Felipe Cohen: do modernismo brasileiro à pintura italiana – Parte 2

O Estado da Arte publica a segunda parte do ensaio do psicanalista e doutor em filosofia Alberto Rocha Barros sobre a exposição "Ocidente", do artista plástico Felipe Cohen. A exposição segue em cartaz na Galeria Millan até o dia 20. 

O Estado da Arte publica a segunda parte do ensaio do psicanalista e doutor em filosofia Alberto Rocha Barros sobre a exposição “Ocidente”, do artista plástico Felipe Cohen. A exposição segue em cartaz na Galeria Millan até o dia 20.

por Alberto Rocha Barros

A Questão do Belo

Em 1993 foi publicado em Los Angeles uma singela coleção de ensaios do crítico Dave Hickey: O Dragão Invisível: quatro ensaios sobre o Belo. Dave Hickey é uma figura curiosa: formado numa tradição marxista e pós-moderna, é um defensor ferrenho da tradição da alta pintura, do mercado da arte e da democracia norte-americana. Seu argumento acerca do problema do “belo” é simples: desapareceu do horizonte de muitos artistas que pretendem produzir “arte séria” o gosto por deleitar o expectador, agradar o cliente. Mas no mercado de arte, concebido amplamente, ainda subsiste essa dinâmica complexa e antiga entre mecenas e artista. Dave Hickey insistia: o belo é algo quase impossível de captar, quiçá inexistente (daí a imagem do “dragão invisível” do título), mas a busca por ele permanece um dos grandes esforços humanos e, segundo Hickey, um dos grandes prazeres democráticos da vida. Um movimento por vezes chamado de “retorno do belo” ou “sinceridade nova” (new sinceritism) nasceu entre críticos que escreveram sobre esse tema, motivados pela publicação de Hickey: Wendy Steiner, Elaine Scarry, Arthur C. Danto, Alexander Nehamas. Sem intenções dogmáticas, o movimento queria reviver o valor da composição harmônica e formal, dos gostos (equivocados ou não; como julgar?) do público geral, da apreciação desinteressada do belo.

Até agora, vimos Felipe Cohen trabalhando com ideias muito pessoais e de acento metafísico. Os objetos eram arranjados de maneira rigorosa e com cores drenadas e contidas. No resto da exposição, as coisas mudam um pouco. A estrutura essencial das composições permanece a mesma, seguindo regras geométricas precisas; mas agora aparece junto a elas um deleite puro por cores e paisagens. A referencia renascentista permanece. Ele empresta das paisagens renascentistas três elementos: um gosto por ambientes geometrizados, de atmosfera quase surreal ou fantástica; um interesse pelo contraste entre montanhas, céu e mar; uma combinação de tons rosáceos, azulados e amarronzados.

Poderíamos utilizar como referencia o seguinte quadro de Andrea Mantegna:

É claro que Felipe Cohen submete essas concepções artísticas a uma reformulação quase completa. Por vezes é difícil enxergar o esforço de continuidade. Mas esse registro de imagens é exatamente o que Cohen está querendo emular numa linguagem pictórica inteiramente outra. Vejamos então uma das recriações de Cohen, numa série chamada Luz Partida:

Série "Luz Partida", Felipe Cohen, 2016.
Série “Luz Partida”, Felipe Cohen, 2016.

A violência da tradução de uma linguagem para a outra é evidente. Dificilmente identificaríamos a fonte de inspiração. Mas talvez isso seja próprio da tradução artística. É bem conhecida as dificuldades de verter um poema de sua língua original para qualquer outra. As transformações e transposições necessárias são altamente agressivas. Mas, quando bem sucedidas, um substrato e um conjunto de temas e ideias permanece. Em sua releitura das paisagens italianas dos séculos XV e XVI, Cohen preserva um conjunto mínimo de pontes de apoio. Haroldo de Campos falava em “transcriar” poemas chineses antigos, textos bíblicos e épicos gregos para o português: preservar indícios cruciais do original, mas fazer o texto renascer como se fora uma produção da língua portuguesa. Vejo os esforços de Cohen caminhando num sentido semelhante.

A tela acima perde um pouco de sua vivacidade na reprodução fotográfica. Ela depende da e demanda a incidência de luz e o movimento do expectador. Caminhando ao redor dela, aproximando-nos ou distanciando, a luz ativa a tela: a geometria dura dos triângulos amolece, movimentos sutis tornam-se perceptíveis. Um feixe de sol, representado pelo triângulo “amarelado” no alto à esquerda incide sobre as montanhas e a água. Uma das faces de uma das montanhas banha-se em rosa. Uma ilusão de profundidade começa a transparecer. Notamos a sombra na qual a face do monte mais próximo de nós ainda está envolvido. As águas fluem e tremulam. Essa tentativa de vencer o próprio pendor pelo imperativo do sistema geométrico e presentear o espectador leigo com uma paisagem apaziguante nada mais é do que uma humilde tentativa de satisfazer nossos anseios pelo belo.

 (*Não perca amanhã, dia 16, a terceira e última parte deste ensaio.)

Alberto Rocha Barros é bacharel e doutor em Filosofia pela USP e psicanalista membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Veja aqui a Parte 1

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