteiramente a eles. E no entanto, só haveremos de reconhecer e recompensar tanto um como outro quando, à maneira de um mistério perigoso, pudermos exercê-los em segredo”
(Wilhelm Meister)
Este é o primeiro artigo de uma série que escreverei sobre como o teatro é abordado nos livros de ficção, romances, ópera, cinema e outros estilos que não sejam “teatrais”. Como dirijo e ilumino espetáculos de ópera e teatro conheço muitíssimo bem o prazer e a resistência que há entre o canto e a prosa até mesmo para quem é do meio. São atores que nunca assistiram a um espetáculo de ópera; cantores de ópera que nunca assistiram peças teatrais; músicos eruditos que detestam ópera; críticos de teatro que desconhecem as convenções operísticas; críticos de ópera que permanecem vidrados durante quinze horas em uma tetralogia wagneriana, mas são incapazes de controlar o sono em uma peça de teatro com duas horas de duração e por aí vai.
Foi pensando nessas idiossincrasias que resolvi aproximar as artes cênicas desse público; o que espero em troca é somente o prazer da curiosidade do leitor ao descobrir que aquele livro, filme ou ópera pode ser redescoberto. Como diz aquela frase-tatuagem de Hamlet: “O estar pronto é tudo”.
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Vinte e um anos depois de ser o causador da maior onda de suicídios entre jovens no século XVIII com seu romance epistolar “Os sofrimentos do jovem Werther” (1774), Goethe inaugura um novo gênero literário (Bildungsroman, o Romance de Formação) e antecipa em 140 anos lições que podem ser percebidas no sistema stanislaviskiano de interpretação com os dois volumes de Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1795).
O teatro ensina o jovem Wilhelm Meister a se posicionar na sociedade com um discurso social sem esquecer a sua influência sobre a cultura de uma nação e do mundo. O respeito com a arte da interpretação leva o jovem aprendiz a criticar seus colegas atores que escolhem o teatro por motivos fúteis, sempre preocupados com o aspecto mundano da arte: “O que será dessa peça? Fará sucesso junto ao público? Quanto tempo ficará em cartaz? Quantas vezes poderemos apresentá-la?”; Não poupa diretores: “Logo passavam a atacar o diretor, como de hábito, dizendo que era mesquinho demais em relação aos salários e sobretudo injusto com este ou aquele.”; O público: “(…) que raramente recompensava com seus aplausos a pessoa certa”; E do que se fala nas tabernas e cafés depois da peça: “(…) do montante das dívidas de um colega e dos descontos que sofria, da proporção do salário semanal, das intrigas de um partido adversário.”
Para Wilhelm, ser ator é “uma sucessão de atos e ocupações nobres, cujo ponto culminante era a aparição em cena, mais ou menos como a prata que, depois de muito tempo apurada sob o fogo purificador, mostra-se finalmente aos olhos do ourives em toda a sua magnífica coloração, revelando-lhe ao mesmo tempo que o metal já está acendrado de todo elemento estranho”. E é para quem tem o dom dessa prata que Goethe quer purificar com ensinamentos sobre a arte do improviso, impostação vocal, mímica corporal, entendimento de um texto e suas entrelinhas, o corpo e a intenção do gesto e por último, mas não menos importante, o melhor estudo sobre Hamlet, capaz de inibir até mesmo Harold Bloom.
São seiscentas páginas com observações sobre uma companhia de teatro e a sua relação com nobres e burgueses que espelham até hoje, e sem exageros, o cotidiano de muitos artistas dos nossos dias. Goethe usa Wilhelm Meister para fazer a passagem do homem do Iluminismo para o Romantismo, refletindo fortemente os acontecimentos recentes da Revolução Francesa (1789). Seu pensamento político segue crítico com uma visão mais justa da sociedade incluindo suas ideias sobre reforma agrária e uma dura autocrítica do povo alemão: “(…) está no caráter dos alemães oprimir a todos e por todos ser oprimido”. Não deixa dúvidas também sobre as responsabilidades do governo quando o assunto é teatro:
- “(…) temos o exemplo mais vivo do quanto poderia ser útil o teatro para todas as classes sociais e quanto proveito poderia tirar o próprio Estado, se levasse à cena todas as ações, ocupações e realizações dos homens (…) e partindo do ponto de vista de que cabe ao Estado mesmo honrá-las e protegê-las”
(Wilhelm) - “Livrem-me do Estado e dos estadistas! Não posso imaginá-los senão com perucas, e uma peruca, pouco importa quem a use, me contrai o movimento dos dedos, e eu tenho vontade de arrancá-la…”
(Philine)
O jovem Wilhelm Meister aprende com o teatro a ser um homem ético e virtuoso; com Shakespeare, ele aprende a ser líder, tolerar as diferenças de pensamento e a controlar os rompantes de cólera típicos da imaturidade. Claro que Goethe, como o maior maçom da Alemanha, protege seu personagem com uma organização misteriosa, a “Sociedade da Torre”, em referências explícitas aos valores da maçonaria. Mas é através do teatro que o jovem entende as responsabilidades do livre-arbítrio e que as suas virtudes podem também ser os seus defeitos. E quando descobre isso abandona o teatro, pois já está pronto para a vida.