Mascarados e charlatães: a pintura de situação em Veneza, de Pietro Longhi a Tiepolo

Exposição no museu parisiense Cognacq-Jay lança luz sobre a importância de Veneza para a pintura de gênero.

por Rodrigo de Lemos

“O Charlatão” (1757), de Pietro Longhi.

Não só das vedute de um Canaletto e da tradição colorista inaugurada em Bellini se fez a pintura de Veneza. Mostra-lo é um dos méritos da exposição Sérénissime! Venise en fête, de Tiepolo à Guardi, no Cognacq-Jay, esse museu que é uma das joias do bairro Marais, em Paris, sedutor especialmente para apreciadores da arte, e da art de vivre, do século XVIII. Por ocasião de evocar os divertimentos na Veneza desse período de decadência política e econômica, encerrado com a invasão francesa de 1797, a exposição recorre às incontornáveis vistas sobre praças e canais que fizeram a fama da cidade, lançando igualmente luz sobre a importância em Veneza da pintura de gênero (aquelas telas de pequeno formato e de tema quotidiano que faziam as delícias da burguesia), representada, no Cognacq-Jay, por obras de Tiepolo e de Pietro Longhi.

A pintura de gênero deriva seu nome do termo petit genre, herança da hierarquia dos gêneros renascentista, cujo pináculo era ocupado pelo grand genre, a chamada pintura de história (de tema bélico, mitológico ou religioso). Os assuntos alheios às proezas militares dos grandes deste mundo, às aventuras dos heróis e dos deuses antigos ou às figuras da Paixão e da Ressurreição eram agrupados pela noção de pintura de gênero menor. Daí o caráter um pouco fourre-tout da denominação, abrangendo as cenas domésticas de um Van Eyck nos Países Baixos, as mundanidades refinadas dos Watteau e dos Lacret ou a crueza de um Murillo ao retratar pobres e mendigos da Espanha dos Habsburgo. Em meio a essa matéria heterogênea, ressalta-se uma unidade entre as telas de Tiepolo e de Longhi no acervo do Cognacq-Jay: a maneira como a pintura de caráter, de interesse psicológico, mescla-se ao comentário social, em uma unidade que se poderia chamar de pintura de situação – uma pintura essencialmente moral, na acepção que tinha o termo entre os franceses da época clássica, para referir-se à análise conjunta da sociedade e do coração do homem como uma só realidade, antes que os especialismos modernos viessem separar esses dois campos em disciplinas distintas.

Essa unidade entre pintura de modos e pintura de caráter já surge em Caravaggio, um dos precursores da pintura de gênero na Itália, naquela célebre segunda versão de A adivinha (1595). Nela, as distinções sociais transparecem na indumentária requintada do jovem de alta linhagem que se deixa enganar pela vidente de trajes modestos. Entrementes, os olhares dão a tessitura emocional da situação: a sobrancelha esquerda levemente arqueada da moça trai sua malícia e sua argúcia, ao passo que uma sombra de desconfiança turva a credulidade cândida do cliente.

A abordagem não é outra em um dos destaques da exposição no Cognacq-Jay, O charlatão (1757), de Pietro Longhi, uma tela mais povoada de homens e de coisas do que a díade econômica do Caravaggio, mas de tema semelhante: a trapaça. Em um cenário impreciso (trata-se do vão de uma loggia?), três senhoras elegantemente vestidas (seriam nobres? seriam cortesãs?) fitam com admiração um homenzinho gordo, de aparência algo teatral. Esse, num gesto dramático, ostenta um frasco contendo, entende-se, um filtro miraculoso; estende os braços à poção, na parte inferior da imagem, um menino. À direita, um casal portando a bauta carnavalesca deixa-se flagrar em situação de galanteria, avesso à cena que transcorre ao seu lado: a moça reclina-se à esquerda, como escapando aos avanços do sedutor mascarado, que levanta a sua copiosa saia branca com a mão enluvada, dando a ver a ponta dos sapatinhos perolados. Os afetos do homem (amor? concupiscência?) são ilegíveis sob a máscara ameaçadora, semelhante a uma ave de rapina; a moça tem a sua máscara jogada para o lado, mas suas feições são tão enigmáticas quanto se estivessem mascaradas, e lembram as de um manequim.

Essa ambiguidade entre o humano e seu simulacro é marcada, ao fundo, pela presença de uma marionete também mascarada, os braços tendidos como os da criança. Toda a tela joga assim com a ideia de dubiedade (moral, ontológica), que não se limita ao frasco do charlatão. É ela que cria uma unidade entre esses grupos algo disparatados; mesmo a admiração das senhoras tem algo de forçado, de posé (uma delas também segura uma máscara); o único a guardar uma distância quanto às opacidades de caráter e de convívio que vigoram no mundo dos homens é um cão escondido sob a mesa, isolado pelo medo ou pelo cansaço da comédia de erros ao seu redor.

Uma tela assim apresenta uma narrativa de sentimentos e de relações humanas que se deixa ler nos gestos, nas aparências e nos olhares dos seus protagonistas, representativos que são de uma sociedade altamente orgânica e hierarquizada como a Veneza da época.

Duas mulheres na janela (1896), Vilhelm Hammershøi.

Esse gênero de arte se tornaria mais raro na pintura moderna. E isso não somente pelo triunfo da abstração. Mesmo na pintura figurativa, nos casos em que os pintores se dedicaram à figura humana, a abordagem já é bem outra. A brilhante obra do dinamarquês Vilhelm Hammershøi (1864-1916) compõe-se em grande parte de cenas em ambientes domésticos, ricos daquele conforto austero dos interiores escandinavos, mas por assim dizer transcendentalmente vazios; os raros protagonistas são figuras solitárias, mesmo em grupo, perdidas em uma meditação intensa, como as mulheres em Vermeer: concentram-se em um objeto ou na paisagem que se estende para lá da vidraça e deixam-se imergir em uma luz intelectual, luz de inverno que não é sem lembrar Bergman. Depreende-se deles uma rica vida psicológica, mais sugerida do que expressa; porém, sua existência social, com suas categorias e suas matizes, é dificilmente legível.

Sem título, Anne Magill.

Muitas figuras de Hammershøi estão de costas, o mesmo ocorrendo na pintura da irlandesa Anne Magill (1962-), que partilha com a de Hammershøi mais de uma característica: os enquadramentos algo fotográficos, a elegância severa dos protagonistas, sua profunda imersão em si mesmos. Estar de costas pode parecer o próprio signo da introversão, mas mesmo esse ato era investido de um sentido social na pintura de situação veneziana exposta no Cognacq-Jay. É o caso de O mundo novo (circa 1765), de Tiepolo, em que um grupo de foliões nos dá as costas a fim de contemplar um, para nós invisível, mondo nuovo (espécie de panorama pintado de paisagens longínquas e de animais exóticos, comum no Carnaval). Ao passo que o dar as costas em Hammershøi e Magill assinala uma tomada de distância quanto ao outro em favor do escrutínio interior, é possível distinguir na tela de Tiepolo o peso da organização social da Sereníssima de então, provisoriamente interrompida mas nem por isso deslegitimada pela orgia: misturadas no caos primordial que é o Carnaval, as classes que faziam a ordem da hierárquica República se confundem, mas não por isso se abolem, e sabemos que voltam com toda a força uma vez a folia terminada. A ausência dos rostos, essas marcas da individualidade, só faz reforçar essa impressão de indeterminação temporária.

O mundo novo (1765), Giandomenico Tiepolo.

Seria fácil contrastar a pintura delicadamente irônica, ao mesmo tempo de caráter e de sociedade, praticada por Longhi e por Tiepolo, com aquela corrente da figuração moderna que aparentemente mais se encontra nas antípodas do intimismo de Hammershøi e de Magill: a pintura social (quando não socialista) praticada por um Léger, pelos muralistas latino-americanos ou, entre nós, por Tarsila do Amaral – a pintura das massas, do homem na metrópole, na sociedade industrial. Ambos, pintura psicológica e pintura social, respondem às novas condições de existência humana, hesitante entre atomismo e gregarismo, no seio da fourmillante cité baudelairiana, muito distinta dos códigos e das rígidas estratificações das sociedades pré-modernas. Nem por isso, entretanto, a sensibilidade que caracteriza a pintura de situação de todo se extinguiu; se ela migrou da pintura, encontrou na arte então nascente da fotografia um refúgio certo – daí a combinação de comentário social e de sensibilidade psicológica, de humor e de sentido do drama, que fez as glórias dos grandes fotógrafos do século, como Cartier-Bresson e Robert Doisneau.

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