por Martín Paz
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Quando, em maio de 2018, José Emilio Burucúa anunciou que dirigiria o seminário “Iconografia das ideias úteis ao século XXI: Esperança e humanidade”, aproximei-me do Edifício Volta, da Universidade de San Martín, com a alegria de poder escutar novamente a um dos intelectuais mais versáteis e envolventes da Academia argentina. Os cursos de Burucúa são sempre uma manifestação de originalidade, erudição e generosidade de que são testemunhas as gerações de estudantes e discípulos que se formaram com ele.
Burucúa dedicou vários de seus escritos e estudos à obra de Aby Warburg e daqueles que a deram continuidade na Europa e na Argentina, sendo ainda possível dizer que ele próprio deve ser incluído em uma posição de destaque nessa sequência. Dentro de sua vasta e heterogênea produção, Burucúa é o principal divulgador intelectual do historiador alemão no Rio da Prata.
Em suas aulas — seja o assunto a história da arte, a história da cultura, a literatura do Renascimento —, Burucúa combina o rigor historiográfico com uma extraordinária capacidade para estabelecer séries, encontrar parentescos e recorrências entre fenômenos e manifestações artísticas, de uma forma na qual se percebe o rastro e as impressões de Aby Warburg.
Foi assim que, como antigo aluno, me acomodei no auditório, esperando as reações extremadas, as sequências audazes, as ênfases warburguianas com as quais o professor desenvolveria suas novas hipóteses. Já estava acostumado por ter cursado seu seminário chamado “Atribuciones”, no qual, depois de uma figura de um anônimo medieval, seguiu-se um quadro de Rothko, continuando com as silhuetas de Ana Mendieta, tudo isso com absolutas coerência e naturalidade e muita imaginação.
Nessa vez, porém, as coisas foram para muito além do esperado. Para falar sobre a crise (o fracasso?) do humanismo, Burucúa lecionou um curso sobre os elefantes. Acontece que a rede conceitual armada em torno desses animais veio a se constituir como um belo exemplo do método Burucúa. A particularidade do questão lacrimal nos elefantes, que leva o folclore popular a atribuir a esses animais a capacidade humana do choro, levou a um estudo dos grandes fisionomistas — uma genealogia que inclui o gênero do retrato caricatural de Gianlorenzo Bernini, as silhuetas do ministro Étienne de Silhouette, passando pelo tratado de Lavater sobre A arte de conhecer os homens pela fisionomia, para finalizar com o tratado sobre A expressão das emoções nos humanos e nos animais de Charles Darwin.
Se comparamos o curso de Burucúa com a árvore do conhecimento dos enciclopedistas, nos galhos mais próximos ou mais distantes, encontraríamos Aristóteles com suas três definições de humanidade, os emblemas de Alciato (e de Solórzano em um galhinho mais abaixo), a revista Pachyderm — principal publicação científica dedicada aos elefantes —, o humanismo africano, Felwine Sarr e Suleiman Bashir, os alertas de notícias sobre elefantes na imprensa mundial, o humanimalismo, os retratos de prisioneiros da NKVD de Beria antes da execução fotografados pelo polonês Tomasz Kizny.
Para a sorte daqueles que não puderam comparecer, durante quatro encontros, o professor fez referência principalmente às investigações que conduziram a seu esplêndido livro Historia natural y mítica de los elefantes (Ampersand, 2019), escrito em coautoria com o historiador Nicolás Kwiatkowski, — uma história das imagens e representações dos paquidermes na Europa e no Oriente.
Em um registro mais rápido, os escritos epistolares de Burucúa replicam uma lógica similar e são outra forma de tributo ao mestre alemão. Publicados sob o título Cartas norteamericanas, Cartas berlinesas — como não pensar no grande Joseph Roth e suas crônicas de Berlim?! — e Cartas del Mediterráneo Oriental (aos quais podemos ainda acrescentar a antecipação de possíveis cartas africanas, que apareceram parcialmente como inéditos em suplementos culturais), os epistolários são outro exemplo do modo como opera a matriz warburguiana nessa máquina de fazer analogias que é o cérebro de Burucúa. Assim, é possível reencontrar-se com a jovem em Las Vegas, em um espetáculo do Cirque du Soleil, ou ainda reconhecer nas tumbas dos poetas ambulantes de Senegal, sepultados sob um baobá porque se lhes nega o enterro em um cemitério, o mesmo destino dos artistas ambulantes da Baixa Idade Média.
Em Historia, Arte, Cultura: de Aby Warburg a Carlo Ginzburg, José Emilio Burucúa confirma que é o último elo de uma grande tradição warburguiana na Argentina. O interesse pela obra e pela figura do autor alemão, que atualmente volta aos primeiro níveis de consideração e atenção acadêmica mundial, percorreu por estas terras um caminho muito maior do que muitos supõem.
Aby Warburg nasceu em Hamburgo, em 1866, no seio de uma poderosa família de banqueiros judeus. Jovem, decidiu que seu destino não estava nas transações econômicas; por meio de um acordo com um de seus irmãos, desvinculou-se dos negócios familiares, tendo garantido previamente as garantias econômica necessárias para suas investigações futuras. Warburg estudou filosofia, história e religião em universidades da Alemanha, da França e da Itália. Em suas primeiras obras, já estava presente o tema que viria a ocupar o centro de suas preocupações: a transmissão da iconografia antiga em diferentes culturas, especialmente no âmbito do Renascimento Europeu. Em 1896, Warburg realizou sua famosa viagem à América do Norte, onde permaneceu durante seis meses entre as comunidades indígenas Pueblo e Navajo — o que lhe permitiu ampliar o universo de seus estudos para além das culturas do Mediterrâneo. Interessado nas relações entre o pensamento mágico e a arte, a ciência e a religião durante o Renascimento, adicionou, à sua já impressionante coleção de livros, exemplares raros em temas como a astrologia e a história natural. Em 1909, comprou uma casa em Hamburgo na intenção de realocar sua biblioteca e criar um instituto de pesquisas — tarefa para a qual, em 1913, contratou o jovem historiador da arte Fritz Saxl. O começo da Primeira Guerra Mundial e uma prolongada internação psiquiátrica entre 1918 e 1923 atrasaram a abertura do Instituto, que foi finalmente inaugurado em 1926. Após a morte de Warburg em 1929, e com a ascensão dos nazistas ao poder em 1933, o futuro da biblioteca apresentava-se sombio. Saxl, em uma manobra audaciosa que contou com auxílio do governo britânico, conseguiu realocar a biblioteca, com seus mais de 60.000 volumes, a seu lugar atual, Woburn Square, em Londres, e assim escapar à perseguição. Em 1993, a cidade de Hamburgo adquiriu o velho edifício da rua Heilwigstraße, onde, desde 1997, funciona hoje em homenagem um segundo Instituto Warburg como centro de pesquisa e investigação da história cultural.
Em meados dos anos 1980, e fundamentalmente nos anos 1990, houve toda uma revalorização do pensamento de Aby Warburg. Para esse ressurgimento de sua figura e suas ideias, é possível operar com o mesmo conceito de “volta à vida” com que Warburg pensou em relação ao estudo da iconografia. José E. Burrucúa, seguindo o caminho intelectual do mestre e de seus discípulos, crê que a biografia que Ernst Gombrich escreveu sobre Aby Warburg tenha sido decisiva para esse resgate: “A primeira versão, de 1976, passou despercebida, mas em 1986 foi publicada com um paratexto muito cuidadoso e muito bem preparado. Antes disso, já haviam sido realizadas algumas jornadas e pequenos eventos em torno da figura de Warburg, mas o impulso foi dado pelo texto de Gombrich, já que, depois de Arte e ilusión, tudo que ele publicava tinha grande repercussão. Por volta dos mesmos anos, foi lançada uma coletânea de ensaios do italiano Carlo Ginzburg, com um artigo sobre o problema do método, intitulado ‘De Aby Warburg a Ernst Gombrich.’ Quanto às ideias, creio que, depois da grande dissolução das maiores narrativas do século XX, sobretudo pelos embates de Foucault, buscava-se ansiosamente por novas visões que dessem conta, ao mesmo tempo, tanto da acumulação exaustiva de informação em períodos específicos quanto de visões gerais acerca do processo histórico. Nesse sentido, Warburg proporciona um modelo extraordinário. Lendo Ginzburg, lendo Gombrich, damo-nos conta de que ali talvez estivesse a pedra filosofal.”
Os estudos são dedicados ao Renascimento. Como definir “a volta do antigo à vida” nesse período, e como interpretar o conceito próprio em outros momentos da história da arte, são interrogações às quais Burucúa tem resposta: “Aquele que se deu conta de que havia ali um problema foi um discípulo indireto de Warburg, Erwin Panofski. Ele descobri que não havia uma única volta do antigo à vida, mas várias. Para Panofsky, houve muitos renascimentos até que viesse o Renascimento dos séculos XIV e XV, que é, em alguma medida, o último, aquele que encerra todo um ciclo de despertares. O despertar do antigo à vida é, nos casos do Trecento, do Quattrocento e até o século XVI, uma reatualização básica, intensa, emocional e intelectual do horizonte da antiguidade com uma consciência de que esse horizonte é já radicalmente diferente e outro aspecto do horizonte cristão medieval. Então, segundo Warburg, essa instauração, na cultura do Renascimento, de um horizonte, de um lado, de profunda alteridade e, de outro, que os homens de então sentiam que lhes pertencia por herança, porque eles haviam saído dali, é o que instaura um gigantesco conflito, uma tensão, um enfrentamento muito agudo que jamais havia sido experimentado da mesma maneira.”
Especialmente pela criação da biblioteca e do projeto do Instituto, Warburg ganhou um grande prestígio como planificador cultural. Sem dúvida, essa redescoberta de Warburg coloca em primeiro lugar sua figura como intelectual. Segundo Burucúa, uma interpretação, de certo modo, “irracionalista” acabou por favorecer o ressurgimento de suas ideias: “O verdadeiro êxito de Warburg deve-se à interpretação de matriz nietzschiana. Trata-se de uma interpretação contrária à de Gombrich, uma interpretação muito iluminista. O que ocorre é que, em Warburg, duas coisas estão em constante e perfeita tensão: a magia e a razão. Warburg, individualmente, era uma pessoa que pensava que o destino dos homens estava no desenrolar da ratio, mas que estava sempre atento à persistência do mágico.”
A preocupação quanto à função e a perenidade do pensamento mágico no desenvolvimento das civilizações já estava presente nas primeiras obras de Warburg. O assunto aparece no estudo sobre o Palácio Schifanoia e em um segundo escrito, que tem como objeto a magia e a astrologia em tempos de Lutero, que contém as interpretações medievais em termos astrológicos sobre o nascimento do reformador — e é um dos mais extensos escritos por Warburg. O terceiro, e fundamental, constitui suas memórias de viagem ao Novo México em 1895 — talvez um dos mais conhecidos, graças às imagens de Warburg junto aos antigos Navajo, ou às que tinha da dança ritual da serpente (por ele aproximada do culto a Dionísio nas origens da civilização grega). Nessa viagem, Warburg procurou desentranhar o papel básico da magia no processo evolutivo da hominização. O resultado é um texto tardio, de ’23, que inclui suas memórias de viagem, escrito depois de toda sua experiência de pesquisa em torno da magia renascentista.
Burucúa conta que, em sua viagem ao Novo México, Warburg “trabalha antes no Smithsonian com os relatos dos etnólogos americanos. Creio que ali começa a elaborar uma série de hipóteses sobre ir verificar em estado original, primigênio, a questão do cerimonial, a questão da dança, da magia em uma cultura na qual isso constituía então parte do acessível em termos de experiência direta”. Se, para ele, a magia era o núcleo da cultura, ele “vê que o outro núcleo, o núcleo da ratio, também estava presente. Isto é, existe algo que podemos chamar de umbral mágico, constituído sobretudo pelo emocional, e o umbral da ratio (ou ‘primeiro umbral tecnológico’). Claro, a vida vai transcorrendo pelos dois. Dependerá daquilo que estiver em jogo.”
Para os tempos de crise, o pensamento mágico é uma solução possível. Esse ressurgimento em épocas difíceis oscila com as construções a partir da racionalidade em cada momento das civilizações: “a civilização parece construir-se, antes de tudo, a partir do umbral da ratio que termina na tecnologia. Agora, as construções que se fazem sobre esse umbral são cada vez mais complexas, mais sutis e, nos momentos críticos, essas são as primeiras a desmoronar. Há construções que se vão fazendo a partir do umbral mágico que têm veias que as comunicam com as outras e que podem, além disso, ser perfeitamente compatíveis e sequer entrar em maiores conflitos. O que acontece é que, em realidade, pareceu que a civilização moderna, a partir da revolução científica, não pode aceitar uma conciliação com nada que se construa a partir do umbral mágico. Aí está um dos grandes problemas da civilização moderna: o umbral mágico é ilegítimo, não se justifica nem por si mesmo. É, em verdade, sinônimo de falsificação, de engano, de cegueira.”
Ainda assim, no Renascimento, há uma tensão entre magia e religião, porque, de alguma forma, disputa-se o poder do conjuro: “a religião cristã é uma religião que, em algum momento, também se coloca como irreconciliável com o mágico. É algo que os pais fundadores da Igreja sempre reforçaram, desde Tertuliano a Santo Agostinho. Não se trata nem de taumaturgia nem de vidência, mas do milagre de que o apóstolo ou o santo não são mais que instrumentos. O milagre é realizado pela divindade que se faz presente no momento. Não é um adivinho que tem um domínio sobre as forças ocultas; isso é mentira, engano, falsificação. Isto é, não há conciliação já no cristianismo. Depois, são necessárias algumas concessões, sobretudo no que diz respeito às imagens, à imagem milagrosa. Aí, há um inevitável compromisso da religião cristã com a esfera do mágico”.
Na ciência moderna, por outro lado, não há reconciliação possível com o mágico: “desde o princípio, já se manifesta como irreconciliável, já que o mágico é o mundo da mentira e do engano. Então, com essas duas vertentes, o mundo moderno é a primeira civilização que dispõe que sua axiologia não pode transigir com a magia. Creio que é o único caso na história da humanidade em que isso ocorre. Quem observou esse fenômeno muito bem foi Ernesto de Martiño, um antropólogo italiano que cita Warburg em um maravilhoso livro chamado Il mondo magico. Ele atribui essa persistência do mágico no meridione italiano ao fato de que, de certa forma, essa sociedade não derivou da modernização nada além da dor. A modernização não apenas não solucionou nenhum de seus problemas como acabou também por lhes proporcionar uma dor insuportável; assim, há um afastamento desse núcleo.”
Em algum sentido, de alguma forma, Burucúa está pensando o presente. Na sociedade contemporânea, em um meio urbano altamente tecnológico, “tudo o que está construído a partir do umbral mágico é deslegitimado. Qual é a resposta na crise? Uma das duas: ou retrocedemos, convertendo-nos em animais — sendo essa a resposta na qual só há medo de um reflexo de fuga —, ou nos acontece algo de muito monstruoso que não sabemos bem como definir, que é um fenômeno humano, mas onde nos refugiamos porque o umbral tecnológico se despedaça, a própria crise termina com ele, e o umbral mágico carece de fundamento. É aí então que o que acontece em escala individual é o homicídio e, em escala coletiva, algo parecido com o homicídio que é a alienação completa de nossa vontade na vontade dos outros, os outros aos quais delegamos todas nossas decisões.”
Se nos lembrarmos da provocativa frase da professora de filosofia medieval, Silvia Magnavacca, no sentido de que, nos grandes momentos de crise, o Ocidente sempre se voltou ao Oriente e… não encontrou nada, podemos seguir pensando sobre esse mesmo tema com Burucúa: “O Ocidente tem, firme e sistematicamente, desacreditado a magia. Não há legitimidade na magia.”
De acordo com isso, como exemplo, Burucúa recorda o caso muito bem estudado por Juan Pablo Bubello, sobre as irmãs que mataram o pai. “Elas são estudantes universitárias. Primeiro vão ao médico, o médico fracassa. Depois vão ao padre, o padre dá santinhos e suas bênçãos, por um tempo as coisas até que mais ou menos se sustentam. Depois visitam o guru, o mago, que lhes dá perfumes, essências, e com isso a coisa mais ou menos funciona. Mas, repentinamente, um insuportável cheiro de podridão invade a casa e aparece o monstro no espelho. Nesta noite, matam o pai. Para elas, falha também a magia. Esse é um caso muito interessante, é um espanto, mas o interessante é que há nessa família, não sabemos bem por que, um terror instaurado a partir de determinado momento. Creio que tem a ver com a morte da mãe, ali se coloca um conflito que não tem uma solução corrente. O juiz, para as declarar inimputáveis, atribui-lhes aquilo a que se chama de delírio mágico, com base em laudos de psicólogos que invocam Totem e tabu, a regressão ao estado da infância, essas coisas. E tudo bem que lhes tenha declarado inimputáveis porque é evidente que não tinham responsabilidade por aquilo que faziam, mas o erro está em dizer que se trata de um delírio mágico, porque se o delírio tivesse sido mágico elas não teriam matado o pai. Restava a elas esse último refúgio do que é humano. E foi-lhes dito claramente: essas coisas que foram buscar no centro de alquimia não funcionaram. E é nessa noite que cometem esse sacrifício horripilante. O medo tem completa dominação sobre elas e sobre o pai, que admite ser sacrificado sem resistência.”
A partir do caso individual do parricídio que cometem as filhas, um fenômeno coletivo: “o exemplo mais inquestionável é o nacional-socialismo. Esse tipo de fenômenos, nos quais o que há é também uma sensação de terror, onde não há — na supertecnologizada e industrializada Alemanha — a possibilidade de se voltar a reconstruir algo a partir da magia. Então, a reação é simplesmente se entregar à vontade do Führer e obedecer cegamente.”
Na década de 1990, passaram a ser exibidos os painéis de imagens confeccionados por Warburg no período entre 1924 e 1929, ano de sua morte, como parte do projeto que ele mesmo chamou de Mnemosyne. Os painéis agrupavam, sobre um fundo negro, imagens miscelâneas que podiam incluir tanto uma escultura clássica como um quadro de Botticelli ou fotogramas dos filmes dedicados às Olimpíadas contemporâneas. As imagens eram reproduzidas em preto-e-branco para gerar um efeito de homogeneidade, e vinculadas por tema à margem de qualquer classificação artística ou cronológica. Burucúa diz: “Warburg desejava construir um Atlas, que chamava de ‘memória da civilização europeia’, formado fundamentalmente por imagens, no qual se podia intercalar todas essas formações que ele armava e concebia de maneira dinâmica, constantemente em movimento. Então, ele intercalava alguns pequenos textos, às vezes não os colocava mas os ditava, e falava sobre as imagens. Também isso é algo paradoxal, porque sabemos que Warburg dava conferências sobre essas imagens, e essas conferências duravam entre quatro e cinco horas; elas não estavam, portanto, no texto escrito, mas havia uma discursividade. O certo é que ele pensava que as imagens teriam esse poder de desencadear em nós uma capacidade de associação, e essa descoberta por meio exclusivamente de um pensamento visual, um pensamento discursivo. Olhando para esses painéis da memória do Ocidente, era possível acessar uma reconstrução dos caminhos da própria memória. Não é que Burucúa não escrevia, mas reduzia o texto ao mínimo. Acreditava que, mostrando essas imagens relacionadas, posicionadas sobre um fundo escuro, seria possível desencadear uma série de mecanismos que, por sua vez, desencadeariam nossas próprias lembranças. Desse modo, conheceríamos aquilo que está confinado em nossa memória, recuperando toda essa experiência emocional e formal.”
Acerca do método que permitia Warburg estabelecer relações entre as representações de sociedades distantes em épocas e graus de desenvolvimento, diz o historiador argentino: “O ponto de partida é a analogia da forma. Não somente aquilo que poderíamos chamar de princípios compositivos gerais de forma, mas já no âmbito de questões de detalhe do tipo sobre o qual teríamos de pensar em algum tipo de derivação material. É daí que vem a relação com o método indiciário de Ginzburg, não buscar a grande forma, mas ver o que está em uma figura de forma a representar as unhas, de representar a imbricação dos pelos na pele. Nos detalhes é que se pode dizer: isto é derivado disso, quase que com um caráter comprobatório, quase como se houvesse um documento escrito. Agora, ele sempre começa a partir de algo que lhe interessa no Quattrocento e no Cinquecento, começa buscando a procedência de uma forma, e começa desde muito atrás e vai então construindo uma derivação, uma linhagem. Então, descobre que há formas que se ocultam, que se eclipsam em determinados momentos e que voltam a aparecer. Depois, faz o caminho inverso: desde suas origens remotas até essa versão nova, produzida pela ‘volta do antigo à vida’.”
Para o autor de Corderos y elefantes, isso não tem nada a ver com os arquétipos de Jung: “não há dúvida de que há nele uma tentação de estabelecer parentescos atemporais que vão para mais além dos condicionamentos históricos. Creio que, antes de qualquer coisa, busca um procedimento de associação e analogia, como é relacionar, por exemplo, a serpente com a escada e então com o raio e então ver como a serpente atua à forma de uma conexão entre os três mundos. E então pensa: se eles têm conexão, não me parece inverossímil que também tenha havido na civilização grega.”
Tampouco se trata de uma analogia da experiência, “não são formae mentis as que coincidem ali. Diante da experiência semelhante, do contato dos homens com esse ser terrível e ambíguo que é a serpente, não é absurdo pensar que se converta em uma encruzilhada importante, para uns e para outros. Agora, o que me parece não haver é um arquétipo, isso não. Warburg jamais falou de algo parecido com isso. O que há, sim, são experiências equivalentes. Agora, como isso vai se converter em uma fórmula de pathos, isso já é algo completamente diferente e é um fenômeno absolutamente histórico. A interpretação mais recente de Warburg insiste muito no atemporal, é a de que Warburg certamente buscava esses grandes núcleos atemporais, e eu não estou de acordo com isso.”
Warburg estudou alguns motivos recorrentes nas formas de representação de diferentes sociedades, chamando a isso de Pathosformeln, ou “fórmula de Pathos”, ou ainda “fórmula emotiva”. Essas representações gráficas, visuais, auditivas, produzem uma resposta emocional e remetem a um significado compartilhado pelos integrantes de uma cultura. Desse modo, o surgimento da fórmula tem uma origem histórica e se estende no tempo dentro de uma tradição cultural. Talvez a fórmula emotiva da Ninfa seja a mais famosa entre aquelas classificadas por Warburg. Há registros no século IV a.C., nos primórdios da cultura grega, e isso permanece, com maior ou menor visibilidade, ao longo de toda a tradição ocidental, como representação do poder da vida jovem. Na Idade Média, a representação emudece ou é ocultada; no Renascimento, explode, convertendo-se então na mais resgatada imagem do paganismo antigo.
Nessa linha, Burucúa sustenta que nós, argentinos, tempos nossa própria Ninfa: “Com o cabelo solto, o rosto entre o sereno e o exultante, é a imagem de Eva Perón ‘revivida’ pelos movimentos juvenis na década de 70. Essa imagem de Eva não havia tido grande circulação nem durante os anos do primeiro peronismo nem, não preciso dizer, logo após a queda de Perón. Com certeza, é uma imagem deslumbrante que surge ressignificada décadas mais tarde.”
(Tradução de Gilberto Morbach, deputy editor do Estado da Arte.)
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