por Pedro Sette-Câmara
No artigo “A arte do gesto no Renascimento”, o historiador André Chastel conta que em 1602 Caravaggio recebeu uma encomenda: deveria pintar uma imagem de são Mateus sendo inspirado por um anjo ao escrever seu Evangelho. Pintou uma cena íntima, com um homem sentado de pernas cruzadas, a escrever, concentrado, sem se dar conta de que é movido por qualquer força maior. Só o espectador do quadro é que vê o anjo a seu lado, dirigindo sua mão.
O quadro foi rejeitado. Segundo Chastel, o cliente alegou que a figura “não tinha nem o decoro nem o aspecto de um santo”. Caravaggio pintou outro quadro, conhecido como A inspiração de são Mateus, que está até hoje no lugar a que foi destinado: a capela Contarelli da igreja de são Luís dos Ingleses, em Roma. Se no primeiro quadro quem via o anjo era o espectador, neste o evangelista vê o anjo e fica absolutamente transtornado: por isso começa a escrever de joelhos (e, convenhamos, há gente que escreve de pé, mas de joelhos?), apoiando-os num banco torto. O anjo, a posição inverossimilmente tensa para escrever, tudo na pintura transmite drama e de imponência.
O primeiro quadro, hoje referido apenas como São Mateus e o anjo, foi parar na Alemanha, e não sobreviveu a um bombardeio durante a Segunda Guerra Mundial. A única lembrança visual dele foram fotografias em preto e branco. As versões coloridas que encontramos na internet são reconstituições.
Parece que nem é preciso fazer uma busca no Google pelos dois quadros para já começar a preferir o primeiro: uma cena íntima, um Mateus que é uma pessoa “normal”. A ideia de um evangelista mais “gente como a gente” parece ter muito mais credibilidade. Não porque sejamos necessariamente mais narcisistas do que aquelas outras gerações que, na ausência de smartphones, gastavam rios de dinheiro contratando pintores para fazer os precursores dos selfies que hoje compõem grande parte do acervo dos museus.
Mesmo seguindo a opinião corrente de que Caravaggio inventou a iluminação hollywoodiana, a história que o primeiro quadro parece contar nos agrada mais por tender a um certo naturalismo. (Sim, ainda que haja um anjo em cena.) Como se houvesse uma câmera no quarto de Mateus, capturando-o como achamos que ele realmente estaria, fazendo com que pensemos mais no homem Mateus e menos naquilo que ele representaria.
Tudo isso é muito interessante, mas pode ficar mais interessante ainda. Posso confessar um truque retórico. Até aqui falei de gente importante: André Chastel, Caravaggio, são Mateus. Mais: não disse nada de controverso, nem mesmo nada de novo. Tendo estabelecido uma espécie de consenso, posso lançar a pergunta: não podemos ir além, vendo nessa preferência a mesma disposição que nos leva a gostar de reality shows e de fotos do Instagram?
Não é justamente porque damos credibilidade ao íntimo, ao pequeno, ao cotidiano, que gostamos de ver “gente como a gente” na TV ou na internet? Não é porque as fotos do Instagram mostram comidas que foram realmente comidas, pessoas que não contam (espera-se) com equipes de produção, que gostamos delas? Não é porque já sabemos que, entre a foto e a coisa, só existem as lentes de um smartphone e um filtro, aos quais praticamente qualquer pessoa teria acesso?
Antes disso tudo, veio a imprensa. Boa parte dos perfis de grandes personagens feitos em jornais ou revistas almejam tornar os perfilados acessíveis, produzindo uma identificação entre quem lê e quem é objeto de leitura, entre quem vê e quem é visto. Quem lê pode talvez nunca escrever um texto de grande impacto, mas pode usar a mesma caneta, o mesmo computador, o mesmo programa.
E antes ainda, já junto com Caravaggio, começa a surgir a ficção moderna. Com ela, as descrições de hábitos cotidianos. Antes do Big Brother, a literatura já estava mostrando o público para ele próprio.
É fácil fazer uma condenação ou um elogio do que quer que seja, reclamar do culto da banalidade ou celebrar a ascensão da pessoa comum. Mas podemos continuar perguntando. Podemos nos perguntar se, antes que existissem fotos de comidas no Instagram, já não existia um movimento cultural que dirigia nossa atenção para aquilo que nosso personagem favorito comeu no almoço.
Se pensarmos nessa pergunta, podemos evitar uma armadilha, que é fazer de uma tecnologia de comunicação um bode expiatório: “ah, hoje essa banalidade toda que existe na internet e tal.” Podemos também levar nossa pergunta mais longe: se concordarmos que existe uma continuidade entre preferir o são Mateus do primeiro quadro de Caravaggio e preferir ver fotos amadoras de comidas na internet a ver fotos de estúdio em cardápios de restaurantes, o que é que produz essa continuidade?