Por que a beleza importa? (Parte II) – A beleza, o mistério e a consolação

O Estado da Arte dá seguimento ao dossiê "Por que a beleza importa", inspirado no livro e no documentário do filósofo britânico Roger Scruton. 

O Estado da Arte dá seguimento ao dossiê “Por que a beleza importa”, inspirado no livro e no documentário do filósofo britânico Roger Scruton.

por José Francisco Botelho

I.

No século X, o poeta iraquiano Al-Mutanabi escreveu estes versos: “A noite, os cavalos e o deserto me conhecem/ E a espada e a lança, e o papel e a pena”. Queria dizer, com isso, que era tão exímio espadachim quanto poeta; e o teor duplamente imodesto dessas linhas tornou-o famoso dos mercados de Marrakesh até os desertos dos tártaros. Um dia, viajando entre Bagdá e Damasco na companhia de um servo, Al-Mutanabi avistou um bando de salteadores e fez menção de fugir. O servo então exclamou: “Mas e a noite, e os cavalos, e o deserto, e a espada, e a lança?” Não querendo estragar sua reputação entre os pósteros, Al-Mutanabi puxou a cimitarra e enfrentou os bandidos. Naturalmente, caiu morto (e quem sabe, em seu último instante, tenha pensado: “aquele poema me matou”). Seis séculos depois, Ludovico Ariosto escreveu o “Orlando Furioso”, obra que se tornou imensamente popular em toda a Itália. Certa noite, cruzava a áspera região da Garfanhana, quando foi cercado por um grupo de bandoleiros. Preparavam-se para degolá-lo, quando um deles exclamou: “Mas é il signor Ariosto!”, e outro completou: “O autor do Orlando!” Bendito o ermo cujos celerados tem bom gosto literário! Não apenas lhe pouparam a vida, como o escoltaram em segurança até sua casa, entre abraços, vênias, aplausos e profusas considerações críticas sobre a excelência de seus versos  (e quem sabe Ariosto tenha pensado então: “esse poema me salvou”).

Há anos, sou obcecado pelo curioso espelhamento dessas estórias, separadas pelos séculos, pelas línguas e pelas águas do Mediterrâneo ? estórias provavelmente apócrifas, sim, mas que parecem carregar uma intrigante espécie de verdade, especialmente quando postas lado a lado. Que esses dois relatos existissem em um mesmo mundo e que houvessem chegado até mim, por sinuosos meandros da leitura, era algo que me sugeria um sentido elusivo, tremulando no limite da compreensão. A chave do meu fascínio residiria, talvez, na oposição, ao mesmo tempo simétrica e arbitrária, entre a boa e a má fortuna? Ou na ideia de duas vidas postas à mercê do ato da escrita?  Pode ser; mas ambos os sentidos poderiam ser expressos de outra maneira; e o que me espantava é que eu os tivesse encontrado daquela forma, naquela dupla anedota. Às vezes, após muito ponderar, eu dava de ombros e concluía: “Bom, são apenas duas belas estórias”. Mais tarde, acabei recordando “A muralha e os livros” ? primeiro ensaio de Outras Inquisições e um dos pontos altos nas elucubrações borgeanas. Nesse texto, Borges fala de sua própria obsessão pela figura do imperador chinês Shih Huang Ti: aquele que ordenou a construção da Grande Muralha e, também, a destruição de todos os livros do império.

A conjunção dessas circunstâncias, diz-nos Borges, “me satisfez e, ao mesmo tempo, me inquietou”. Tentando investigar sua própria emoção, o argentino lhe confere vários sentidos possíveis: quem sabe a beleza dessa história esteja na oposição entre os atos de destruir e construir; quem sabe, na grandiosidade e no absurdo implícitos à ideia de fechar fisicamente um país enquanto se lhe cancela o passado. Borges acaba concluindo, no entanto, que certas coisas, certas paisagens, certas narrativas exercem sobre nós, por si mesmas, um domínio inexplicável, anterior a todas as interpretações. Borges termina o ensaio com um parágrafo que jamais será suficientemente citado: “A música, os estados de felicidade, a mitologia, as caras trabalhadas pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares, querem dizer-nos algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão por dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é, talvez, o fato estético”.

II.

Na concepção borgeana do “fato estético”, podemos identificar, de saída, quatro elementos distintos: a promessa de um sentido (que jamais se apreende de todo); o mistério (porque esse sentido nunca se revela); e a nostalgia (pois resta a sensação de havermos perdido algo que deveríamos guardar). Mas Borges parece sugerir que essa perda é, em si mesma, necessária à ideia da beleza:  quando o enigma se resolve, a Esfinge se precipita no abismo e a história acaba. A beleza é essencialmente misteriosa, e tanto mais eficaz por ser insolúvel; talvez haja algo de secretamente filistino em querer decifrá-la de forma exaustiva. Não por acaso, Borges antipatizava com quaisquer tentativas de reduzir o “fato estético” ao mero funcionamento de engrenagens psicológicas, sociais ou econômicas.

Talvez seja prudente assumir, portanto, que à pergunta “o que é a beleza?” só se possa responder por meio da tautologia (“é a qualidade do que é belo”) ou do exemplo (“beleza é o que experimentamos ao entrar na Capela Sistina” ? para ficarmos com a ilustração mais notória). Mas, ainda que não saibamos definir exatamente a beleza, resta muito a ser dito sobre o ato de contemplá-la e sobre sua importância naquilo que costumamos chamar de “condição humana”. E é isso que faz, de forma magistral, o filósofo inglês Sir Roger Scruton: em seu livro Beleza e no documentário Por que a beleza importa?, o desgrenhado cavalheiro de Lincolnshire não se dedica a decifrar o enigma nem a matar a esfinge, mas a examinar o que ocorre à mente humana na presença da beleza ? ou em sua ausência. Quando nos convencemos estar diante de algo belo, diz Scruton, experimentamos uma parte do mundo ? um criatura, uma obra, uma visão, uma melodia ? como um fim em si mesma. A contemplação da beleza é o que nos salva ao fanatismo utilitarista: um belo poema, uma bela música ou uma bela obra de arte não podem ser avaliadas por sua utilidade prática; não são meios para alguma outra coisa, mas têm valor em si mesmos, pelo simples fato de existirem. Devemos agir diante da beleza como agiríamos diante da amizade autêntica: se valorizamos um amigo apenas porque ele é útil, a verdade é que talvez não tenhamos amigo nenhum.

O grande paradoxo da beleza é que, se aceitarmos sua inutilidade essencial, ela pode se tornar infinitamente útil ? chegando, às vezes, ao ponto de nos salvar a vida, como ocorreu com Ariosto. “A beleza nos desafia a encontrar sentidos em seu objeto, a fazer comparações críticas e a examinar nossas vidas e emoções  à luz do que encontramos”, escreve Scruton. “A arte, a natureza e a figura humana nos convidam a situar essa experiência no centro de nossas vidas. Se o fazemos, então encontraremos um lugar de repouso do qual jamais nos cansaremos”.

A beleza é um dos confortos humanos em meio à tempestade e ao desatino da existência; mas ela não nos consola escondendo as dores do mundo. Pelo contrário: das tragédias de Ésquilo ao Adágio para Cordas de Samuel Barber, o poder criador da mente humana se mostra mais forte quando eleva nossas mazelas à altura do sublime. Para os teimosos que continuam a buscá-lo, o “fato estético” oferece um credo relativamente simples, mas de muita valia em nosso mundo complicado; esse credo está perfeitamente explicado em certa passagem escrita por Gottfried von Strassbourg no século XIII ? passagem que poderia ser colocada, junto à Capela Sistina, na antologia de exemplos a que se recorre para explicar o significado essencial do belo:

“Não me refiro ao mundo daqueles que (segundo ouvi dizer) não toleram o pesar, e só desejam o perpétuo regozijo (que Deus lhes permita viver em bem-aventurança, então!). Esse mundo nada tem a ver comigo ou com meu relato. Um outro mundo tenho em mente; um mundo que carrega, juntos, em um mesmo coração, sua amarga doçura e sua querida tristeza; o deleite de sua alma e a angústia de seu desejo; sua cara vida e sua triste morte; sua cara morte e sua triste vida. Que eu possa ter, neste mundo, o meu mundo, para com ele ser condenado, ou para com ele ser salvo”.

Confira aqui a Parte I do dossiê “Por que a beleza importa?”

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