O Estado da Arte publica a terceira e última parte do ensaio do psicanalista e doutor em filosofia Alberto Rocha Barros sobre a exposição “Ocidente”, do artista plástico Felipe Cohen. A exposição segue em cartaz na Galeria Millan até o dia 20.
por Alberto Rocha Barros
Legado do Modernismo Brasileiro
Mencionei o imperativo do sistema geométrico ao qual estão submetidas todas as obras da exposição “Ocidente”. Isso decorre da dívida de Cohen com sua educação no modernismo brasileiro. E o modernismo nacional é, para nós, o que a arte clássica foi para a tradição artística europeia. É o nosso ponto de partida e paradigma identitário.
Mesmo não sendo um especialista na tradição de nosso modernismo, sei que posso afirmar, sem causar espécie, que a heterogeneidade marca o movimento. Tendo a pensar parte do modernismo como decorrência de um problema artístico mais amplo: como inserir ordem dentro de um mundo que foi presenteado com a liberdade promovida pela revolução da abstração?
Uma exposição memorável de 2012/2013 do MoMA de Nova York teve como tema A Invenção da Abstração, 1910-1925. A exposição apresentava o advento da arte abstrata como a revolução artística mais importante desde o renascimento italiano. Estamos acostumados hoje a olhar para a pintura abstrata. E acho que ficamos anestesiados diante do espanto e da maravilha que é a abstração. Tomamos por banal os “retratos do nada”, na feliz expressão de Kirk Varnedoe. Certas correntes do modernismo, assim me parece, buscaram conter e domesticar esse admirável mundo novo mediante sistema de regras e estratégias de “tema e variações”. Mesmo entre os modernistas figurativos, há que se lidar com o peso do abstracionismo.
Cohen está claramente criando para si um sistema semelhante de regras, uma gramática por assim dizer. A partir de um conjunto restritíssimo de elementos – triângulos do mesmo tamanho e dimensão; um conjunto reduzido de cores – ele tenta engendrar um certo número de criações. Para os meus olhos, o trabalho de Felipe Cohen que mais presta homenagem a esse problema apresentado pela abstração é o seguinte:
Tenho dificuldade de enxergar uma paisagem aqui, mas vejo uma tentativa de casar abstração minimalista com uma dinâmica viva de cores e formas. Um esforço paralelo aparece nos “espaços celestes” (skyspaces) de James Turrell:
Turrell está também buscando, a uma só vez, seguir um sistema de regras e trazer a vida e o imponderável a esse sistema. No geral, Turrell trabalha com estruturas arquitetônicas modernistas, banhada por luzes artificiais. Uma de suas obras primas foi criada para o antigo Whitney Museum, ao lado do Guggenheim, uma das mecas do modernismo de Nova York. Já nos “quartos celestes” ele introduz um elemento novo: temos espaços geométricos frios e vazios (não há moveis e apenas um número limitado de pessoas costumam poder entrar por vez), mas a incidência de luz é determinada por uma “janela” aberta. Uma variação simples como essa abre caminho para rusgas e rupturas do sistema: nuvens passageiras mancham e ameaçam a beleza do azul profundo de um “céu de brigadeiro”. Essa é uma maneira de “humanizar” a pureza do sistema.
Acredito que quando Cohen expõe os andaimes de seu sistema, como na pintura da série “Luz Partida” acima, trazendo o rigor da sua lógica geométrica para o primeiro plano, ele esteja revelando um duro problema que foi um dos fantasmas que rondou o modernismo.
Eu disse que vejo na obra de Felipe Cohen uma reverência à tradição da história da arte e um esforço para deleitar o espectador, mas disse também que seu trabalho vive numa eterna tensão entre representação e abstração. Acredito que essa tensão perene seja sua herança modernista, que, em certo sentido, sai triunfante da exposição.
Alberto Rocha Barros é bacharel e doutor em Filosofia pela USP e psicanalista membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Leia aqui a Parte 1 deste ensaio.
Leia aqui a Parte 2 deste ensaio.