por Pedro Sette-Câmara
Quando falamos em “retrato”, pensamos primeiro na fotografia. Depois, nos retratos da pintura renascentista, barroca e neoclássica. Retratos que desejam destacar-se pelo realismo, por captar algo essencial do retratado, e pela técnica do retratista.
Já o retrato abstrato nos remete a uma tradição diferente, a dos ícones. O retrato renascentista ou barroco pode olhar-nos, mas o ícone, seja ele da tradição ortodoxa russa, seja da Europa católica medieval — pensemos em Il Redentore Benedicente, de Simone Martini — nos enxerga. Ele quer uma relação com o espectador.
Dentro da tradição abstrata, os retratos de Juliana Dias também nos olham. Todavia, ao contrário dos ícones religiosos, que certamente almejam despertar piedade, os retratos feitos por ela propõem primeiro uma entrega, num relacionamento aberto, mas comprometido com a sinceridade.
O olhar que convida
Koldo, por exemplo — ou Koldo, em itálico, pois é também o nome de uma obra —, me observa de cima, indeciso entre a complacência e a compaixão. Sinto que me enxerga por dentro. Que ele já viu vários agirem como eu ajo. Eu me pergunto se o observo como ele merece. Seu rosto grande, seu cavanhaque, seus olhos pequenos parecem pedir, implorar para ser surpreendidos. Alguém já o olhou como ele merece — ou ao menos como ele pede para ser olhado?
Koldo também faz parte de uma investigação do olhar. Do olhar inclusive sem olhos. Em Falta, uma moça sem olhos curva as costas, apoiando a cabeça nas mãos. Será que a sugestão é de que os olhos estariam atrás dos cabelos? Eles não aparecem. Porém, não há no quadro ponto que não mire o observador. Sentimos que, na falta dos olhos, falta o próprio desejo.
Deseo já nos traz um olho, e a memória do traço de Egon Schiele — uma referência importante para Juliana Dias. Apenas um olho; no lado do outro olho, falta até a órbita. Ter um desejo é saber-se incompleto.
O mesmo esquema, com expressão diferente, reaparece em Unbondage. Pergunto a Juliana se estamos falando da libertação de alguma espécie de servidão — a cabeça para trás, o queixo erguido, sugerem ou a tensão de quem está atado ou o instante mesmo da libertação, o instante anterior até à tomada de consciência da libertação. Juliana explica que a boca, nesse desenho, está associada também ao medo do desconhecido, e oferece, talvez sem perceber, uma chave para a compreensão não apenas do desenho: trata-se da “ausência de controle diante da entrega-descoberta do eu verdadeiro”.
O retrato feito por Juliana Dias mira o espectador — e entrega-se. O eu do espectador e o do retrato descobrem-se pela maneira como se miram. Nisso está o erotismo, que é mais do que a cobiça por seres ou por partes de seres, reduzidos a objetos. Erotismo, afinal, é atração; e, na atração mútua de dois sujeitos, é impossível que não haja descoberta.
Koldo, assim como outros trabalhos pertencentes à série Nichos-Retratos, compôs uma das exposições feitas em 2016 por Juliana Dias, em Barcelona. Neles, a aquarela vem superpor-se ao traço à caneta. Enquanto os traços são contínuos e definidos, ao contrário dos desenhos em que a referência a Schiele é mais óbvia, a aquarela é que dá o toque de indefinição. Manchas semi-controladas de vermelho e de negro, com a presença ocasional do amarelo.
O Coelho Vermelho, por exemplo, não é vermelho. Ou é vermelho apenas se você souber que Juliana diz que ela mesma é essa cor: “O vermelho sou eu”. Sim, claro, o Coelho remete ao Coelho que sem querer leva Alice a entrar em sua toca e ir parar no País das Maravilhas; mas o Coelho de Juliana nos convida. E o “vermelho”, além de ser a cor com que a própria artista se identifica, também anuncia a fase de maturidade começada com Nichos-Retratos.
Emergência Espiritual
Em sua Teoria das Cores, Goethe observa que o vermelho é “parte ato, parte potência”, que ele “inclui todas as cores”, e que “transmite a impressão de gravidade e de dignidade, e ao mesmo tempo de graça e de atratividade”.
As observações de Goethe nos ajudam a abordar uma das obras mais bem-acabadas de Juliana Dias, cuja simplicidade é desarmante. O quadro Emergência Espiritual apresenta um rosto andrógino que, do lado esquerdo, oriental, está coberto pelo vermelho, com tons mais “graves e dignos” no alto, e mais “graciosos e atraentes” embaixo. Do lado direito e ocidental do rosto, temos uma mancha negra, também variando entre tons mais claros e mais escuros. O negro dá a impressão de desprender-se do rosto, enquanto o vermelho parece tomá-lo.
É do lado esquerdo do rosto que a linha que demarca a testa mostra-se curva: do lado da não-cor, vemos não o prosseguimento naturalista da cabeça, e sim retas que se prolongam.
Correndo os olhos da esquerda para a direita, de cima para baixo, a presença da mancha negra e das linhas retas nos recorda de que a emergência espiritual é uma tomada de consciência daquilo que fica onde a luz se põe no fim do dia: no ocidente.
E assim vemos que a linha curva do rosto humano surge das retas – abstratas – exatamente do lado vermelho, que “contém todas as cores”.
O jogo simples de esquerda-oriente e direita-ocidente ainda é análogo à ideia de Aristóteles de que a ordem do ser é inversa à ordem do conhecer: para chegar ao essencial, primeiro é preciso viver, e pensar a respeito do que se viveu. A consciência do negro é que dá origem ao vermelho; a admissão da reta, abstrata, permite a curva, concreta.
“See me, touch me, feel me”
Todas as ideias apresentadas até agora remetem a uma questão importante que existe entre a arte contemporânea e seu público: a sua acessibilidade. Poucas pessoas pensam em adquirir trabalhos originais, e as visitas a museus mais parecem visitas a estrelas pop. O grande público ouve música popular, vai ao cinema, vai até ao teatro, mas raramente pensa que existe um artista visual morando em seu bairro que possa ter algo a lhe dizer. O contato mais vivo com as artes visuais acaba se dando por cartazes, de forma muito massificada, ou, na melhor das hipóteses, por capas de livros.
No entanto, aqui temos uma artista acessível (inclusive em seus preços!), cujas obras convidam o espectador, que tem muito a ganhar se lhes der um pouco de atenção. Não existe nelas nenhum hermetismo, nada que afaste o olhar, nada que diga “fui feita para entendidos”.
Este texto pretende mostrar justamente isto: estamos diante de uma artista que nos convida a olhar os outros e a descobrir nós mesmos; que nos mostra que a beleza de uma obra inclui o relacionamento que temos com ela. A beleza não pertence exclusivamente à obra; e encontrar um trabalho que melhore o espectador não é pouca coisa.