A ‘cura gay’ outra vez

A liminar recém deferida pelo juiz federal da 14º vara Waldemar Cláudio de Carvalho trouxe à tona, novamente, a relação da psicologia e da saúde mental como um todo com a homossexualidade.
Alain Turing, matemático inglês que, submetido a tratamentos hormonais para combater sua homossexualidade, viveu anos de tormento que culminaram em seu suicídio.

por Felipe Pimentel

A liminar recém deferida pelo juiz federal da 14º vara Waldemar Cláudio de Carvalho[1] (abaixo anexada) trouxe à tona, novamente, a relação da psicologia e da saúde mental como um todo com a homossexualidade. A liminar partiu de ação popular contra o Conselho Federal de Psicologia (CFP) que alegava que a Resolução 001 de 1990[2] (também anexada) era (segundo a síntese do Judiciário) um “ato de censura” que impedia especialmente duas coisas (i) o estudo e ou pesquisa; e (ii) atendimento; para pessoas que busquem “(re)orientação sexual”. A liminar, com espeque na constituição brasileira, defere, “parcialmente”, dizendo: “Sendo assim, defiro, em parte, a liminar requerida para, sem suspender os efeitos da Resolução nº001-1990, determinar ao Conselho Federal de Psicologia que não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do CFP, em razão do disposto no art. 5º, inciso IX, da Constituição de 1988.”

O debate gerado é muito complexo e recheado de animosidades, especialmente por levantar pontos que tocam em algo profundo da nossa psique. Não deixa de ser uma boa oportunidade para avançar. Vou apresentar alguns pontos centrais e remeter para artigos mais aprofundados de modo a ganhar tempo.

A patologização da homossexualidade [3]

Em linhas gerais, durante o período de predomínio das instituições religiosas, a homossexualidade foi tratada como pecado, chamada sodomia (baseada na prática registrada no episódio bíblico de Sodoma e Gomorra). Depois, com a ascensão da burocracia moderna e a entrega dos pecados à esfera judiciária e policialesca, tornou-se crime, ainda com o mesmo nome, perante o qual, muitos foram punidos, especialmente homens, já que havia alguma “tolerância” com a homossexualidade feminina. Após o século XIX e seu cientificismo, com a ascensão da medicina contemporânea e da psicologia, tornou-se doença, com vários nomes parafilia, inversão sexual, perversão, transtorno de identidade de gênero, etc (para um histórico das denominações como transtorno e os avanços contra tal determinação e as andanças da questão desde Ulrichs e Kertbeny, passando por Kraft-Ebing e Freud até Havellock Ellis e o relatório Kinsey, ver o artigo “Despatologizando a Homossexualidade”[4] aqui anexado). Nas duas catalogações de transtornos mentais que orientam a prática em saúde mental, tanto da OMS[5] (o CID), quanto da APA[6] (o DSM), a homossexualidade foi paulatinamente retirada da lista de transtornos (do DSM foi retirada em 1973, após muito ativismo político nos anos 1960, como os famosos Stonewall Riots; e do CID, em 1990), ainda que atualmente haja uma discussão sobre como utilizar critérios que possam proteger pessoas de penalidades em países que condenam criminalmente a homossexualidade sem patologizá-la. Sobre isso, veja-se, novamente, o artigo citado acima.

 A dicotomia “opção” e “determinismo biológico”

Um ponto interessante que ainda é discutido é sobre a dicotomia “opção sexual” e “determinismo biológico”. Se a sexualidade for compreendida como uma determinação biológica, não estaria disponível ao campo da psicologia, mas da medicina. Se fosse uma “opção”, entendida como uma escolha, poderíamos supor que alguém poderia buscar orientação para “escolher” sua sexualidade (e não significaria que é uma doença, seria algo como escolher fazer um regime). Ocorre que não é uma coisa, nem outra. A sexualidade não é uma escolha no sentido racional do termo, e também não há evidências que ela seja determinada biologicamente. Na realidade, o termo mais adequado, “orientação sexual”, é utilizado porque afasta do ponto de vista semântico a ideia de escolha deliberada e também a determinação biológica. A sexualidade, do ponto de vista da psicologia, é uma trama de desejos e suas ações, histórias e repressões; fantasias, identificações e experimentações – não há um determinante para ela. Mais: do ponto de vista especialmente da psicanálise, qualquer sexualidade e ou orientação sexual é frágil, possuindo uma “falha” de fundamentação. Não existe garantia ou sustentação definitiva, do ponto de vista psicológico, de uma orientação sexual.

O termo reorientação sexual: o erro na discussão

 Se a questão fosse “podemos receber alguém que está sofrendo com sua orientação sexual?”,  a resposta seria que não só podemos como devemos, e assim nós terapeutas  fazemos todos os dias. É um erro factual grosseiro dizer que o CFP quer proibir pessoas de serem atendidas em função de mal-estar com a sua sexualidade – pode-se dizer mesmo que a Psicanálise, uma das mais predominantes teorias e práticas da psicologia, fundamentou-se exatamente em torno da sexualidade como força motriz na “construção” da personalidade. Heterossexuais, homossexuais, bissexuais, tanto faz, todas as pessoas em maior ou menor grau possuem algum grau de angústia com sua vida sexual, campo de muitas satisfações, mas também de algum mal-estar.

Porém, não é disso que trata o texto da liminar, pois o texto acrescenta o termo “reorientação” sexual. Ora, isso muda tudo. Pois não se trata de acolher o mal-estar genérico de alguém com sua sexualidade de modo a analisá-lo e potencialmente aliviá-lo, mas de reorientá-lo. Qual o problema disso? O grande problema é que não existe a mais remota técnica capaz de reorientação sexual ou qualquer coisa nessa direção. Há terapêuticas para analisar e tratar nossa relação com a nossa sexualidade, que podem levar, durante um tratamento, para todas as orientações possíveis, mas esse encaminhamento escapa totalmente do controle do terapeuta e do próprio paciente.

Quer dizer, nós já tratamos cotidianamente o mal-estar de qualquer orientação sexual, mas não temos a menor capacidade de “reorientá-la”. Isso é charlatanismo. Houve uma interpretação do termo “reorientação” que poderia ser compreendido como o seguinte: o sujeito experimenta um mal-estar com sua sexualidade que possui a orientação x. Durante o tratamento ele descobre que sua orientação “verdadeira” era y, e isso seria uma “reorientação” no sentido de “nova orientação”. Essa é a única interpretação caridosa da liminar do juiz. Não creio que é disso que se trata. O juiz não tem obrigação de dominar os termos da área da psicologia, e terminou usando os termos que lhe ofereceram, no caso, o da ação popular, que desconhece os conceitos básicos da área. Aqui, cabe ao CFP e seus praticantes explicarem publicamente que, ainda que o juiz estivesse sendo ingênuo ao utilizar o termo, a equivocação que ele pode provocar é imensa, especialmente dado o histórico das práticas de “terapia” com a homossexualidade (talvez o juiz não estivesse informado que a prática entre os grupos americanos se chama terapia de “conversão”).

Não se pode fazer uma analogia com pedir uma dieta para um nutricionista ou uma prática de movimentos para um fisioterapeuta, pois nestes casos há um conhecimento informando as técnicas deles. E na reorientação sexual não há nenhum. Em toda a psicologia e psiquiatria não há nenhum caminho nem de orientação, nem de sugestão, nem de direcionamento sobre a vida sexual. Muito menos de reorientá-la. É como possuir um problema cardíaco e oferecer em troca um mapa astrológico. São atividades na área da saúde, precisam ser reguladas por órgãos representativos em nome da comunidade científica, e não pelas regras de mercado ou pela genérica defesa da liberdade de pesquisa e atendimento. Os reguladores devem ser os comitês e conselhos das áreas, que, por sua vez, estão embasados cientificamente em organismos e universidades internacionais. Quem defende que um terapeuta ofereça reorientação sexual, dado que é uma prática sem nenhum embasamento científico, deveria aceitar tranquilamente que um médico ofereça luas em capricórnio para embolias pulmonares.

Liberdade de pesquisa

A questão sobre a liberdade de pesquisa realmente é um ponto importante. Por certo, não há proibição de estudar homossexualidade, e nesse momento há centenas de pesquisas no assunto no país. Os movimentos contrários diriam que eles estão eivados de “ideologia do gênero”. Mas é inegável que há estudos sobre isso. Mas os defensores da ação popular desejam que a pesquisa seja livre para investigar exatamente o que chamam de “reorientação sexual”. Ora, esse ponto já é delicado. As opiniões podem, na minha opinião, divergir. Parece razoável que se estude os mais distintos tópicos, assim como também é razoável que eu tome por antiética uma pesquisa que estuda como reverter sexualidade – em última instância, contudo, as decisões competem aos comitês de ética universitários, que possuem o embasamento científico para isso. Agora, o mais importante é que pesquisa se faz com metodologias fundamentadas cientificamente e aprovadas pela comunidade científica internacional, elas não são “estudo reservado”, seja lá o que isso for. A questão, porém, parece-me ser outra.

A terapêutica em questão

Existe uma discussão longa sobre a suposta “cura gay”, chamada de “terapia de conversão”, muito falada nos EUA como “sexual orientation change efforts” (SOCE). Há um argumento de que não se falou em cura gay, mas em liberdade de pesquisa e atendimento em relação a isso. É um sofisma. Quando se fala em reorientação sexual se admite a possibilidade da reorientação. Isso é quase uma tautologia. Como eu disse acima, houve uma interpretação caridosa do termo “reorientação”, tomando-o como a descoberta, durante o percurso terapêutico, da “verdadeira” sexualidade do paciente. Não creio, porém, que o argumento se sustente.

O uso inadequado desse vocabulário pode provocar grandes equivocações, como disse, especialmente dado o histórico das práticas de “terapia” com a homossexualidade, que consistiam exatamente em “reorientação” (as práticas de “reconversão” que descrevi acima). Isso tangencia a cura gay, porque tangencia a possibilidade de eu “reorientar” alguém em sua sexualidade. Aqueles que denunciaram a autorização para a “cura gay”estavam apontando precisamente para esse aspecto do problema.[7] Todas as iniciativas em torno da “cura gay” comprovadamente trouxeram apenas sofrimento para os pacientes das potenciais “terapêuticas” (veja-se o posicionamento da Associação Americana de Psiquiatria[8] ou os estudos publicados no Jornal de Medicina Britânico sobre isso)[9]. De acordo com documento da APA (2009), as práticas da terapia de conversão envolviam desde medicamentos até eletrochoques, passando por hipnose e “aprendizagem”. Especialmente estratégias behavioristas que associam imagens de sexo homossexual com desprazer, dor, angústia e outros sentimentos negativos que gerem aversão.

O ambiente e a dupla mão das ciências humanas e psicológicas

Como a questão da sexualidade envolve questões ambientais e sociais, é evidente que a patologização de uma prática promoverá prejuízo para aqueles que a vivenciam. Assim, cria-se um ciclo vicioso: eu patologizo um comportamento, gerando mal-estar naqueles que “o praticam”, e depois eu percebo seu mal-estar e prometo curá-los desse mal-estar. Será que as entidades do mundo inteiro, a Associação Americana de Psiquiatria e a Organização Mundial de Saúde, estão mancomunadas na estratégia global da ideologia de gênero?

A questão é, acima de tudo, de objetivo terapêutico. Eu posso e devo (e cotidianamente os psicólogos o fazem) atender alguém que sofre com sua sexualidade (independente da “orientação”). Eu só não posso em nenhum momento dizer que domino (ou que existe) uma técnica capaz de apontar em alguma direção a sua sexualidade ou interferir nela. E a responsabilidade desse alerta cabe ao técnico da área, no caso, o psicólogo – o paciente não tem obrigação de saber disso. Se o paciente chegar com tal equivocação (me reoriente), é ao psicólogo que cabe o esclarecimento de que não há domínio de técnicas capazes disso, e assim abrir espaço para um tratamento terapêutico verdadeiro e ético. Pode alguém buscar ajuda de um psicólogo para deixar de ser gay? Acima já deixei claro que é evidente que uma pessoa pode fazer essa busca, ela não precisa estar informada de que na psicologia não existe essa técnica, cabendo ao psicólogo ética e cientificamente a responsabilidade de lhe explicar isso. Se a liminar afirmasse somente que não podemos impedir atendimento de alguém em sofrimento com sua sexualidade, ela estaria dizendo algo não só aceitável, mas, acima de tudo, óbvio; e não estaria dizendo nada novo. Mas não. Ela usa a palavra “(re)orientação”. E nisso comete um erro técnico, não na sua área, mas da alçada da psicologia.

Talvez o ponto central esteja fora da psicologia. Pode alguém oferecer uma prática fora da psicologia (seja ela baseada em astros, reiki ou florais de Bach) que prometa reorientar a sexualidade? Talvez sim. É obscurantismo, é charlatanismo, é antiético, mas talvez não possamos nem devamos proibir. Porém, a partir do momento em que isso é feito em nome da psicologia, aí sim precisa ser regulado pelos órgãos competentes da área.

[1] https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Decis%C3%A3o-Liminar-RES.-011.99-CFP.pdf

[2] https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf

[3] Os debates atuais sobre a revisão do CID podem ser vistas no Boletim da Organização Mundial de Saúde https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4208576/.

[4] Drescher, J. (2015). Out of DSM: Depathologizing Homosexuality. Behavioral Sciences, 5(4), 565–575. https://doi.org/10.3390/bs5040565

[5] Organização Mundial de Saúde.

[6] Associação Americana de Psiquiatria.

[7] O posicionamento da Organização Pan-Americana de Saúde, ver o texto Curar uma doença que não existe https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=17703&Itemid=270&lang=en

[8] https://www.apa.org/pi/lgbt/resources/therapeutic-response.pdf

[9] https://www.bmj.com/content/328/7437/427

COMPARTILHE: