por Renata Velloso
“Será que eu tenho um cu gigantesco?” Essa é fala de abertura da série Fleabag, escrita e estrelada por Phoebe Waller-Bridge. Na história, inicialmente concebida como um monólogo teatral, a protagonista quebra a quarta parede (termo usado no teatro para caracterizar a parede imaginária que separa os atores da audiência) e se comunica diretamente com os telespectadores. Uma comunicação que, pelo que pode-se presumir por essa frase de abertura, é (ou pretende parecer) bastante honesta e direta, além de engraçadíssima.
Fleabag, termo em inglês britânico que não tem tradução exata para o português mas seria algo como “vira-lata”, é uma jovem solteira de 30 e poucos anos que tenta viver com alguma dignidade na Londres atual lidando com uma família disfuncional, relacionamentos superficiais e os perrengues da vida de pequena empresária, enquanto enfrenta o luto da morte recente da mãe e da melhor amiga. Com a evolução do enredo a sensação que vamos tendo é que estamos substituindo essas pessoas que a protagonista perdeu antes da história começar e vamos nos tornando sua confidente, seus amigos imaginários.
A primeira temporada, lançada em 2016, dias depois da votação do Brexit, fez um enorme sucesso e lançou sua criadora ao estrelato. Foi o primeiro roteiro e papel de protagonista para a TV de Waller-Bridge, uma jovem britânica então com 31 anos, nascida em uma família tradicional inglesa com origens nobres e educada em colégio particular católico. Quem diria que uma moça fina dessas escreveria uma série tão desavergonhada?
A segunda temporada de Fleabag foi lançada no Reino Unido no começo deste ano e acaba de ser disponibilizada pela Amazon Prime. No momento, Waller-Bridge, que também escreveu a premiada série de TV Killing Eve, é uma das roteirista do próximo James Bond. A escolha para integrá-la ao time de escritores do filme foi um pedido específico do Daniel Craig, que vive a versão atual do agente secreto e que desejava mais sarcasmo e perspicácia no roteiro de Bond 25.
Sarcasmo e perspicácia Fleabag tem de sobra, e não faz concessões a ninguém, nem ao politicamente correto. Ainda no primeiro episódio da série ela e a irmã participam de um evento sobre feminismo e quando a palestrante pergunta “quem aqui trocaria 5 anos inteiros de vida pelo chamado corpo ideal?” ela e a irmã levantam as mãos e recebem olhares de desaprovação da plateia. Nessa hora, Fleabag se questiona “será que eu não sirvo nem para ser uma feminista decente?”.
Para namorada decente certamente ela também não serve, já que Fleabag também não demora a satirizar outro tabu: o do amor romântico. Seu relacionamento io-io com o namorado é conturbado porque enquanto ele quer fazer amorzinho nhé-nhé, ela quer sexo selvagem e se masturba assistindo discursos do Barack Obama. Para desespero do fofo.
Mas não é só o feminismo e o romantismo que são ironizados na série: dos retiros de ioga, às exposições de arte, passando pelos cafés temáticos e outros estereótipos dessa geração hipster-nutella, nada escapa ao humor de Waller-Bridge.
Fleabag é uma mulher confusa, atrapalhada, que falha o tempo todo, e o artifício que a personagem usa ao se comunicar diretamente conosco é uma forma de tentar controlar a narrativa, para usar um termo da moda, e nos tornar cúmplices das suas más decisões e da sua falta de noção. Muitas vezes consegue, afinal, o mundo aí fora é cruel. Especialmente cruel com mulheres sexualmente desejantes, como é caso dela.
Mas às vezes é impossível não pensar “poxa amiga, mas você queria o quê?”. Mesmo que isso configure “culpabilização da vítima”, para usar uma expressão roubada da lacração virtual. Me defendo da eventual patrulha alegando que Fleabag é uma narradora em primeira pessoa daquelas pouco confiáveis. Não chega a ser um Dom Casmurro ou um Humbert Humbert de Lolita, mas guarda lá seus segredos. Quem não?
Aliás, me dirigindo aos leitores, numa pretensão confessa de imitar o estilo da série, admito que fiquei intrigada quando o editor do Estado da Arte me convidou para escrever essa resenha. No convite ele me escreveu assim “Estou assistindo e gostando muito, mas não tenho ‘lugar de fala’. Me parece que você escreveria bem sobre”.
O termo “lugar de fala”, entre parênteses foi uma ironia, referência aos nossos posicionamentos ideológicos: Ele um professor de filosofia, conservador, estudioso de Aristóteles, e eu uma feminista liberal existencialista. Porém, convivemos bem nesses tempos terraplanistas onde a principal polarização não está entre liberais e conservadores, mas entre a ignorância e a racionalidade.
Em seu livro The Vanity Fair Diaries, Tina Brown, a icônica editora da Vanity Fair e posteriormente da revista The New Yorker, conta que a qualidade mais importante de um editor é escolher bem os autores e fazê-los acreditar que são capazes de escrever sobre aquilo que o editor deseja. A própria Waller-Bridge disse em entrevista que a primeira decisão que ela tomou, ao ser convidada pela BBC para adaptar seu monólogo teatral para TV, foi que abriria sua comédia com a frase que dá início a essa resenha. Eu também sabia que não teria melhor forma de começar esse texto e, convenhamos, em tempos de Golden Shower presidencial, cu é só a tradução mais adequada para asshole.