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Cores e formas do centro do mundo
A pintura de Kunle Akintibubo
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por Adriano Moraes Migliavacca
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Pôr o pé no solo do centro spiritual da sua tradição votiva, creio, é uma experiência cada vez menos comum a ocidentais. As peregrinações a Meca e ao Vaticano são exemplos conhecidos desse tipo de empreendimento. Conheci uma tia que viajou diversas vezes ao Japão, solo de origem do Mahikari, tradição praticada por ela. Mais recentemente, um meu caro amigo, hoje católico, me falou de sua expedição à Índia quando era devoto da filosofia Vaishnava.
Minha experiência foi um pouco diversa. Em 2013, chegava a Ile-Ifé, berço da civilização iorubá, de sua tradição e, no bojo desta, origem da humanidade. Ia a uma conferência sobre cultura e identidade africana e afro-diaspórica. Na época, eu ainda não praticava a tradição de Orixá, apenas a estudava e admirava. Meu êxtase em visitar o solo de minha tradição espiritual só poderia ser prospectiva. Mas que prospecção! Ile-Ifé surgiu para mim como uma cidade pequena com um profuso mercado de óleo de palmeira, nozes de cola e belíssimos tecidos tingidos. Na maior parte de minha estadia, no entanto, estive na Obafemi Awolowo University, que sediou o evento. O campus era de grande beleza, no qual, caminhando entre prédios de salas de aula, frequentemente nos deparamos com pequenos bosques, passeios, riachos e jardins delicadamente cultivados.
Foi bastante surpreendente chegar ao hotel onde fiquei hospedado e ver expostas e vendidas a preços mais que econômicos obras de arte que estariam sangrando cartões de crédito em qualquer galeria elegante em uma metrópole ocidental. Logo me chamou a atenção um conjunto de pinturas de tamanhos diversos em cores acres, mas vívidas — cores que não gritavam radiantes nem murmuravam sisudas, mas nasciam e se punham diante de meus olhos com uma delicadeza que só poderia vir — imagino eu — de um pintor cujos ouvidos e boca estavam acostumados com as melodias sutis de uma língua tonal. Suas mãos provavelmente herdaram a mesma sutileza musical no manejo dos pincéis.
O autor logo se apresentou — um homem idoso com olhos e sorriso vívidos, uma voz de barítono que falava em um inglês elegante e suave. Segurava uma bengala em sua mão direita, e sua polidez soava a realeza. De fato, mais tarde ele me diria que seu primeiro nome, Adekunle, significa “a coroa preenche a casa”, sendo ele um príncipe. Seu segundo nome, Akintibubo, fala de bravura.
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Originalmente do setor financeiro, Kunle (a prática comum de se encurtarem os nomes em iorubá me permite chamá-lo assim) estava já na casa dos 40 anos quando a riqueza do mundo das artes de Ile-Ifé o levou dos números às cores. A cidade estava construindo uma tradição na arte moderna com o movimento que surgiu em volta da companhia de teatro Ori Olokun, fundada na cidade pelo dramaturgo Ola Rotimi. O nome da companhia nos leva ao passado artístico da cidade que produziu, entre os séculos XII e XV, uma das tradições de escultura naturalista mais anatomicamente precisas do mundo. No entanto, não é o naturalismo da arte de Ifé que encontramos na tradição escultural iorubá que se refinou nos últimos séculos e desemboca na pintura de artistas contemporâneos. Produzida majoritariamente em madeira, a escultura iorubá do século XVI para diante descreve rostos em ovais e braços em cilindros de polimento minucioso, compondo figuras de grande serenidade.
A aproximação feita no início do artigo entre os matizes da pintura de Kunle e os tons da língua iorubá não é casual. No clássico ensaio “The Fourth Stage”, Wole Soyinka discute a inseparabilidade entre música, língua e mito na experiência estética iorubá (SOYINKA, 2006). O saudoso crítico e linguista beninense Olabiyi Yai, no igualmente clássico “In Praise of Metonymy” (YAI, 1994), aproxima as artes verbais da escultura. Segundo Yai, as peças em madeira iorubás podem ser entendidas em correlação com o oriki — tipo de poesia predicativa tradicional iorubá em que cada verso é uma unidade caracterizando uma divindade, uma autoridade, uma pessoa comum, um animal ou qualquer outro aspecto da realidade. Se ouvidos por alguém de fora da comunidade onde são criados ou lidos na transcrição de uma página, os orikis dão a impressão de total fragmentação, predicações aparentemente desarticuladas. Na verdade, todas articulam-se em volta de um centro ausente da linguagem. Um exemplo prático vem do estudo de Karin Barber I could speak until Tomorrow (BARBER, 1991). Segundo a autora, uma performance de orikis em homenagem a uma pessoa importante incluirá orikis relacionados a parentes e amigos seus e até a indivíduos que não têm qualquer relação com o homenageado, mas que estão presentes na situação. Os versos tendem a não ter qualquer nexo semântico; o nexo é dado pelo contexto em que estão sendo desempenhados. Essa ausência de um centro, que, no entanto, está implícito, ressona com outra característica encontrada na arte iorubá pelos críticos John Drewal, John Pemberton III e Rowland Abiodun: o serialismo. Vemos em afrescos, portas entalhadas, potes ornamentados e esculturas composições de unidades discretas unidas e, ao mesmo tempo, individualizadas, não havendo necessariamente uma noção de ação progressiva nem de união, mas sim de autonomia de cada parte. Não se vê entre essas figuras hierarquia, mas uma organização exaustiva (1994).
O mesmo princípio de serialidade é encontrado nas bordas entalhadas das tábuas oraculares de Ifá (opon Ifa) — um dos mais distintivos objetos da arte iorubá. Nas tábuas em geral circulares (embora as haja de outros formatos), o centro vazio — onde sobre um pó amarelado são inscritas as respostas oraculares — é rodeado por uma borda onde se veem diversas figuras representando seres humanos em atividades diárias, animais, objetos e padrões geométricos. A mesma estrutura de unidades discretas se encontra nessas bordas, mas com uma diferença: as tábuas são encabeçadas pelo rosto da divindade mensageira Exu, que parece organizar as histórias e informações contidas nas beiradas.
Esse tipo de composição brilha na obra de Kunle Akintibubo, em particular no frequente motivo dos “Meeting Birds”, em que, em séries de árvores semelhantes pousam pássaros também semelhantes porém de cores variadas, que cobrem a paisagem em diversas posições cruzando pescoços e se interpelando. A sensação que temos é de recebermos o equivalente visual de uma sinfonia de pássaros — podemos perceber como um todo ou isoladamente; nas duas vias, a harmonia é inegável. Aqueles mais familiarizados com o mundo da pintura nigeriana podem ter associado o nome da série “Meeting Birds” à clássica obra do pintor Twins Seven, “Kissing Birds”. Uma discussão entre as obras é interessante. A pintura de Twins Seven-Seven apresenta dois pássaros cujos bicos triangulares se entrelaçam em um beijo enquanto o pássaro macho pisa sobre uma cobra e o pássaro fêmea, sobre um cágado, tendo ao fundo um tropel de elefantes e um pássaro menor. Como ocorre na maioria das pinturas de Seven-Seven, praticamente não há espaços vazios e as superfícies densamente desenhadas misturam o visto e o imaginado, como diz o crítico Henry Glassie (2010). Encontramos nela o horror vacui que o crítico alemão Hans Witte percebeu nas tábuas oraculares do reino de Ijebu (WITTE, 1994). Na obra de Akintibubo, por sua vez, os diversos pássaros se interpelam, mas não se tocam, disciplinam-se nos diversos galhos das árvores em níveis variados. O fundo da cena, o artista preencheu com o ar noturno, que participa na deliberação dos pássaros. Assim como a obra de Seven-Seven privilegia o contato físico, a de Akintibubo privilegia a comunicação entre os indivíduos e os espaços entre eles.
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A série que o artista chama de “The Key to Success” nos aproxima da mais conhecida abstração geométrica africana — presente em particular em tecidos tingidos. Nas pinturas dessa série, vemos no centro uma delgada chave rodeada por um variegado de motivos geométricos e estampas que tomam a maior parte do quadro. Nesses quadros, o pintor parece nos apresentar com uma irônica escolha: a aludida chave do sucesso — a encontramos na forma bem definida no centro do quadro ou na riqueza plural que a rodeia?
Em particular nas pinturas envolvendo o universo humano, o artista mergulha em um mundo de música, tanto em termos temáticos quanto estéticos. Falo aqui, em primeiro lugar, das obras que retratam música e dança. Instrumentos de sopro e corpos de instrumentistas compartilham movimentos sinuosos enquanto os rostos sérios recendem a ritualismo e solenidade. Onde orquestras de tambores imperam, os rostos que vemos mostram alegria e envolvimento no ritmo. Particularmente bela é a pintura em que vemos um homem manejando um dúndún — tradicional tambor iorubá capaz de reproduzir os padrões tonais da fala, por isso chamado de “o tambor falante” — e uma mulher que dança ao som da percussão. Nas pinturas de Kunle, as cabeças humanas — de grande importância na metafísica iorubá — são contornos com breves traços, contrastando com a riqueza dos motivos nas roupas, nos tecidos e apetrechos. A redução dos traços humanos ao essencial e o requinte no desenho dos utensílios fazem pensar em Kunle Akintibubo como um pintor que se foca na cultura, mais no fazer humano do que nos próprios caracteres humanos. Essa impressão se fortalece nos belos quadros em que retrata apenas instrumentos musicais sem seus músicos. Encantadora também é a forma como o artista destaca as figuras centrais com o preto e branco e preenche o pano de fundo com cores intensas, invertendo uma tendência natural e convidando o olho do expectador a não se inebriar em cores, mas degustar os detalhes pretos que repousam nas superfícies brancas.
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O estudo das artes iorubás nos mostra especificidades próprias de diferentes regiões e tradições. Acima me referi à obra de Twins Seven-Seven — expoente da escola que surgiu na cidade de Osogbo. As formas e cores ubíquas e a sensualidade das figuras que se tocam de Twins Seven-Seven parecem de fato ressonar no espírito da divindade do amor, do mel e da fertilidade Oxum, divindade tutelar da cidade de Osogbo. Ile-Ifé, a cidade de nascimento de Kunle Akintibubo e sua obra, cidade central dos quatro quadrantes do mundo, origem da humanidade, traz à mente a serenidade de Obatalá, divindade ascética que molda a forma humana, e a competência política de Oduduwa, patriarca da civilização iorubá, articulador das pluralidades culturais. O equilíbrio intelectual, o encantamento com o mundo e suas formas mediado pela contemplação tranquila das essências e o reflexo do intelecto na cultura são características que facilmente associamos ao legado de Ile-Ifé e que estão todas muito presentes na obra de Kunle Akintibubo.
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Referências
BARBER, K. I could speak until Tomorrow: Oriki, Women and the Past in a Yoruba Town. Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press. 1991.
DREWAL, H. J.; PEMBERTON III, J.; ABIODUN, R. The Yoruba World. In: DREWAL, H. J.; PEMBERTON III, J.; ABIODUN, R. Yoruba: Nine Centuries of African Art and Thought. New York: The Center for African Art. 1995. p. 13-44.
GLASSIE, H. Prince Twins Seven-Seven: His Art, His Life in Nigeria, His Exile in America. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press. 2010.
SOYINKA, W. The Fourth Stage. In: SOYINKA, W. Myth, Literature and the African World. Cambridge: Cambridge University Press. 2005. p. 140-160.
WITTE, H. Ifa Trays from the O?ogbo and Ij?bu Regions. In: ABIODUN, R.; DREWAL, H. J.; PEMBERTON III, J. (eds.) The Yoruba Artist. Washington and London: Smithsonian Institution Press. 1994. p. 59-77.
YAI, O. B. In Praise of Metonymy: The concepts of “Tradition” and “creativity” in the Transmission of Yoruba Artistry over Time and Space. In: ABIODUN, R.; DREWAL, H. J.; PEMBERTON III, J. (eds.) The Yoruba Artist. Washington and London: Smithsonian Institution Press. 1994. p. 107-115.
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