por Flávio Ricardo Vassoler
1. Já-já-gol! Maturidade do adulto: recuperar a seriedade da criança ao brincar
A artilheira pré-mirim Suri – também conhecida como Surissaura, por causa de seu fascínio (verdadeira nostalgia) pelos gigantes pré-históricos – se prepara, aos 45 minutos do segundo tempo, para bater o pênalti decisivo da final do campeonato brasileiro: até então, Corinthians 0 x 0 Flamengo.
De costas para os espectadores, o goleiro flamenguista Júlio César desponta como um Golias diante da pequenina Suri Davi. Reparemos que a câmera de Juliana Luz – com um sobrenome bem propício para a caça às borboletas de suas fotografias – embaralha a metade esquerda da foto: toda a atenção deve se voltar para os instantes que antecedem a cobrança de Suri – o oitavo título brasileiro do Coringão depende da categoria do pezinho direito (entre 33 e 34) da centroavante.
E eis que Suri toma posição, avança para a bola e – a câmera de Juliana Luz captura o momento imediatamente anterior ao gol e à consagração pré-mirim de Suri.
Içada em arco, a perna direita de Suri estará à iminência de bater o pênalti – para sempre.
Reparem que a experiente artilheira pré-mirim sequer olha para a bola; Suri mirará o goleirão Júlio César como que a driblá-lo com o olhar – para sempre.
Certa vez, o escritor francês Henri-Marie Beyle (1783-1842), também conhecido como Stendhal, sentenciou que a arte é uma promessa de felicidade.
A foto-coágulo de Juliana Luz – um quase-gol, um já-já-gol – não só promete como realiza a felicidade ao abrir um sorriso amplo diante da centroavante de vestidinho florido. O lirismo da fotógrafa/caçadora de borboletas descobre o baú do tesouro de um dos mais belos aforismos do filósofo alemão Peter Pan Nietzsche (1844-1900): “Maturidade do adulto: recuperar a seriedade da criança ao brincar”.
É como se já entreouvíssemos o saudoso locutor futebolístico paulistano Sílvio Luiz (1934 – ) a narrar, na Rede Bandeirantes, o já-já-gol mais importante da carreira de Suri:
– Éééééé doooooo Coriiiiiinthiiiiiiaaaaaans! Confira comigo no replay: foi, foi, foi, foi, foi ela – Suri, a craque da camisa número 11! Quando eram jogados redondos 45 minutos da segunda etapa. Agora: Corinthians 1, Flamengo nada – o Corinthians está perto, muito perto, perto mesmo de ganhar seu oitavo título nacional! Octávio Muniz, o que é que só você viu?!
[Juliana Luz me revela que Suri é o equivalente iídiche para Sarah, a esposa de Abraão e matriarca do povo judeu, no Velho Testamento. Juliana, mãe de Suri, deu à Luz a borboleta artilheira; Suri/Sarah (Surissaura) nos trará a cura com a promessa do já-já-gol – para sempre.]
2. Obturador, obstetra – Tempo, templo
A Luz do obturador da câmera de Juliana captura (funde e confunde) tempos diversos.
O que foi.
O que é.
(A dor do que poderia ter sido e a aposta no que poderá ser?)
Da esquerda para a direita da foto, os movimentos se replicam – a foto, então, configura, de forma intersemiótica, um diálogo cinético entre fotografia e dança, uma vez que a motricidade da imagem (e seus tempos luminosos diversos) mimetiza os rodopios dos dançarinos.
É como se a fotógrafa e dançarina de tango Juliana, com o obturador-obstetra de sua câmera, tivesse dado à Luz os seguintes versos do poeta anglo-americano T.S. Eliot (1888-1965):
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
. . . .
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um fim, que é sempre presente.
3. ¿Hoy sufro solamente?
Para quem está sofrendo, o tempo é o látego (e o cárcere) de um presente que parece eterno – eterno sofrimentoÉ com esse pathos que o poeta peruano César Vallejo (1892-1938) exalou um poema em prosa intitulado Voy a hablar de la esperanza (publicado postumamente em 1939), cujo flagelo tem início da seguinte maneira:
Yo no sufro este dolor como César Vallejo. Yo no me duelo ahora como artista, como hombre ni como simple ser vivo siquiera. Yo no sufro este dolor como católico, como mahometano ni como ateo. Hoy sufro solamente. Si no me llamase César Vallejo, también sufriría este mismo dolor. Si no fuese artista, también lo sufriría. Si no fuese hombre ni ser vivo siquiera, también lo sufriría. Si no fuese católico, ateo ni mahometano, también lo sufriría. Hoy sufro desde más abajo. Hoy sufro solamente.
Ao sofrimento como ontologia, no entanto, se contrapõe, com fé e súplica, de joelhos e com as mãos abertas em palma, a seguinte sabedoria redentora do Eclesiastes (3: 1-8):
Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para plantar e tempo para arrancar o que foi plantado; tempo para matar e tempo para sarar; tempo para demolir e tempo para construir; tempo para chorar e tempo para rir; tempo para gemer e tempo para dançar; tempo para atirar pedras e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abraços e tempo para apartar-se; tempo para procurar e tempo para perder-se; tempo para guardar e tempo para jogar fora; tempo para rasgar e tempo para costurar; tempo para calar e tempo para falar; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para a guerra e tempo para a paz.
Juliana Luz nos apresenta Pandora em sumo sofrimento – o corpo agônico e prostrado tem inveja de seu reflexo que não dói, de sua imagem especular que só faz mimetizar a dor que deveras não sente.
A imagem especular através do chão – o duplo da dor –, não sendo a própria Pandora, aponta para algo outro: um tempo que nos retire da prostração e da paralisia, um tempo que nos permita imaginar Sísifo, o rolling stone condenado pelos deuses, feliz e liberto.
Reparem que, junto à imagem especular, a câmera de Juliana captura uma nesga de Luz – ela não está presente junto ao corpo tangível que agora dói, mas desponta como uma nuvem (um raio em céu azul) junto à imagem que clama: “Pai, por que me abandonaste? Pai, me ajuda, me salva, eu te suplico!”
4. Para Juliana ?ahräzäd Luz é preciso sentir o orvalho da campina com os pés descalços
E eis que a fotógrafa e atriz Juliana Luz, alada pelo tapete persa de sua prima-irmã ?ahräzäd (pronuncia-se Xahrazád), se descobre em meio à corte do rei ?ähriyär (pronuncia-se Xahriár, aspirando-se o “h”). Juliana será a testemunha ocular das 1001 noites.
Ora, quem já não entreouviu a voz melíflua e cálida de ?ahräzäd em madrugadas insones e turvas pelo incenso da fantasia? É como se, a bordo do tapete persa e voador de Juliana, a imaginação surrupiasse as 1001 estórias que a sábia e sagaz ?ahräzäd narra para o rei ?ähriyär; é como se, embalada pela astúcia de Ali Babá, a imaginação sussurrasse “abre-te, sésamo” antes de dizer “era uma vez”; é como se, antes mesmo do fiat lux (“faça-se a luz”) de Deus no Velho Testamento, a imaginação fosse iluminada pela lâmpada mágica de Aladim. (Em dezembro de 2017, visitei o Grande Bazar, em Istambul, e lá encontrei a lâmpada de Aladim com o pavio prestes a ser aceso. Quando fiz menção de esfregá-la como a personagem das Mil e uma noites, o vendedor da lojinha, de bigode desgrenhado e olhos bem pretos e vivazes, me recomendou muito, mas muito cuidado: “Se o gênio da lâmpada escapulir, ninguém poderá fazê-lo voltar ao cativeiro – quem poderá, então, prever as consequências de sua magia?”)
Demasiado humano, o novelo narrativo do Livro das mil e uma noites é o filho dileto do ímpeto de vingança com a luta pela sobrevivência. O rei ?ähriyär, membro de uma poderosa dinastia, descobre que sua mulher o trai com um escravo. (Dada a atroz desigualdade que faz o trono real ser soerguido pelo dorso prostrado da escravidão, sentimos bastante simpatia pela engenhosidade dos escravos que se fantasiam de mulheres para transar com a esposa e as concubinas do rei, na surdina, enquanto o monarca sai para caçar.) Quando ?ähriyär descobre chifres em cabeça de cavalo, seu reino é tomado por sangue, choro e ranger de dentes. A mulher, as concubinas e seus escravos são executados bárbara e pedagogicamente. Ainda assim, ?ähriyär não se conforma. Ora, como é possível que o rei tenha sido traído de maneira tão ardilosa e comezinha? Como é possível, a bem dizer, que meros escravos possam causar dor ao soberano? (Avesso a qualquer tipo de igualdade, eis que o rei descobre que a dor pode ser democrática e que a fragilidade daquele que precisa confiar nos outros acaba aguilhoando o senhor a seus escravos.)
Aflito com a possibilidade de voltar a ser traído, ?ähriyär idealiza a mais sádica das vinganças: a partir de então, o rei se casaria à noite e, pela manhã, após a extração do prazer, condenaria todas e cada uma de suas sucessivas esposas à morte. É como se a misoginia do rei ?ähriyär entrevisse em cada mulher uma descendente de Eva, a (suposta) culpada pelo fato de os seres humanos terem sido expulsos do Éden mitológico. (Ora, a história nos ensina que os senhores têm o privilégio de alienar a própria culpa para os escravos. Por essa (pato)lógica, os pobres seriam culpados por sua pobreza, assim como as mulheres seriam responsáveis pelos abusos que sofrem. Em suma, a vítima seria culpada por ser vítima.)
O reino de ?ähriyär se põe em polvorosa: pais e mães velam suas filhas assassinadas, mães e pais rogam clemência ao soberano, mas ninguém consegue demover o rei traído de sua sanha de vingança. Eis que surge, então, o destemor de ?ahräzäd, moça que “tinha lido livros de compilações, de sabedoria e de medicina; [que] decorara poesias e consultara as crônicas históricas; [que] conhecia tanto os dizeres de toda gente como as palavras dos sábios e dos reis. Conhecedora das coisas, inteligente, sábia e cultivada, [ela] tinha lido e entendido”. ?ahräzäd, ademais, era a primogênita do vizir encarregado de matar as esposas do rei. A filha pede ao pai que a entregue em casamento ao rei e permita que o soberano a mate. (A simbologia moral das Mil e uma noites nos sugere que o potencial martírio de ?ahräzäd, a filha do carrasco do rei, toma para si a culpa por todas aquelas que pereceram pela espada do pai.)
É assim que, para desespero do vizir, a filha do carrasco real se vê entregue ao vingativo ?ähriyär, que já sonha com a degola de mais uma esposa/potencial traidora. Ocorre que ?ahräzäd, lançando mão de todo o seu talento, começa a envolver o rei com os fios de uma teia sumamente inusitada: a cada noite, ela conta ao senhor de sua morte uma estória repleta de aventura e desejo, fúria e perdão. Quando ?ähriyär descobre que seu reino se expandira pela anexação do arquipélago da fantasia, o rei se torna súdito da imaginação. A cada narrativa noturna de ?ahräzäd, a vida prolonga o xadrez com a morte. Enquanto nossa contadora de estórias conseguir fisgar – ou melhor, inebriar – o imaginário do rei ?ähriyär, as 1001 (1002, 1003, …, ?) noites adiarão o xeque-mate ao amanhecer. Ao fim de cada estória, ?ahräzäd sentencia: “Isso não é nada perto do que lhe contarei na próxima noite, se eu viver e o rei me poupar”. [Como as narrativas de ?ahräzäd despontam com sumo lirismo e criatividade mesmo sob a lâmina afiada da guilhotina, as Mil e uma noites nos revelam a cumplicidade entre o belo e o bélico. Afinal, como a expansão do reino literário de ?ähriyär (e da humanidade como um todo) vai acontecendo enquanto nossa heroína beira a morte, somos obrigados a concordar com a dolorosa máxima segundo a qual a necessidade é a mãe da invenção – no caso de ?ahräzäd, o cadafalso é o pai da ficção, e a iminência da degola, a madrasta da fantasia.]
É assim que, ao longo das 1001 noites de lirismo e medo, ?ahräzäd vai afagando ?ähriyär com estórias e máximas repletas de alçapões e sentidos. Na 773ª noite, por exemplo, nossa heroína fita os olhos do rei com decisão e ternura – combinação bem própria à sedução – para lhe contar que “palavras suaves suavizam mesmo os corações mais duros que o ferro, e palavras ásperas tornam ásperos mesmo os corações mais suaves que a seda. …. A tristeza é um mal do coração, tal como a dor é um mal do corpo; a alegria é o alimento do espírito, tal como a comida é o alimento do corpo”. Ora, o rei irado pela vingança, que antes só fazia beber de um cálice de fel, vai arrefecendo suas trincheiras – é como se ?ahräzäd insinuasse ao senhor de sua morte que é preciso tirar os coturnos da guerra para sentir o frescor das gotículas matinais de orvalho pela campina. Assim, prossegue nossa narradora noturna, “quem nada planta, mesmo tendo sua terra umedecida, não vale nada. Quem não tem coração e elevação é árvore sem fruto”. Imaginemos, agora, os olhos negros de ?ahräzäd fixos no semblante de ?ähriyär antes de lhe narrar – ou, por outra, antes de lhe ensinar – que
quem desembainha a espada da injustiça acaba se matando com ela; quem não é equânime consigo próprio não se livra da tristeza; quem, por sua vez, libera a mão no doar [e ao perdoar] tem o rosto iluminado pela luz. Aquele que não se previne do seu pecado o tem sempre a seu lado. A juventude é amamentada pela loucura, e a velhice é companheira da respeitabilidade e da placidez.
É bem provável que, enquanto ouve tais máximas, o rei ?ähriyär cofie a barba como a imagem tangível das ruminações que ficam dando cambalhotas ao redor de si mesmas. Para não perder a bela oportunidade de cicatrizar as feridas do soberano cada vez mais sensibilizado, nossa heroína emenda uma brevíssima estória de um homem misterioso que caminhava a esmo por uma estrada vestido com uma roupa grosseira. Súbito, “o sapiente Luqmän [uma das fontes literárias de ?ahräzäd] perguntou ao andarilho: ‘Quem és tu, ó homem?’ Respondeu: ‘Um filho de Adão’. Perguntei: ‘Qual o teu nome?’ Respondeu: ‘Tenho de ver como me chamarei’. Perguntei: ‘O que fazes?’ Respondeu: ‘Abandono o mal’.”
5. Abandonai toda a esperança, vós que entrais?
Aceno ou despedida? Oi ou adeus?
O portal desvelado pela Luz de Juliana só nos deixa entrever que a personagem se volta para a miríade de janelas do prédio em frente por causa do coque algo desgrenhado e da direção dos pés. Do contrário, ela bem poderia se voltar para nós – e para a escuridão. (Adeus, portanto.) Não fosse uma suave ondulação de roupa à esquerda da cintura, nós bem poderíamos pensar que a moça está nua. (Oi, sussurros e gemidos…)
Sobre o portal do inferno, Dante Alighieri (1265-1321) inscreveu uma das máximas mais lúgubres da história da humanidade: “Abandonai toda a esperança, vós que entrais”.
Ora, que é o inferno cristão – forjado, ele próprio, pelo imaginário da Divina comédia (1321) – diante da releitura nazista da máxima de Dante?
Arbeit macht frei (O trabalho liberta) era o lema inscrito sobre os portais de Auschwitz, Dachau e demais cemitérios dos vivos.
Mas a suma beleza do aceno de Pandora – aceno de braços bem abertos e sequiosos, mais um gesto capturado e coagulado pela poesia fotográfica de Juliana Luz – anseia pelo abraço (oi!) e pelo reencontro (adeus, não – até mais ver!).
6. Vênus de Curitiba
Consta que o pintor italiano Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi (1445-1510), também conhecido como Sandro Botticelli, acaba de transferir seu ateliê para Curitiba. (Não, não: Botticelli não abandonou o Éden de Florença para cerrar fileiras entre os entusiastas do juiz Sérgio Moro.) O motivo sumamente artístico (e pra lá de visceral) que fez com que o renascentista se mudasse para a capital paranaense tem nome e sobrenome femininos, cabelos ruivos trançados à Rapunzel e sobrancelhas arqueadas, olhos entre verdes e azuis, maçãs do rosto levemente salientes e lábios carnudos a serem mordiscados: a atriz e fotógrafa (a poeta da imagem) Juliana Luz.
Ora, ora, Botticelli: e pensar que você chegou a retratar a Vênus como uma musa greco-romana?
Juliana Luz, artista curitibana, é fotógrafa especializada em fotografia de espetáculos. Trabalha com criação visual, performance, encenação teatral, instalações, exposições e projetos em que as diversas formas de manifestações artísticas se fundem. Atriz em espetáculos teatrais e campanhas publicitárias, é formada em Teatro pela Faculdade de Artes do Paraná, militante do movimento feminista e mãe da Giulia e da Suri.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa junto à Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, a antologia Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Escreve, periodicamente, para o caderno literário “Aliás”, do jornal O Estado de S. Paulo. Página na internet: Portal Heráclito – www.portalheraclito.com.br.