por Jocê Rodrigues
Está próximo o dia em que nós admitiremos ter aprendido mais sobre a Grécia através dos fragmentos esfacelados de suas esculturas do que de seus doces trovadores ou historiadores soldados.
John Ruskin
Embora muito ainda se discuta sobre suas origens e sobre os diversos conceitos que a envolvem, é muito provável que a arquitetura esteja ligada aos primórdios da humanidade – das cavernas que nos serviram como primeiro abrigo até os prédios imponentes e majestosos que identificam uma cidade. São inúmeras as definições dadas a ela, que podem variar de “uma mistura entre ciência e arte” até simplesmente um “espaço construído”. No meio de tanta discussão, é comum que algumas visões ganhem destaque frente a outras e acabem virando referência.
É o caso da visão de John Ruskin (1819-1900), que dedicou grande parte da vida a escrever sobre os mais diversos assuntos e destacou-se principalmente como crítico de arte. O escritor britânico não era o que poderíamos chamar de polímata, mas não se acanhava em opinar sobre assuntos que não eram da sua alçada. Homem de opiniões fortes e por vezes controversas, tomou partido em algumas querelas de seu tempo. Defendeu os pintores da Irmandade Pré-Rafaelita da chuva de paus e pedras que receberam da crítica da época e escreveu os cinco volumes de Pintores Modernos como uma defesa de William Turner (1775-1851) frente aos seus detratores.
Privilegiava a percepção em relação à inteligência e com isso desenvolveu uma teoria bastante particular sobre a pintura e a arquitetura, o que o levou a se tornar um dos grandes nomes relacionados à preservação de patrimônios culturais. Hoje é lembrado principalmente por ter sido responsável por divulgar o Renascimento Romântico e Gótico (também chamado de revival gótico britânico). Sua colaboração foi tão influente que críticos da época passaram a apelidar o neogótico inglês de “gótico ruskiniano”. Um elogio que não o agradava, tanto que chegou a escrever: “Nós não precisamos de mais um estilo para a arquitetura, queremos a mistura de todos os estilos”.
Ruskin encontrou na arquitetura veneziana a representação máxima da sua teoria arquitetônica romântica. Segundo ele, a cidade do amor possuía um estilo único, baseado numa convergência de conhecimentos diversos inexistente em qualquer outro lugar. Este estilo singular foi a principal fonte de inspiração para a composição do clássico As Pedras de Veneza, publicado originalmente em 3 volumes, entre 1851 e 1853. Com o passar dos anos, o tratado passou por diversas edições que, infelizmente, envolveram significativos cortes no conteúdo original. Antes, em 1849, havia escrito outro trabalho de grande relevância sobre o assunto. As Sete Lâmpadas da Arquitetura traz um extenso ensaio sobre aqueles que ele acreditava serem os pilares de um bom projeto arquitetônico, indo muito além de conceitos puramente técnicos e abordando não apenas questões estéticas, mas também sociais e sentimentais.
Os sete princípios morais, essas “lâmpadas” que compõem os capítulos do livro e que deveriam iluminar os caminhos da composição de todo arquiteto, são: Sacrifício, Verdade, Poder, Beleza, Vida, Memória e Obediência. Dentre todas elas, a mais comentada e estudada é a da memória, que ganhou o mundo em variadas edições onde aparece sozinha. Um dos motivos para tamanho interesse talvez tenha sido a influência que ela pode ter exercido sobre a monumental obra de Marcel Proust. Sabe-se que o autor da Recherche era grande admirador do crítico inglês. Chegou a traduzi-lo para o francês e, mesmo tendo-o mencionado apenas duas vezes em seus livros, ainda hoje se discute sobre a interessante relação entre os dois, tecida pelos fios da lembrança.
Logo no início do capítulo dedicado à memória, Ruskin transporta o leitor para uma imponente floresta de pinheiros próxima à aldeia de Champagnole, na Cordilheira do Jura. Com sua escrita marcadamente poética, descreve a solenidade e harmonia daquela “sinfonia de montanhas” que teve o privilégio de presenciar durante um pôr do sol. Para Ruskin, arquitetura e memória se ligam de maneira complexa e inseparável, pois nós “podemos viver sem ela, e orar sem ela, mas não podemos rememorar sem ela”. É difícil não ceder àquelas impressões tão vivas, não se deixar guiar pela mão por tal reminiscência; da mesma forma que é difícil não se deixar levar pelas vidas dos personagens da saga proustiana.
Conversa de botequim
Além da arquitetura, Ruskin pensava a poesia como uma outra fórmula eficaz de escapar ao esquecimento. Com ela se poderia vencer os obstáculos do tempo, como fez Paul Valéry (1871-1945), que chegou a definir a poesia como o paraíso da linguagem e se imortalizou por seus versos exemplares e pelas linhas elegantes de seus ensaios.
Da mesma forma que Ruskin, Valéry era capaz de alvitrar sobre os assuntos mais diversos. Tinha grande interesse a tudo que se relacionava ao fenômeno da observação e ao ato criativo. Este encanto o levou a compor valiosas obras para a área da estética como Introdução ao Método de Leonardo da Vinci (1895), Monsieur Teste (1896) e Degas Dança Desenho (1936) – talvez o mais interessante perfil já dedicado ao pintor francês. É dele também aquele que é considerado um clássico sobre o processo de criação em arquitetura. Escrito em um estilo que emula e de certa forma resgata os diálogos socráticos de Platão, o texto de Eupalinos ou o Arquiteto foi feito sob encomenda para a revista Architectures, em 1921, e se transformou em um escrito de enorme peso para a carreira autor. No reino dos mortos, Sócrates e Fédro se encontram por acaso. Durante a conversa se lembram das grandes construções que viram juntos e Fédro faz menção a Eupalinos, um arquiteto que conheceu quando ainda caminhava sobre a terra dos vivos. A partir daí diversos assuntos se desenrolam, sempre com a mesma vivacidade e clareza da prosa de Valéry.
Talvez sem saber, Valéry se aproxima e dialoga com Ruskin quando põe na boca de Fédro as seguintes palavras: “É preciso, dizia Eupalinos de Mégara, que meu templo mova os homens como o faz o objeto amado”. Sentença que se encaixa na visão ruskiniana de que uma casa, mesmo a menor delas, deveria ser considerada também um templo, um objeto amado por seu dono e seus descendentes. No trabalho do próprio Eupalinos o culto à memória surge na forma de um delicado templo dedicado a Hermes, no qual o arquiteto reproduziu matematicamente a imagem de um jovem que ele amou. Um projeto que segundo Fédro possui “a harmonia de um ser encantador”.
Entre os temas tratados pelos dois ilustres fantasmas figura também a suposta propriedade musical, presente nas mais belas e raras construções. “Edifícios que não falam, nem cantam, merecem apenas desdém; são coisas mortas, inferiores”, defende Eupalinos. Se para John Ruskin poesia e arquitetura ocupam o mesmo lado, Valéry era da opinião de que a música é alma gêmea da segunda, como demonstra o seguinte trecho:
Não cessa de me estimular o divagar sobre as artes. Aproximo-as, distingo-as, desejo ouvir o cantar das colunas e configurar-me, no céu límpido, o monumento de uma melodia. Este imaginar me conduz muito facilmente a situar, de um lado, a Música e a Arquitetura; do outro, as demais artes.
O fazer arquitetônico permanece cercado de questionamentos e debates e não parece que eles vão cessar por tão cedo. Afinal, prédios, versos, notas e sinapses são elementos capazes de unir não apenas um poeta e um crítico de arte, mas qualquer pessoa que tenha interesse pelo exercício do diálogo. E é graças a pessoas como Valéry e Ruskin, defensores de propostas que hoje podem ser interpretadas como românticas e por demais etéreas e espirituais, que a arquitetura ainda se mantém apaixonante.
Jocê Rodrigues é escritor, editor e jornalista.