por Renata Velloso
Uma das respostas mais comuns que as mulheres costumam dar quando questionadas sobre feminismo é a seguinte: “Eu não sou feminista, sou feminina”.
Este é um clichê que duas das melhores séries de TV lançadas recentemente mostram ser falso. Afinal não é, nem nunca foi, preciso escolher entre ser uma coisa e outra. Uma delas é a série premiadíssima da Amazon The Marvelous Mrs Maisel, a segunda é o lançamento brasileiro na Netflix Coisa mais linda. Dois programas imperdíveis.
Os enredos acontecem no mesmo momento histórico, o final da década de 50 do século passado. Também em ambas as séries, as personagens principais são abandonadas por seus maridos logo no início da trama e assistem ao seu mundo, que elas até então consideravam perfeito, ruírem. Passam então a ter que lidar com uma sociedade que considerava (considera?) as mulheres inferiores, incapazes profissionalmente e que precisam de um marido para chamar de seu, caso tenham a pretensão de serem respeitadas.
As semelhanças entre as séries não acabam aí: as duas têm uma direção de arte belíssima, uma reconstituição de época e um figurino impecáveis e uma trilha sonora que é de ouvir de joelhos.
Mrs. Maisel conta a história de uma jovem senhora judia em Nova York que descobre casualmente o seu talento para a comédia e decide levar essa descoberta a sério profissionalmente. Maria Luiza, a protagonista de “Coisa mais linda”, também é uma jovem senhora, uma paulista no Rio de Janeiro que decide empreender na noite carioca abrindo um clube de música ao vivo. Ambas também são mães de crianças pequenas e, portanto, ainda têm que enfrentar as críticas da família e da sociedade por deixarem os filhos um pouco de lado enquanto buscam sua realização profissional em setores hostis para mulheres. Os pais? Ah, esses ninguém questiona.
The Marvelous Mrs Maisel
As duas séries também são estreladas por mulheres belíssimas: Rachel Brosnahan como Midge e Maria Casadevall como Malu estão lindas, bem vestidas, bem arrumadas, bem maquiadas e (ufa!) com as axilas depiladas em dia.
Mrs Maisel tem um roteiro brilhante criado pela experiente Amy Sherman-Palladino. Tudo é muito bem costurado com personagens propositadamente caricatos e ao mesmo tempo muito engraçados. Na segunda temporada os seus pais inclusive roubam a cena e protagonizam os melhores momentos da série.
Coisa mais linda não tem um texto tão genial quanto a série da Amazon. Perde também, claro, em humor. Mas por outro lado, vai muito mais fundo nas questões sociais.
Uma das principais críticas que se faz a Mrs Maisel é que a série é um retrato do que se costuma chamar de “feminismo branco”. Os negros, que representam parcela significativa na população de Nova York, mal aparecem na tela. Mesmo quando Mrs Maisel se envolve em uma manifestação política, a questão dos direitos civis, que estava borbulhando naquela época, mal é citada.
Em Coisa mais linda, ao contrário, tudo isso é abordado de maneira eficiente. Racismo, violência doméstica e aborto são retratados sem rodeios ou exageros. Os privilégios de Maria Luiza, apesar das dificuldades que ela enfrenta, são entregues de bandeja para o telespectador. Adélia, a sua sócia e co-protagonista na trama é negra e mostra pra paulistinha sofredora que menos, bem menos.
Ela não deixa de ser a mocinha por isso, mas a gente entende que os problemas que ela enfrenta não são o fim do mundo. Em Mrs Maisel, isso não acontece. Midge continua mimada durante toda a série. O seu “fundo do poço” se dá quando seus pais decidem estipular um horário limite para que ela esteja de volta em casa à noite. Ó que pobrezinha.
A sexualidade também é abordada de maneira bem diferente nas tramas. Em Mrs. Maisel, podemos supor que Susie, a co-protagonista interpretada por Alex Borstein, amiga e empresária da personagem principal é lésbica. Mas isso fica muito nas entrelinhas, no seu vestuário e na sua forma masculinizada de se comportar. Susie não transa, pelo menos não das duas primeiras temporadas.
Coisa mais linda é muito mais quente. Como não carrega o puritanismo tão caro aos norte-americanos, a série brasileira traz várias cenas muito bem dirigidas de sexo entre os personagens, inclusive entre duas mulheres. Nada ali fica subentendido, nem mesmo o estupro marital, que choca pelo realismo da cena e pela interpretação grandiosa da Fernanda Vasconcelos.
Coisa mais linda é muito mais quente. Como não carrega o puritanismo tão caro aos norte-americanos, a série brasileira traz várias cenas muito bem dirigidas de sexo entre os personagens, inclusive entre duas mulheres
Malu também é menos dócil que Midge. Em determinado momento do enredo ela chega a perder a paciência e declara para quem quiser ouvir “parece que tudo que a gente deixa na mão de um homem para fazer, acaba dando merda”. Que modos são esses mocinha, esqueceu-se de que “nem todo homem”? Como se pode prever, isso vai custar caro pra ela no final.
As duas séries porém, cumprem um papel interessante de gerar empatia para as causas feministas. É difícil ficar indiferente às injustiças que as mocinhas e suas amigas enfrentam. Por outro lado, é fácil torcer por elas. Elas não traem, são traídas; elas não sacaneiam, são sacaneadas; e mesmo quando erram, parecem ter boas intenções.
Igualdade mesmo iremos ter quando conseguirem escrever um personagem feminino e feminista como o Don Draper de Mad Men, outra série que começa na mesma época. Don é um canalha adorável, contemporâneo das moças, um verdadeiro “personagem redondo” como se costuma descrever na literatura, cheio de nuances. Por ele nós torcemos inclusive quando erra. O moreno também é lindo, sexy, bem vestido, bem penteado como as moças, só que mesmo fazendo todas as “merdas” possíveis ainda consegue ter um final feliz. Por ora, para feminista se dar bem, seja na vida real, seja na ficção, não basta ser feminina, tem de ser perfeita (e muito sortuda) como Midge Maisel.