por Juliana Ferrari Guide
Quando comecei a me dedicar ao estudo de mulheres artistas do Renascimento, não imaginei que haveria uma oportunidade como a hoje oferecida pelo MASP, com a exposição História de Mulheres: artistas até 1900. Até 17 de novembro, o público brasileiro poderá fruir ao mesmo tempo de obras de três das maiores pintoras italianas da época: Sofonisba Anguissola, Lavinia Fontana e Artemisia Gentileschi. Diante de nós, abrem-se pequenas janelas para o fascinante tempo dessas mulheres e para suas vidas extraordinárias. Este é o primeiro de uma série de três textos para apresentá-las.
Lavinia Fontana (1552-1614): “do nosso tempo, o verdadeiro ornamento”¹
Nossa primeira artista nos leva aos pórticos da cidade de Bolonha, na segunda metade do século XVI. Numa fama que remonta à Idade Média, Bolonha era conhecida como La Dotta (a erudita), por ser sede da primeira universidade europeia, e La Grassa (a gorda), por conta da opulência de sua gastronomia, reflexo de sua prosperidade e da intensa circulação de pessoas de diferentes origens por suas ruas. A cidade integrou os Estados Pontificiais por séculos, e sua riqueza advinha principalmente da produção e comércio da seda. Durante boa parte do período renascentista, Bolonha não contou com uma Corte de nobres que orbitava em torno de uma família local específica. A elite bolonhesa irradiava da Quaranta, os quarenta sobrenomes que compunham o Senado da cidade e a governavam junto com o Legado papal. Por conta da universidade, na alta-roda de Bolonha havia também grande circulação de acadêmicos e pesquisadores proeminentes, para além dos nobres e mercadores abastados de sempre. Foi neste ambiente intelectualizado e marcado por um forte orgulho local que Lavinia Fontana se formou e se projetou.
Via de regra, a moral do período delimitava com nitidez os espaços que eram apropriados para as mulheres, em geral íntimos e domésticos, à exceção da Igreja e de eventuais trabalhos de caridade. Antes do casamento, a socialização das meninas e moças era bastante controlada, já que danos à reputação poderiam comprometer bons arranjos matrimoniais. Juridicamente, em geral, as mulheres eram impedidas de realizar operações práticas necessárias à gestão de negócios, como firmar contratos e comercializar objetos de grande valor como obras de arte. Não é difícil imaginar os muitos obstáculos que se colocavam ao estabelecimento de uma mulher como artista bem sucedida, capaz de viver do próprio trabalho, fora de espaços como conventos e Cortes. Somente nestes ambientes protegidos e isolados, sempre cercadas de outras mulheres, era possível exercer o ofício de artista. Lavinia Fontana, uma artista que produziu fora destes círculos, teve que usar estratégias específicas para conseguí-lo, e nisso foi pioneira.
Por conta deste quadro de restrições, poderíamos esperar uma figura marcada pela rebeldia. Parece-me, no entanto, que a história de Lavinia fala mais de estratégias bem sucedidas para driblar esses limites do que do confronto direto com eles.
Lavinia Fontana não foi apenas uma pintora profissional num período em que isso não era comum, mas também uma celebridade em sua pátria. Era amada e considerada exemplar em suas maneiras, erudição e comportamento. Apesar de não ter origem nobre, casou-se com um homem que elevava seu status social, sendo querida e admirada por nomes como o cardeal Gabriele Paleotti, autor de umas das mais importantes obras a respeito da importância das imagens para o cristianismo após o Concílio de Trento. Ainda, seu nome consta de uma lista de laureadas pela Universidade de Bolonha, publicada em 1666. Embora não tenhamos certeza sobre sua ligação institucional com a universidade, isso certamente significa que foi educada em nível alto o suficiente para que assim fosse vista socialmente. Lavinia Fontana foi capaz não só de prover sua família com seu trabalho, mas o fez sendo uma figura respeitada, acolhida e apoiada pela sociedade de Bolonha.
Poderíamos pensar estar diante de uma contradição – como poderia uma mulher que estava ultrapassando limites não ser vista como transgressora, mas, pelo contrário, como parte orgânica da sociedade que estaria tensionando? Da maneira como vejo, o cuidado de Lavinia com as balizas sociais e seu sucesso se integram num todo coerente. Tudo indica que sua carreira bem sucedida de artista se deva também à impecável administração de sua imagem pública e rede de contatos, engendradas ambas em sua família.
A formação tradicional de um artista exigia do aluno grande frequência no ambiente masculino do ateliê do mestre, durante períodos longos. Essa prática dificilmente poderia ser considerada apropriada para uma adolescente virginal. Isso explica porque a biografia de Lavinia e de várias outras artistas legadas a nós pelo Renascimento tem em comum a figura do pai artista. Sem sair de casa, a filha de um artista tinha acesso à aprendizagem do ateliê e provavelmente também (ainda que de forma fragmentária) a aspectos práticos do métier, como negociação de preços, gestão de encomendas e formação de clientela.
O pai de Lavinia, Prospero Fontana, foi um dos pintores bolonheses mais importantes de sua geração. A família da mãe de Lavinia, Antonia de Bonardis, possuía uma das mais importantes tipografias de Bolonha no período, o que lhes assegurava trânsito e contato com a intelectualidade ligada a universidade. Prospero não tinha origem aristocrática, mas era um homem habilidoso e conseguiu conquistar uma posição respeitável na cidade. Os Fontana moravam numa grande casa, decorada com esmero numa das ruas mais elegantes da Bolonha quinhentista. O endereço e a qualidade da habitação certamente visavam manter na residência uma frequência importante de acadêmicos de destaque, mercadores abastados e nobres, de forma a garantir uma rede de contatos que propiciasse as encomendas de que o pintor necessitava. Por outro lado, por conta disso seu estilo de vida era bastante custoso. Chama atenção na trajetória de Lavinia que seus primeiros quadros assinados sejam de quando ela já estava com 23 anos, idade um tanto tardia para uma profissão que em geral começava na adolescência. Neste momento, Prospero estava longe do auge de sua carreira. Após o casamento da artista, aos poucos o trabalho de Lavinia se constituiu na fonte de sustento da família, incluindo seus pais, até a morte de ambos. Seu marido, Gian Paolo Zappi, era parte de um dos muitos braços de uma numerosa família nobre de Imola.
O Autorretrato na espineta com uma aia (fig. 1) foi provavelmente pintado para ser enviado aos Zappi durante as negociações do casamento. Suas dimensões diminutas indicam justamente que tenha sido feito para ser transportado com facilidade. Lavinia se encontra em primeiro plano sentada à frente de uma espineta, num vestido vermelho, com uma blusa branca de gola volumosa ornada com uma profusão de rendas delicadas e joias de ouro e coral. Atrás da pintora, vê-se uma criada, que segura um livro aberto de partituras. Na parede acima da criada, a inscrição diz “Lavinia Fontana Virgem Filha de Prospero Fontana pintou a si mesma a partir de um espelho no ano de 1577”. Ao fundo, há uma sala iluminada pela luz que vem de uma janela, com um cavalete e um baú. Saltam da obra elementos que reforçam as virtudes necessárias a uma noiva de um membro da pequena nobreza: a virgindade é exaltada na inscrição e o instrumento em primeiro plano reforça que Lavinia foi educada dentro de parâmetros adequados, que implicavam ter lições de música, matemática e escrita. A mesma posição aparece em diversos autorretratos de Sofonisba Anguissola, certamente modelo para Lavinia. A presença da criada, do instrumento e também as vestes ricamente adornadas servem para indicar as boas condições financeiras da família Fontana. O cômodo que fica em último plano contém três elementos. A janela ilumina o quarto, e o baú é um móvel que remete diretamente a núpcias, pois costumava guardar o enxoval da noiva. O cavalete, por sua vez, apresenta pelo menos três sentidos. Como o instrumento musical, remete a boa educação esperada da jovem, da qual faziam parte aulas de pintura. Remete também ao ofício que garante prestígio aos Fontana, na figura de Próspero. No entanto, o destaque dado a ele, que paira sobre a cabeça bem penteada de Lavinia, indica que a pintora quis destacar sua habilidade. Boa parte dos autores interpreta esse destaque como mais um elemento que indica que a possibilidade de capitalizar financeiramente o talento de Lavinia foi preponderante para conduzir a família Zappi ao arranjo com os Fontana.
Acredito que a leitura desta pequena tela nos possibilite entender a figura de Lavinia Fontana em sua complexidade. A pintora se representa em aderência às convenções sociais de educação, de maneiras, do casamento, de vestimentas. Nada na obra agride diretamente o seu tempo. Ao mesmo tempo, a escolha cuidadosa dos elementos tem como objetivo possibilitar a execução de uma estratégia que permite a Lavinia exercer um ofício normalmente vetado a mulheres de sua época de forma segura e estável. De fato, a elevação de status social trazida pelo casamento possibilitou a Lavinia maior circulação na aristocracia bolonhesa, o que acabaria por levá-la também a Roma. A presença do marido, por sua vez, permitiria a gestão de toda a parte jurídica e comercial vetada à pintora na época. É claro que um dos maiores interessados era provavelmente seu pai, contando com o trabalho da filha para conduzi-lo por uma velhice mais tranquila. Ainda assim, não temos como aferir o quanto a estratégia teria sido engendrada somente por ele. Lavinia foi, ao longo de toda a vida, louvada por sua inteligência e por suas habilidades sociais. Parece-me portanto mais provável que ao longo desses primeiros anos ela e o pai tenham concebido conjuntamente os caminhos para administração de sua bem sucedida carreira.
Lavinia teve onze partos e perdeu diversos filhos ainda crianças. Quando se mudou definitivamente para Roma, em 1604, só quatro filhos sobreviventes acompanharam a ela e ao marido. Os registros sobre os padrinhos escolhidos para os filhos ao longo dos anos mostram outras etapas da estratégia dos Fontana em tecer alianças e proximidade com as mais importantes famílias bolonhesas.
Cumprindo o que se esperaria de um artista respeitado, Lavinia realizou muitas pinturas religiosas importantes. São parte fundamental de sua obra os retratos de acadêmicos, de famílias, de mulheres e crianças. Na exposição do MASP, temos dois de seus retratos, que nos mostram alguns motivos de sua fama. Lavinia imprimia uma característica dolcezza a suas figuras, visível na expressão dos olhos, da boca, na ligeira coloração rosada dos rostos. Além disso, parte da demanda por seus retratos era consequência de sua habilidade em pintar as joias, tecidos, bordados, brocados e rendas das vestes dos retratados em minucia, algo que sempre impressiona o observador moderno. Também podemos aferir algo que se apresentava como uma falha em sua formação. Lavinia não tinha um exímio domínio da anatomia, principalmente da masculina, o que é perceptível em alguns de seus quadros que apresentam figuras de corpo inteiro. Isso se dava por dois motivos. O primeiro é que mesmo Próspero não dominava bem a anatomia, e o pai foi sua principal fonte de aprendizagem. Em segundo lugar, por uma questão de decoro, os estudos de nus e cadáveres provavelmente foram completamente vetados à Lavinia.
Apesar de tratar de uma das telas mais ímpares da pintora, uma breve análise do Retrato de Antonietta Gonzales (fig. 2), executado por volta de 1595, parece útil para reunir algumas características importantes da trajetória de Lavinia Fontana.
Foi o interesse da ciência moderna em seus primórdios que provavelmente levou Lavinia a conhecer e retratar Antonietta, através da figura de Ulisse Aldrovandi, médico e naturalista da Universidade de Bolonha. Aldrovandi foi uma das figuras mais importantes deste momento em que se estabeleciam as bases da taxonomia animal, vegetal e também do colecionismo. Criou o primeiro Jardim Botânico de Bolonha e sua coleção de curiosidades superava os maiores gabinetes da Itália no período. Em Monstrorum Historia, parte do seu compêndio de história natural em 13 volumes, ele se dedica ao que denomina “monstros”. O texto compila desde figuras míticas, como centauros e sátiros, até pessoas com variadas síndromes que causam aparência atípica, como a família Gonzales, famosa por conta da grande quantidade de pelos no rosto de seus integrantes, que hoje sabemos ser uma condição genética chamada hipertricose. A própria humanidade de pessoas com aspectos físicos inusuais era questionada no período, havendo quem defendesse que eram animais ou, no mínimo, híbridos de humanos e animais. Nesse sentido, o interesse da nobreza por estas figuras não costumava ser muito diferente do que teriam por um símio exemplarmente adestrado. Pedro Gonzales, o pai de Antonietta, foi levado para Corte de Henrique II de França quando criança. Criado em ambiente cortesão, era famoso pela delicadeza de maneiras e pela inteligência, o que ampliava o fascínio da nobreza, provavelmente convicta de um comportamento bestial em alguém com seu aspecto físico. A família Gonzales passou por diversas cortes europeias, entre elas a de Parma. Nesta ocasião, é certo que pelo menos Antonietta esteve em Bologna, levada por Isabella Pallavicina, Marquesa de Soragna, e hospedada na casa dos Casali. Lavinia pode ter sido convidada a retratá-la tanto por Aldrovandi quanto pelos próprios Casali.
O pequeno quadro de Lavinia é marcado pelos contrastes. O gosto por oposições pode ser considerado uma característica geral da pintura ao final do século XVI e ao longo do XVII, mas nesse caso também reflete o já mencionado motor do interesse das Cortes por pessoas como os Gonzales. O rosto coberto de pelos, que era com frequência interpretado como sinal de animalidade na época, entra em choque direto e abrupto com as roupas elaboradas e ricamente adornadas da criança, que remetem ao ambiente sofisticado da aristocracia. Antonietta segura em suas mãos uma folha de papel marcado por dobras que descreve sua trajetória:
“Don Pietro, um homem selvagem descoberto nas Ilhas Canárias, foi levado à sua mais serena alteza Henrique, o rei da França, e de lá chegou à sua excelência o duque de Parma. De quem [vim] eu, Antonietta, e agora posso ser encontrada nas proximidades, na corte de Isabella Pallavicina, a honorável marquesa de Soragna. ”
A comparação da pintura de Lavinia com a gravura feita para a obra de Aldrovandi (fig.3), ou com um retrato da irmã mais velha de Antonietta feito por um pintor alemão anônimo (fig.4) evidencia a humanidade que a pintora bolonhesa conferiu à criança. Na pintura de Lavinia, a menina está próxima de nós. Para além dos pelos faciais, vemos representados com cuidado os traços do rosto, o nariz rosado e as mãozinhas rechonchudas de criança. Uma discreta indicação de sorriso marca a boca fechada e os olhos, que nos fitam com graça e serenidade.
Alguns dos aspectos elencados são especialmente descritivos da carreira de Lavinia Fontana. A proximidade de Lavinia e sua família com com o ambiente da universidade é central em sua trajetória. Antonietta chega ao ambiente de Lavinia e é retratada por ela ao mesmo tempo em que sua condição incomum desperta o interesse cientifíco de Aldrovandi. Trata-se, também, de um retrato de uma criança vestida com requinte, exatamente o tipo de pintura que assegurou à artista prolíficas encomendas ao longo de sua vida em Bolonha. Ainda, podemos entrever a tão citada dolcezza que Lavinia confere a suas representações. A pequena tela não nos apresenta um exemplar saído da “Monstrorum Historia”, dissecado e catalogado em suas excepcionalidades. Nada em sua postura ou olhar indica também que ela esteja triste ou acuada. Pelo contrário, Antonietta tem a tranquilidade de uma menina pequena em seu vestido a quem é possível nos olhar com atenção.
Lavinia partiu para Roma em 1604, e não sabemos se retornou à sua Bolonha natal até sua morte, em 1614. O período romano traria ainda muitas honrarias à já impressionante carreira da pintora, que trabalharia para o papa Paulo V e teria como patrono o cardeal Scipione Borghese. Em 1609, a prestigiosa Academia de São Lucas, em Roma, passou a aceitar mulheres como membros. É improvável que esta mudança tenha sido completamente alheia à presença de Lavinia na cidade, realizando encomendas para o papado e para a alta hierarquia eclesiástica. De todo modo, sua participação na Academia permitiria a ela ter alunos, homens inclusive, o que faria da pintora umas das primeiras a ocupar tal posição. Lavinia também amargaria pesadas tristezas nos seus dez últimos anos de vida, incluindo a morte de uma filha de catorze anos e dores crônicas nas mãos. Como exemplo do alto nível técnico e expressivo atingido pela pintora, selecionado, é claro, a partir do crivo pessoal desta autora, deixo para apreciação do leitor a Cabeça de jovem (fig.5), hoje parte do acervo da Galleria Borghese, em Roma. A mistura de desenho e pintura forma um rosto lépido de rapaz, provavelmente registrado a partir do modelo vivo. A cabeça se volta para trás para nos apresentar o frescor de seus olhos e sorriso, coroado por uma profusão animada de cachos. A qualidade da obra, um estudo, permite que testemunhemos a envergadura de Lavinia Fontana.
Juliana Ferrari Guide é historiadora pela Universidade Estadual de Campinas e mestre em Estudos da Tradição Clássica, na linha de pesquisa em História da Arte, na mesma universidade.
Notas:
¹ Retirado do Madrigal escrito sobre Lavinia Fontana pelo conde Ridolfo Campeggi. No original “O de la nostra età vero ornamento” In: MALVASIA, Carlo Cesare. Felsina Pittrice: vite de’Pittori Bolognesi, 1678.
Referências:
Caroline Murphy. Lavinia Fontana : a painter and her patrons in sixteenth-century Bologna. New Haven : Yale University Press, ©2003.
Merry E Wiesner. The marvelous hairy girls: the Gonzales sisters and their worlds. New Haven : Yale University Press, 2009.
Vera Fortunati. Lavinia Fontana, 1552-1614.Milano : Electa, 1994.
Mais sobre mulheres, Renascimento e carreira artística:
Women of the Golden Age. An International Debate on Women in Seventeenth-Century Holland, England and Italy’ [ed. Els Kloek et al]. Hilversum, 1994.
The Prospect Before Her: A History of Women in Western Europe, London, 1995, de Olwen Hufton;
The Obstacle Race: The Fortunes of Women Painters and their Work, London, 1979, de Germaine Greer.