por Alberto Rocha Barros
A arte contemporânea vive um momento singular de sua trajetória? Duas tendências sugerem que sim. Primeiro, o rompimento com o passado, sobretudo com os mestres canônicos da tradição, fez com que a arte clássica, medieval ou renascentista, deixasse de ser referência ou inspiração aos artistas. Além disso, a busca pelo “belo” não é mais o elemento norteador para muitos artistas visuais: mais urgentes são batalhas conceituais, pautas sócio-políticas ou o estímulo de efeitos específicos no espectador. Nelas mesmas, essas tendências não merecem aplauso ou repúdio, pois assim como nunca teríamos aprendido apreciar formas artísticas variadas sem as vanguardas, é inegável que o coro “abaixo o cânone!”, quando em uníssono, é empobrecedor.
Alguns pintores paulistas contemporâneos têm navegado bem as turbulentas águas em que inovação e tradição se encontram. Dentre eles, figura Felipe Cohen, cuja exposição, “Ocidente”, está em cartaz na Galeria Millan até o dia 20 de dezembro deste ano.
Preciso alertar o leitor que sou amigo íntimo de Felipe Cohen, acompanhando seu trabalho há anos, o que delimita meu texto a um ensaio de associações e impressões pessoais sem maiores juízos críticos. O que vou propor aqui é um “passeio” dividido em três partes pela exposição de Cohen, assinalando três temas que considero caros a seus esforços: o vínculo com a tradição canônica, a dívida de todo artista com o Belo e o legado do modernismo brasileiro. A exposição “Ocidente” corporifica algumas de suas tentativas de pensar esses problemas artisticamente.
A Tradição do Cânone
Em 1948, o pintor americano Willem de Kooning deu uma aula inaugural no Black Mountain College que tinha por tema “Cézanne e as cores de Veronese”. A reação da plateia é descrita no magistral De Kooning: An American Master (Stevens e Swan): os espectadores, tomados por um espírito de “abaixo os museus!”, como descreve uma das testemunhas, ficaram perplexos. As coisas só pioraram quando de Kooning organizou um curso inteiro em torno da recriação de uma única e solitária natureza morta de composição detalhista e clássica. Ele estava, é claro, insistindo tanto na importância do domínio da técnica quanto na importância da história da arte. Graças aos caprichos do acaso, as cores de Veronese foram reativadas por Cézanne e revividas por de Kooning. Do século XVI ao século XX, de Veneza ao Novo Mundo. Valeria a pena desdenhar de tal linhagem?
A primeira peça que vemos na exposição de Felipe Cohen (todas pinturas em madeira) é a seguinte:
O quadro sublinha, visualmente, o título da exposição. Cohen associa “Ocidente” a duas ideias: poente e morte. E é sobre a morte que trata esse quadro, tendo por inspiração a sepultura aberta que aparece em várias pinturas a respeito da ressureição de Cristo durante o período medieval e renascentista, como nesta de Fra Angélico, utilizada por Cohen como modelo:
Cohen preserva e até aprofunda a ilusão de “vazio” do túmulo, mas drena o quadro de suas cores e personagens, criando uma atmosfera modernizante que remete àquelas paisagens ermas e severamente geométricas de outro pintor italiano, Giorgio de Chirico. Ou às composições estilizadas de Giorgio Morandi. É um quadro extremamente minimalista, o que convida o expectador à reflexão.
Tendo a morte por tema, a opção não é descabida e, ao reduzir o Fra Angélico ao essencial – o túmulo vazio do Cristo renascido –, Cohen alude também a uma de suas obsessões visuais: o interesse recorrente pelos “fundos de quadro”, algo muito presente em toda a exposição, e que acaba por dominar essa tela. Afinal, não sobra nela outra coisa a não ser túmulo e fundo.
“Ocidente” para Cohen também remete a pôr-do-sol, e a sepultura que vemos em suas pinturas é inspirada na tópica da ressureição. O sol mergulha no horizonte para renascer; Cristo morre para reviver. Logo, trata-se de uma morte impregnada da esperança de um retorno glorioso. A hora mais escura da densa noite é vencida pelos magníficos raios púrpuros e rosáceos da aurora. Se a cor foi tragada do quadro e nada de humano está presente, é porque esses elementos precisam ser completados pelo expectador, num gesto de transcendência – uma palavra que se aplica aqui em função de outra característica formal da peça de Cohen. Ela é composta por triângulos colados sobre uma superfície, preservando o tom natural da madeira: ela tremula e cintila com a incidência da luz natural (solar), recriando de maneira análoga, embora mais contida, os efeitos reflexivos das folhas-de-ouro usadas nos fundos de certas pinturas medievais e que representavam a natureza mística e transcendente de Cristo.
Acredito que a relação tênue entre representação e abstração seja uma das características visuais no cerne dos trabalhos de Cohen: tudo sempre está em um esforço por configurar a imagem nítida de algo do plano do real, mas logo desmancha-se em jogos lineares e geométricos. Podemos ver isso nitidamente em um trabalho que aprecio como o par natural da sepultura. Agora “Ocidente” não remete mais ao par “morte/ressureição”, mas à díade “poente/aurora”. Trata-se da escultura intitulada “Ocaso”.
O que vemos é um sol se pondo no mar. Há um reflexo na água, criado por um jogo natural de luz e sombra. Novamente, as cores e tonalidades são brandas e contidas, e o espaço narrativo é límpido e abstrato. Não é um sol fulgurante e reluzente, mas uma criação geométrica.
As duas peças que considero mais representativas do título e do tema da exposição estão ambas ancoradas numa tradição imagético-metafísica longeva. Sobrevive no nosso meio artístico paulista, não apenas em Felipe Cohen, como também em muitos outros, uma forma de criar artisticamente onde a arte presente tem como interlocutor primeiro e principal, a arte do passado.
A Questão do Belo
Em 1993 foi publicado em Los Angeles uma singela coleção de ensaios do crítico Dave Hickey: O Dragão Invisível: quatro ensaios sobre o Belo. Dave Hickey é uma figura curiosa: formado numa tradição marxista e pós-moderna, é um defensor ferrenho da tradição da alta pintura, do mercado da arte e da democracia norte-americana. Seu argumento acerca do problema do “belo” é simples: desapareceu do horizonte de muitos artistas que pretendem produzir “arte séria” o gosto por deleitar o expectador, agradar o cliente. Mas no mercado de arte, concebido amplamente, ainda subsiste essa dinâmica complexa e antiga entre mecenas e artista. Dave Hickey insistia: o belo é algo quase impossível de captar, quiçá inexistente (daí a imagem do “dragão invisível” do título), mas a busca por ele permanece um dos grandes esforços humanos e, segundo Hickey, um dos grandes prazeres democráticos da vida. Um movimento por vezes chamado de “retorno do belo” ou “sinceridade nova” (new sinceritism) nasceu entre críticos que escreveram sobre esse tema, motivados pela publicação de Hickey: Wendy Steiner, Elaine Scarry, Arthur C. Danto, Alexander Nehamas. Sem intenções dogmáticas, o movimento queria reviver o valor da composição harmônica e formal, dos gostos (equivocados ou não; como julgar?) do público geral, da apreciação desinteressada do belo.
Até agora, vimos Felipe Cohen trabalhando com ideias muito pessoais e de acento metafísico. Os objetos eram arranjados de maneira rigorosa e com cores drenadas e contidas. No resto da exposição, as coisas mudam um pouco. A estrutura essencial das composições permanece a mesma, seguindo regras geométricas precisas; mas agora aparece junto a elas um deleite puro por cores e paisagens. A referencia renascentista permanece. Ele empresta das paisagens renascentistas três elementos: um gosto por ambientes geometrizados, de atmosfera quase surreal ou fantástica; um interesse pelo contraste entre montanhas, céu e mar; uma combinação de tons rosáceos, azulados e amarronzados.
Poderíamos utilizar como referencia o seguinte quadro de Andrea Mantegna:
É claro que Felipe Cohen submete essas concepções artísticas a uma reformulação quase completa. Por vezes é difícil enxergar o esforço de continuidade. Mas esse registro de imagens é exatamente o que Cohen está querendo emular numa linguagem pictórica inteiramente outra. Vejamos então uma das recriações de Cohen, numa série chamada Luz Partida:
A violência da tradução de uma linguagem para a outra é evidente. Dificilmente identificaríamos a fonte de inspiração. Mas talvez isso seja próprio da tradução artística. É bem conhecida as dificuldades de verter um poema de sua língua original para qualquer outra. As transformações e transposições necessárias são altamente agressivas. Mas, quando bem sucedidas, um substrato e um conjunto de temas e ideias permanece. Em sua releitura das paisagens italianas dos séculos XV e XVI, Cohen preserva um conjunto mínimo de pontes de apoio. Haroldo de Campos falava em “transcriar” poemas chineses antigos, textos bíblicos e épicos gregos para o português: preservar indícios cruciais do original, mas fazer o texto renascer como se fora uma produção da língua portuguesa. Vejo os esforços de Cohen caminhando num sentido semelhante.
A tela acima perde um pouco de sua vivacidade na reprodução fotográfica. Ela depende da e demanda a incidência de luz e o movimento do expectador. Caminhando ao redor dela, aproximando-nos ou distanciando, a luz ativa a tela: a geometria dura dos triângulos amolece, movimentos sutis tornam-se perceptíveis. Um feixe de sol, representado pelo triângulo “amarelado” no alto à esquerda incide sobre as montanhas e a água. Uma das faces de uma das montanhas banha-se em rosa. Uma ilusão de profundidade começa a transparecer. Notamos a sombra na qual a face do monte mais próximo de nós ainda está envolvido. As águas fluem e tremulam. Essa tentativa de vencer o próprio pendor pelo imperativo do sistema geométrico e presentear o espectador leigo com uma paisagem apaziguante nada mais é do que uma humilde tentativa de satisfazer nossos anseios pelo belo.
Legado do Modernismo Brasileiro
Mencionei o imperativo do sistema geométrico ao qual estão submetidas todas as obras da exposição “Ocidente”. Isso decorre da dívida de Cohen com sua educação no modernismo brasileiro. E o modernismo nacional é, para nós, o que a arte clássica foi para a tradição artística europeia. É o nosso ponto de partida e paradigma identitário.
Mesmo não sendo um especialista na tradição de nosso modernismo, sei que posso afirmar, sem causar espécie, que a heterogeneidade marca o movimento. Tendo a pensar parte do modernismo como decorrência de um problema artístico mais amplo: como inserir ordem dentro de um mundo que foi presenteado com a liberdade promovida pela revolução da abstração?
Uma exposição memorável de 2012/2013 do MoMA de Nova York teve como tema A Invenção da Abstração, 1910-1925. A exposição apresentava o advento da arte abstrata como a revolução artística mais importante desde o renascimento italiano. Estamos acostumados hoje a olhar para a pintura abstrata. E acho que ficamos anestesiados diante do espanto e da maravilha que é a abstração. Tomamos por banal os “retratos do nada”, na feliz expressão de Kirk Varnedoe. Certas correntes do modernismo, assim me parece, buscaram conter e domesticar esse admirável mundo novo mediante sistema de regras e estratégias de “tema e variações”. Mesmo entre os modernistas figurativos, há que se lidar com o peso do abstracionismo.
Cohen está claramente criando para si um sistema semelhante de regras, uma gramática por assim dizer. A partir de um conjunto restritíssimo de elementos – triângulos do mesmo tamanho e dimensão; um conjunto reduzido de cores – ele tenta engendrar um certo número de criações. Para os meus olhos, o trabalho de Felipe Cohen que mais presta homenagem a esse problema apresentado pela abstração é o seguinte:
Tenho dificuldade de enxergar uma paisagem aqui, mas vejo uma tentativa de casar abstração minimalista com uma dinâmica viva de cores e formas. Um esforço paralelo aparece nos “espaços celestes” (skyspaces) de James Turrell:
Turrell está também buscando, a uma só vez, seguir um sistema de regras e trazer a vida e o imponderável a esse sistema. No geral, Turrell trabalha com estruturas arquitetônicas modernistas, banhada por luzes artificiais. Uma de suas obras primas foi criada para o antigo Whitney Museum, ao lado do Guggenheim, uma das mecas do modernismo de Nova York. Já nos “quartos celestes” ele introduz um elemento novo: temos espaços geométricos frios e vazios (não há moveis e apenas um número limitado de pessoas costumam poder entrar por vez), mas a incidência de luz é determinada por uma “janela” aberta. Uma variação simples como essa abre caminho para rusgas e rupturas do sistema: nuvens passageiras mancham e ameaçam a beleza do azul profundo de um “céu de brigadeiro”. Essa é uma maneira de “humanizar” a pureza do sistema.
Acredito que quando Cohen expõe os andaimes de seu sistema, como na pintura da série “Luz Partida” acima, trazendo o rigor da sua lógica geométrica para o primeiro plano, ele esteja revelando um duro problema que foi um dos fantasmas que rondou o modernismo.
Eu disse que vejo na obra de Felipe Cohen uma reverência à tradição da história da arte e um esforço para deleitar o espectador, mas disse também que seu trabalho vive numa eterna tensão entre representação e abstração. Acredito que essa tensão perene seja sua herança modernista, que, em certo sentido, sai triunfante da exposição.
Alberto Rocha Barros é bacharel e doutor em Filosofia pela USP e psicanalista membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo