O Fim da Narrativa

A MTV e o videoclipe são marcos indiscutíveis do que podemos chamar de era visual. Nela, produzimos mais imagens diariamente do que em décadas inteiras do passado.

por Willian Silveira

Na metade dos anos 80, uma geração inteira de jovens trocou o tempo livre desperdiçado nos subúrbios norte-americanos pela sala de estar. Raras foram as resistências. O receio, como era esperado, ficou por conta dos pais, que pouco tempo antes não enxergavam no horizonte atividades que competisse frente à primeira adrenalina, proporcionada pela bicicleta, à cumplicidade, oriunda do beisebol e ao prazer da vitória, permitido pelo basquete de garagem. Como em um antes e depois inesperado – e por isso difícil de registrar exceto na memória -, as ruas se esvaziaram e as casas se encheram. Ali, melhores amigos se reuniam frente à televisão para acompanhar uma novidade: um canal dedicado à música.

A MTV e o videoclipe são marcos indiscutíveis do que podemos chamar de era visual. Nela,  produzimos mais imagens diariamente do que em décadas inteiras do passado. Modificamos substancialmente a forma como consumimos cultura, cada vez menos estática e cada vez mais interativa. No decorrer do dia, entre a primeira imagem que nos aparece, ao consultarmos o celular pela manhã, até a última, antes de adormecermos juntos a um entre os incontáveis seriados dos serviços de streaming, somos bombardeados por um excesso visual outrora inimaginável. O preço por essa quantidade de estímulos tem sido o fim da narrativa.

No início, os videoclipes tinham fundamentalmente a estrutura de um curta-metragem, com a diferença de que o enredo deveria servir à música, e não o contrário. Rapidamente, a indústria percebeu o potencial de agregar imagem ao diagnosticar que as pessoas não apenas esperariam pelo vídeo da sua música preferida, como não se incomodariam de assistir às músicas que não gostavam caso os vídeos fossem suficientemente interessante. Ironicamente, a inversão das prioridades tornou o videoclipe um produto complexo, propício a alimentar uma cena criativa faminta de bons enredos e desdobramentos inusitados. Em meio a um cenário ávido por originalidade, despontaram nomes como Spike Jonze (Quero Ser John Malkovich, 1999), Michel Gondry (Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, 2004) e David Fincher (Zodíaco, 2007).

O surgimento de nomes promovidos do videoclipe para o cinema não chegava a ser uma surpresa, uma vez que a produção de imagens em movimento ainda se orientava por duas noções básicas: roteiro e edição. Tanto o roteiro quanto a edição (entendida por “montagem” quando realizada em película) são dois traços que nasceram junto com a arte cinematográfica e assumiram protagonismo em fases distintas da evolução do cinema.

O roteiro foi o elemento principal da constituição do cinema desde o início. Nas décadas de 1910 a 1930, a autonomia dos estúdios era conduzida pelo produtor, que contratava diretores como quem escolhe regentes de orquestra – e não como quem opta entre compositores, como imaginamos atualmente. Neste período, diretores como D. W. Griffith (O Nascimento de Uma Nação, 1915) realizavam até sete filmes por ano, em uma produção tão autoral quanto a de um linha de montagem.O protagonismo do roteiro prevaleceu até os anos 50, tempo suficiente para engendrar glamour à figura dos roteiristas e respeito aos prêmios da categoria. A partir da metade do século passado, com a ascensão de movimentos como a Nouvelle Vague o Neorrealismo Italiano, a ampliação do espaço de criação extrapolou a estrutura calcada no desenvolvimento de personagens e em plots pré-definidos, passando a valorizar a noção abstrata de liberdade, que tem no ritmo – e, portanto, na edição – o correspondente em termos de linguagem. Hiroshima Mon Amour (1959), de Alain Resnais, é um exemplo clássico.

Independente do resultado estético, a transição de roteiro para edição como motor cinematográfico não afetava a ideia de narrativa. Seja na suspensão dos conflitos ou na fragmentação da tensão, os modelos disponíveis tinham variáveis empregadas tanto com sucesso quanto com fracasso. Ao fim, uma estrutura linear ou de várias camadas não deixava de ser o modelo de um filme, um projeto visual desenvolvido ao redor de uma história.

O que vivenciamos hoje, porém, é um terceiro momento da produção visual. A facilidade de acesso à tecnologia abreviou o percurso para a realização de um vídeo. Se antecipar o caminho da criação tem vantagens, em nenhum momento, porém, o aumento na quantidade da produção de conteúdo se reflete em qualidade. Pelo contrário, a falta de instrumentalização artística tem resultado na implosão da narrativa. Diferentemente da possibilidade de sinalizar rompimento ou desconfiguração da tradição, a natureza do conteúdo com o qual temos contato nas mais diferentes plataformas apresenta as lacunas deixadas por um amontado de imagens desorientadas, fascinadas por drones e movimentos aleatórios, unidas posteriormente por efeitos especiais caseiros.

Órfão de realizadores que tenham o que contar e saibam como fazê-lo, o público tem se transformado em vítima fácil de uma linguagem empobrecida, composta por sequências intermináveis de imagens unicamente bonitas, captadas por câmeras cada vez mais caras. O superfaturamento da imagem surge como resultado do fetiche da técnica esvaziada; molde perfeito a encobrir a falta do que dizer. Desconfie de quem usa slow motion.

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