por André Chermont de Lima
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Este ensaio é uma sequência indireta do artigo publicado no Estado da Arte em 7 de agosto de 2021 (“A Intelectualidade fora dos Eixos”), no qual tento associar a figura de Villa-Lobos ao modelo do artista “auditivo”. Elaborado por Luiz Costa Lima nos anos 70, o conceito da auditividade é dos mais esclarecedores e perspicazes instrumentos para a compreensão da cultura luso-brasileira, desde os tempos coloniais até os dias de hoje. Embora, como de hábito, algumas das características do nosso universo intelectual tenham sido percebidas por observadores do passado — Eça de Queirós, Machado de Assis, Lima Barreto e, em especial, Sergio Buarque de Holanda —, a sistematização de Costa Lima foi essencial. Sem querer detalhar o que já descrevi com maior atenção no ensaio anterior, o cerne da questão é a existência de uma subcultura da oralidade, que teima em conviver com nossa matriz civilizacional fundamentada na escrita. Artistas, políticos, juristas, jornalistas, professores — “intelectuais” em geral, tal como o Brasil lhes concede o título — são impregnados de uma ojeriza à excessiva teorização e ao rigor acadêmico e técnico, preferindo o artifício da produção empolada, do discurso impressionante e do texto apelativo mas superficial. Seja na tribuna ou na página escrita (porque a auditividade não se confunde com a cultura de transmissão oral típica de sociedades iletradas), o intelectual brasileiro é marcado pela preferência ao improviso e à retórica sobre a teoria e a especulação. Atualmente, ele se sente à vontade nas redes sociais, porque é constrangido pelo espaço curto e estimulado a opinar sem fundamento. Por descaso ou preguiça, importa ideias em vez de adaptá-las à sua realidade, ou, no reverso da mesma moeda, despreza a influência externa quando, em nome do provincianismo, considera-se apto a exercer seu dever de ofício com base exclusiva no instinto ou no “talento”. Nas palavras de Costa Lima, ele, o intelectual, “receia a sua própria profissão e procura a curva de menor resistência quanto à audiência que o espera”, temendo a originalidade, o debate ou o trabalho árduo. Daí a sua tendência hermética, intuitiva e, por conseguinte, autoritária. O país dos bacharéis, com sua obsessão pela formação acadêmica e pelos currículos (verdadeiros ou falsificados), é também, num triste paradoxo, o país da “sacação”, hostil à teoria e ao estudo[1].
Naturalmente é muito difícil encaixar qualquer pessoa de carne e osso — sobretudo Villa-Lobos, uma das figuras mais complexas na história da cultura brasileira — em qualquer molde esquemático. Creio que tenha sido suficientemente claro a respeito disso antes. E, ainda que sintamos o ranço da auditividade e outros pecados em muitos movimentos estéticos e nos seus protagonistas, problemas de interpretação correta da teoria e, sobretudo, associações abstratas sempre deixarão margem a contestações. Talvez a própria natureza ensaística — ou seja, vaga, pessoal e impressionista — deste tipo de texto seja a confissão de que não negamos nossa natureza e incorremos nos mesmos erros que tentamos denunciar.
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Uma pequena tragédia mexeu com o Brasil em 1945: a morte prematura de Mário de Andrade. Sua gigantesca presença na vida cultural e, em especial, nos rumos que a vida cultural do país tomaria nos 25 anos anteriores coincidiu, de certa forma, com a duração daquilo que ele representou: o Modernismo como movimento consciente. É certo que o próprio Mário havia, algo retoricamente, decretado o fim do movimento já em 1924, numa série de cartas a Manuel Bandeira em que anunciou o abandono do termo em favor do simples adjetivo “moderno”.
Numa das obras mais importantes sobre o Modernismo no Brasil, “A Ideia Modernista”, Wilson Martins posiciona com mais sobriedade e propriedade esse ocaso, num momento bem posterior que se vai confundir com a morte do autor da “Pauliceia Desvairada” e com a efetiva fragmentação estética do pós-guerra:
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“quando a última chama do Modernismo se extingue, em 1945, é ao sopro de uma palavra mágica: estilística, mais uma vez o esteticismo e o cosmopolitismo. Os escritores brasileiros, se, a partir dos anos 30 e no interior do próprio processo modernista, passaram a recusar o Modernismo, nem por isso reivindicaram menos a sua condição de modernos: no arco dos anos, a mesma palavra define um movimento literário e artístico que não usurpou o seu nome”[2].
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Por volta dessa época, a carreira de Villa-Lobos entrava no seu último momento de inflexão. O compositor decidiu dar a guinada, considerada pouco feliz por Pepperkorn e outros (este autor inclusive), em direção ao “universalismo”. A partir daí, boa parte do que compôs foram sinfonias, concertos, quartetos de cordas e obras corais. Seu estilo continuou muito pessoal, mas os elementos nacionais ou se diluíram ou desapareceram.
Villa-Lobos não estava sozinho nessa mudança de rumo. Antes disso, o músico radical, ultramoderno dos anos 20 já havia se convertido ao neoclassicismo. A linguagem das Bachianas Brasileiras, mesclando a suíte barroca com brasileirismos diversos, ainda que profundamente original, era mais benevolente com o ouvinte diletante do que as dissonâncias e o caos dos Choros e da obra de câmara e piano solo escritos antes. As Bachianas foram a resposta tupiniquim ao novo estilo que o próprio Stravinsky, seguido por alguns dos principais compositores da época, inaugurara com base numa releitura inovadora do passado — ou seja, nada que pudesse ser confundido com o conservadorismo nostálgico e neoromântico de um Rachmaninov ou, entre nós, de um Francisco Braga ou um Nepomuceno (que morreu, não nos esqueçamos, em 1920). E mais adiante, por volta de meados dos anos 40, quando o neoclassicismo já se esgotava, vemos Villa empenhado no temerário projeto das obras formais, cujo manejo sempre lhe rendeu dificuldades.
Encaixar o Modernismo brasileiro numa moldura temporal é tarefa complicada, quase impossível, ainda divide os críticos e historiadores da arte e interessa apenas tangencialmente a este ensaio. O início do movimento pode ser localizado por volta de 1917, quando alguns episódios sinalizaram certo esgotamento das escolas prevalecentes (a segunda exposição pública de Anita Malfatti, o concurso de pinturas sobre o Saci Pererê lançado por Monteiro Lobato, o início do fim da Primeira Guerra Mundial, com a nossa participação ativa no confronto, marcaram o ocaso de uma era). O tempo do nascimento é, de qualquer maneira, menos vago que o seu final, a ponto de não ser descabido identificarmos muita coisa que ocorreu nos anos 50 e 60 como “modernista”, incluindo a arquitetura de Brasília e as novas etapas da velha literatura regionalista. O fato é que, naquele ano de 1945, o panorama artístico nacional parece profundamente dividido, fragmentado e opaco, hostil a definições fáceis.
Um aspecto merece maior atenção neste momento, para o fim a que me proponho: o contraste entre a realidade e o mito a cercar a Semana de Arte Moderna de São Paulo, assim como o significado do que se produziu em matéria de arte no Brasil após aqueles tumultuados dias de fevereiro de 1922.
Um país que já acolhera a Corte portuguesa, transformando-se ao cabo de alguns poucos meses de colônia em metrópole; que se tornara independente por decisão do príncipe herdeiro do país do qual se desgarrara (e para o qual voltou mais tarde); que vira, pouco ou nada aturdido, uma longa e estável monarquia derreter-se da noite para o dia, deixando muitos vestígios mas poucos defensores ou saudades; que quase nunca produziu artistas dispostos a revolucionar o meio em que viviam a não ser de forma silenciosa ou, ao contrário, apenas por bonitas e vazias palavras — teria esse país mudado a ponto de, de repente, no centenário de sua autonomia política, gerar um terremoto cultural que não deixasse pedra sobre pedra? No que dependesse da intenção dos organizadores e participantes da Semana, a resposta seria um sim contundente. A realidade, contudo, em particular sob a perspectiva de certa distância de tempo e de julgamento, recomenda observarmos aqueles dias com os olhos mal (ou bem) acostumados pelos nossos vícios. Não é absurdo dizer que o único terremoto a sacudir o Brasil foi o sismo de verdade sentido no final de janeiro de 22 no centro de São Paulo[3].
Ao mesmo tempo que estende a moldura temporal do Modernismo, dando-lhe, como se viu, um início plausível por volta de 1917 e decretando seu fim por volta de 1945, mas sempre de forma muito atenta aos precursores e herdeiros diretos, Wilson Martins relativiza o papel da Semana de Arte Moderna como o evento artisticamente relevante que os currículos escolares e os manuais costumam pintar.
A constatação não deveria nos surpreender. A história da arte está repleta desses fatos momentosos, carregados de simbolismo mas em geral pouco significativos para além da cronologia ou do interesse didático e gráfico. Frutas podres, vaias, brigas e críticas indignadas não costumam aumentar ou diminuir o valor dos seus alvos, apenas revestem-no de uma espécie de aura. A sobrevivência da obra de arte depende do conteúdo, não do escândalo. A espontaneidade das reações é uma coisa; mas o que dizer de eventos programados para causar efeitos?
“A Ideia Modernista” fornece alguns exemplos que reforçam a tese de que a Semana de 22 teve importância sobretudo declaratória, não tendo sequer servido para demarcar no tempo alguma transformação ou mudança de etapa. O autor cita a passagem da “História do Modernismo Brasileiro”, de Mário da Silva Brito, obra que teve sua importância nos anos 60, em que se revela uma espécie de cronograma estratégico traçado pelos protagonistas da Semana. Segundo os planos, 1920 seria o ano “planejamento e opções”; 1921 o do “combate” e “conquista do terreno”; e 1922 o ano da “vitória”. Martins admite que Silva Brito, em que pese a importância de seu relato, foi incapaz de resistir às “tradições da crônica heroica que o Modernismo veio formando através dos tempos” — daí a metáfora bélica, apenas um exemplo entre muitos das “lendas e mitos heroicos que se foram cristalizando em redor de uma verdade bem mais simples” [4].
É importante afastar aqui qualquer impressão de incoerência. Se a realidade foi “bem mais simples” do que o imaginário em torno da Semana — imaginário suficientemente potente para durar, quase incólume, até a nossa geração —, isso não quer dizer que o discurso e a narrativa produzidos pelos atores diretamente envolvidos e seus replicantes tenha sido modesto. Como afirmei, a importância estética e o lugar que a Semana de Arte Moderna ocupa na história da arte no Brasil perdem bastante para seu significado simbólico, e não apenas porque o Modernismo nasceu antes e morreu muito depois de 22; isso, claro, é relevante, mas o que Wilson Martins e outros autores mais recentes tentam demonstrar é que a Semana em si não sacudiu tanto o país ou mudou os rumos da arte como se pensa.
Por influência de Marinetti e seus seguidores, os primeiros “modernos” brasileiros eram chamados de futuristas. O termo pegou e agradou no início, mas logo gerou desconfiança em Mário de Andrade e outros — contra uma alcunha importada, que alguns tentaram substituir, e que foi brotando aos poucos, a ponto de até às vésperas da Semana os poetas ainda se dividirem entre a aceitação, a tolerância mal-humorada e a revolta. O termo “Modernismo”, que, segundo Martins, melhor designa um espírito de época do que propriamente uma escola ou mesmo um movimento, chegou bem depois de seu próprio nascimento, aparente resultado de uma reação a adjetivações meramente copiadas. Era preciso criar algo novo. Malfatti autointitulava-se “moderna” já em 1917, mas ninguém pensava em agregar-lhe o sufixo “ista”.
Numa crítica publicada em 1923 na “Revista do Brasil”, Mário de Andrade declara: “Nós, os modernistas, quebramos a natural evolução. Saltamos os lustros de atraso. Apagamos a sombra […]. Movimentos assim avassaladores são raros. Renascença. Romantismo. E, em grande parte pela facilidade de comunicação e rapidez atuais, verdadeiramente universal, só o Futurismo, tão mal crismado quanto os outros”[5]. Daí ao manifesto Pau-Brasil, de 1924, a evolução parece coerente, embora um pouco hipócrita: “morra o Futurismo!” foi um dos lemas de Oswald de Andrade — ele que, três anos antes, chegou a se designar “bandeirante futurista”, declarando: “Que somos nós, forçadamente iniludivelmente, senão futuristas?”. A própria Semana de 22 foi tratada à época de “Semana Futurista” — e foi necessário que Oswald decretasse que “o movimento não pode mais ser chamado futurista nem paulista”, num artigo publicado poucos dias após o fim do evento. O ímpeto incontrolável de transformação convida, claro, à prepotência e arrogância: assim como Nietzsche decretou a morte de Deus, décadas antes, e Boulez “matou” Schoenberg décadas após, Ronald de Carvalho, que nem tão radical era, proclamava a construção do novo sobre as cinzas: “Cria o teu ritmo e criarás o mundo”.
É natural, assim, que o cenário em torno da Semana tenha sido fértil para a retórica perturbadora e belicosa com a qual estamos acostumados nas associações com o Modernismo. Luciana Stegnano-Picchio atribui a Blaise Cendrars o sarcástico comentário de que Oswald de Andrade estava “sempre em atraso de um livro e adiantado de um manifesto”[6]. Foi ele, de fato, autor de uma série de petardos — alguns lugares-comuns, outros ainda contundentes — sempre direcionados contra o academicismo dos pós-românticos, em reação meio obsessiva à confusão com os futuristas e em favor do impacto amplo e irresistível do evento. Imediatamente após a Semana, escreveu Oswald num artigo de jornal que o movimento era “nacional, violento e triunfante e no qual se empenham reputações formidáveis”. Suas críticas e colunas aparentam-se sempre a discursos, nessa confusa mistura de palavra escrita e oralidade que marcam sua obra e a obra dos primeiros modernistas[7].
É sintomático como a ojeriza ao “academicismo” das gerações anteriores, seja lá o que isso significa, tenha sido um substrato comum ao discurso dos artistas modernos nos primeiros anos. Naturalistas, simbolistas, parnasianos, impressionistas, neoromânticos viraram todos sacos de pancada, sinônimos de poetas “caretas” e ultrapassados, cujo legado “tóxico” deveria ser negado a todo custo: “É preciso evitar Mallarmé”, bradava Mário de Andrade. Não chega a ser inédita — na verdade é bem corriqueira — essa rejeição ao passado por parte de novos movimentos artísticos, em particular em seus manifestos. Nisso os nossos modernistas não foram nada diferentes dos modernistas de alhures, ou dos românticos, ou dos realistas e naturalistas de cem, cinquenta anos antes. Tampouco diferem da dinâmica normal dos movimentos artísticos que, depois de atravessarem fases iniciais de ruptura, caem na acomodação e em variados níveis de conservadorismo, os quais, pela lógica da dialética, acabam refutados pelos estetas de amanhã. Mas os modernistas brasileiros foram um pouco além na preocupação recorrente com o risco de se confundirem com uma “escola” ou com qualquer ranço que pudesse remetê-los de volta ao acadêmico, ao “ultrapassado”. Como ensina Stegnano-Picchio, a “originalidade do movimento paulista e depois modernista teria sido propriamente a de não instituir-se jamais em escola, de aceitar como denominador comum apenas o desejo de uma expressão livre”[8]. Antes da Semana, Menotti del Picchia já se batia, irredutivelmente, pela trindade da espontaneidade, liberdade e originalidade. Anos antes, Oswald voltou de sua primeira viagem à Europa maravilhado com o abandono da rima pelos novos poetas, algo providencial para ele, que confessamente “não conseguira versejar”[9]. Os modernos eram inimigos de tudo o que fosse acadêmico, do que Mário de Andrade descreveu publicamente de “estrebaria malcheirosa de qualquer escola”.
A natureza experimental intrínseca ao Modernismo foi crucial para essas antipatias:
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“a atmosfera que [o Modernismo] criou foi a sua contribuição característica, mais relevante que as obras; a prova está na sensação de liberdade criadora que instaurou definitivamente na literatura brasileira […]. Assim, as ‘memoráveis catástrofes’ modernistas (para lembrar a expressão de Virginia Woolf a respeito do ‘Ulisses’) — ‘Pauliceia Desvairada’, ‘Macunaíma’, ‘Marco Zero’, ‘Cobra Norato’… — são, por paradoxo, os seus grandes triunfos, o triunfo de uma ideia literária, de uma concepção da literatura, de uma visão do mundo.É também essa singularidade que explica a marcante tendência modernista para o experimentalismo”[10].
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Não sei se estaria incorrendo num bárbaro engano se afirmar que os modernistas priorizaram o desejo e o efeito de serem diferentes em detrimento da honestidade artística, ou seja, da obrigação de fazerem arte de verdade. Não por acaso, Mário de Andrade escreveria a Menotti del Picchia, logo após acabar a Semana, uma carta cheia de ironia:
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“Conseguimos enfim o que desejávamos: celebridade. […] outro meio não havia de conseguirmos a celebridade. Era só assim: aproveitando a cólera dos araras. Somos todos pseudofuturistas, uns casos teratológicos. Somos burríssimos. Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes que com todas essas qualidades só havia um meio de alcançar celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da ‘Semana de Arte Moderna’ e… deixar que os araras falassem”[11].
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O verbo “priorizar” que uso acima me parece intencional demais — como se fosse mera questão de opção criar obras-primas. É possível que a primeira geração dos modernistas — em particular na literatura, nem tanto nas artes plásticas — simplesmente não estivesse à altura de suas próprias pretensões. Ela amadureceria depois e se uniria com as gerações seguintes, rendendo os nomes eternizados que tanto prezamos hoje. É possível, assim, que a berraria dos manifestos em torno da Semana de 22 fosse apenas isso, declarações de ruptura, apelos ao barulho e à verborragia, sem conteúdo bastante para se fazerem ouvir através de peças revolucionárias com valor permanente. Daí a diferenciação que Wilson Martins faz entre obras representativas e autores fundamentais, onde não há necessariamente uma interseção. A primeira fase do Modernismo brasileiro está cheia de autores fundamentais, que, entretanto, não produziram muita coisa representativa. Veja-se o caso de Menotti, uma das figuras centrais do movimento, que no certeiro julgamento de Stegnano-Picchio “contribui certamente bem mais para a afirmação do Modernismo com os artigos de jornal […] do que com a sua práxis literária individual […]. A anti-retórica de Menotti del Picchia era, porém, ainda ela, cheia da retórica bem mais frouxa e quotidiana que a do estetismo parnasiano”[12]. O mesmo pode ser dito de Ronald de Carvalho, de Oswald de Andrade — sobre quem Annateresa Fabris diz algo muito parecido, ou seja, um escritor que antecipou em teoria a sua própria práxis — e, talvez com ânsia de provocar, Mário de Andrade. Quem hoje em dia, afinal, conhece e lê a obra de ficção do nosso ícone modernista, ou a prefere sobre sua crítica, essa sim ainda atual e de imenso valor?
A Semana de Arte Moderna se confunde com essa primeira geração de artistas modernistas — e, não por acaso, é seu espelho, no sentido das expectativas e das atitudes dos protagonistas. Muitos exageros e distorções foram se criando em torno dos “sete dias que abalaram a literatura”: para começar, as vozes contrárias antes, durante e imediatamente depois de fevereiro de 1922 eram poucas e na maioria dos casos insignificantes, um punhado de críticos medíocres ou ultraconservadores (ou ambos), como o tirânico Oscar Guanabarino, admirador de Carlos Gomes, espécie de Eduard Hanslick brasileiro, durante anos um bully de Villa-Lobos. As críticas que desferiu contra a Semana acabaram por respingar no compositor e destruíram de vez a pouca boa vontade que Guanabarino ainda lhe reservava — mesmo que Villa tenha escolhido para apresentar em São Paulo um repertório acanhado[13]. Entre as exceções, destacou-se o inteligente crítico Salisbury Galeão Coutinho, alias Cândido, que desferia patadas irônicas e bem fundamentadas contra os protagonistas da Semana. O repertório quase sempre bem-humorado de crônicas e folclore em torno da Semana nos lembra como Oswald de Andrade percorria as redações dos jornais pedindo ataques contra ele e seus pares nos editoriais. Em vão: a imprensa tratou relativamente bem o evento e o movimento, ecoando uma vontade nacional de mudança, uma expectativa por coisas novas. Também o público, que se comportara com civilidade e até entusiasmo na primeira noite, preocupou os organizadores a ponto de, reza a lenda, terem arregimentado uma claque de estudantes para vaiar de diferentes pontos da plateia tudo o que vissem e ouvissem. Em suma, tanto as autoridades públicas (a presidência do estado de São Paulo e a prefeitura da cidade) como os mecenas quatrocentões garantiram a viabilidade do projeto desde o momento em que o primeiro pires lhes foi estendido, o que demonstra não estarmos lidando com uma iniciativa subversiva, uma reunião de poetas malditos num inferninho esfumaçado.
Isso não quer dizer que, como prega o erro comum, a repercussão da Semana de Arte Moderna tenha sido nacional e que os artistas de todo o país abraçaram a causa pacificamente. O anseio de transformação materializou-se em diferentes formas, em diferentes cantos, porque as cabeças eram muito diferentes e o país também. A agressividade com que Monteiro Lobato tratou Anita Malfatti desde a sua exposição individual de 1917 denota desencontros iniciais entre os chamados regionalistas e as pretensões universalistas dos primeiros modernos, cisão que cicatrizaria logo depois quando o modernismo brasileiro adotou os contornos nacionalistas que durariam, de certa forma, até fins do século XX. Lobato era paulista e, à sua maneira, moderno, ainda que por linhas tortas (mais na literatura que na pintura, sobre a qual tinha opiniões bastante conservadoras); fora de São Paulo, no Rio, no Nordeste e Norte, muitos inovadores preferiram manter-se à margem dos efeitos da Semana. Recife, por exemplo, permaneceu ao que parece apática ou desavisada por um bom tempo, vindo a gestar uma discreta movimentação apenas em 1924, sob a batuta do jovem Gilberto Freyre. Ainda assim, o historiador rejeitaria o “rumor da Semana”, algo em que enxergava “muito de movimento de comédia, sem importância real”, segundo o relato de José Lins do Rego. Wilson Martins não poderia ser mais didático:
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“resistir ao modernismo… será, em regra, o primeiro impulso de todos os intelectuais do Nordeste, como José Lins do Rego, Jorge de Lima, mais tarde Jorge Amado, para não falar dos que, como Graciliano Ramos, conservaram essa desconfiança até o fim dos seus dias. Não será antes de 1925 que o sociólogo terá amadurecido a ideia de um ‘movimento’ regional semelhante ao de S. Paulo […]. Assim, os ‘futuristas’ de São Paulo eram tão mal conhecidos no Nordeste quanto eram desconhecidos no Sul os regionalistas do Recife”[14].
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Como se vê, a Semana parece ter falhado duplamente no propósito (i) de cativar os “modernos” de fora de São Paulo, e mesmo alguns locais; e (ii) de assustar os “passadistas”, regionalistas e outros representantes dos variados “ismos” que constituíam nosso establishment cultural. Este segundo ponto merece um pouco mais de atenção, porque desvela um projeto de manifesta continuidade lado a lado com um episódio que, na retórica, se pretendia revolucionário e diferente de tudo que se vira até então. Para começar, a organização da Semana, como mencionei, dependeu da boa vontade dos quatrocentões da cidade, que asseguraram o espaço mais nobre possível do Theatro Municipal para as manifestações, além dos cachês, passagens para os artistas vindos de fora etc. As famílias endinheiradas lotaram as frisas e camarotes com antecedência, criando um clima de baile que certamente contribuiu para o frisson geral durante e após. Foi, também, um acontecimento social — e essa dimensão, digamos, mundana, justifica parte do interesse dos ricaços por sua realização, apesar de muitos deles (pelo menos os interessados por arte) se identificarem como conservadores: era o caso de Paulo Prado e de Alfredo Pujol, membro da Academia Brasileira de Letras e certamente muito mais entusiasta de Machado de Assis do que da literatura “futurista”.
Ao mesmo tempo, a própria origem social de muitos dos artistas e intelectuais a participarem da Semana os aproximava dos mecenas. Oswald de Andrade, filho de uma das mais abastadas famílias de São Paulo, é apenas o exemplo mais flagrante entre muitos outros: Di Cavalcanti, Mario de Andrade e Anita Malfatti, embora não fossem propriamente ricos de nascença, eram bem conectados e trilharam seus caminhos em muitos momentos empurrados por recomendações e patrocínios — o que Sérgio Miceli chamaria de “parentes pobres da oligarquia”. “Quem bancava o show era a fina flor da oligarquia cafeeira”, escreve Marcos Augusto Gonçalves; os modernistas “pertenciam a famílias ricas ou influentes e se relacionavam com artistas, escritores e personalidades ‘passadistas’. […] Eram pessoas vinculadas aos extratos mais afortunados e cultos da grande cidade emergente do Brasil daquele momento”[15]. Essa irmandade entre rebeldes e reacionários explica a benevolência da imprensa paulistana, concentrada nas mãos da alta burguesia da época, porta-voz da “grande ribalta de São Paulo, que promovia, não por acaso no simbólico ano do Centenário da Independência, uma conveniente demonstração pública de arrojo e cosmopolitismo”[16], um recém-inaugurado grito do Ipiranga contra a “hegemonia decadente” do Rio de Janeiro.
A Semana de Arte Moderna foi, portanto, fator, consequência e objeto de uma campanha bem arquitetada de promoção da cidade que extrapolou o sentido meramente artístico. A coincidência com a efeméride do centenário não foi, portanto, tanta coincidência assim: marcou a renovada entrada de São Paulo no cenário nacional, o ponto de partida das bandeiras, essa obsessão paulista, agora em sua versão simbólica de berço de uma nova arte pronta para invadir o Brasil. No discurso do famoso almoço no Trianon, um ano antes da Semana, Oswald declara:
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“São Paulo é já a cidade que pede romancistas e poetas, que impõe pasmosos problemas humanos e agita, no seu tumulto discreto, egoísta e inteligente, as profundas revoluções criadoras de imortalidades”[17].
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Ao mesmo tempo, a união de forças entre artistas docemente subversivos, seus mecenas e divulgadores (na maioria das vezes amigos ou aparentados) foi um substrato poderosamente significativo por trás dos acontecimentos de fevereiro de 1922 — bem mais significativo que a programação do evento, hoje bastante esquecida, superada, como foi, pelas obras amadurecidas do nosso “modernismo” tardio. Quando se fala em programação da Semana, não é possível ignorar a maneira atabalhoada com que os jovens organizadores — “chefiados”, por assim dizer, por Graça Aranha e Paulo Prado — saíram recrutando gente, em São Paulo e no Rio, para se apresentar.
Uso o substantivo “modernismo” assim mesmo, entre aspas, já que, como se viu, o movimento foi condenado à morte em inúmeras ocasiões a partir de 1924. A Semana não pode chegar ao ponto, claro, de ser reduzida à “farsa” denunciada pelo crítico Cândido (para quem nem os próprios futuristas acreditavam na própria causa), a uma “brincadeira de crianças inteligentes” segundo Monteiro Lobato, a um fútil passatempo burguês, como acusaria Di Cavalcanti, ou à comédia insignificante vista por Gilberto Freyre; seu caráter panfletário, porém, diz muito a respeito da tradição auditiva que impregnava seus protagonistas: adeptos da retórica, fieis ao efeito, vinculados, ainda que não quisessem, ao poder do estamento, conforme entendido por Faoro.
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Vida que segue
Pouco se discute hoje em dia a qualidade algo débil das obras apresentadas na Semana de Arte Moderna, especialmente nas agendas literária e musical. Sem as artes plásticas — em especial Anita Malfatti e Victor Brecheret — não teria havido muito o que mostrar. Não apenas críticos contemporâneos são dessa opinião, mas também os protoartistas da época, ou seja, gente não necessariamente já consolidada mas que brilharia mais tarde, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond. Esses jovens lançariam desconfianças sobre o valor da poesia e da prosa apresentada no Municipal de São Paulo. O poeta pernambucano, por exemplo, fez questão de declarar que odiava “Juca Mulato”, de Menotti, com todas as forças de sua alma.
O que se viu, portanto, foi de um lado o amadurecimento natural e gradual de alguns dos protagonistas e a caída no esquecimento, ou na mediocridade morna, de outros. Certos artistas, jovens demais ou simplesmente desconhecidos àquela altura, destacaram-se depois. Vida que se seguiu: sinal de que o Modernismo, nascido antes de 22, foi se firmando aos poucos como conceito sólido no universo cultural brasileiro — menos movimento que conceito, entenda-se bem. Já a explosão simbólica da Semana foi mais ou menos isso, uma explosão, estouro de fogos de artifício que celebrou uma transformação em andamento, muito mais extensa.
Voltemos a Villa-Lobos. Embora praticamente único compositor representado na Semana, sua contribuição artística, por assim dizer, foi tímida, mas a presença física nem tanto: sofrendo de uma crise de gota, teve de entrar no palco calçando um chinelo num dos pés, o que arrancou vaias e gargalhadas do público que imaginava a peça de indumentária como alguma espécie de provocação. O episódio não deixa de ser representativo do que significou a Semana de Arte Moderna.
Um ano depois, o compositor embarcaria para a Europa e daria início, apenas lá, à sua fase verdadeiramente original, ultramoderna. No início da década seguinte, a Revolução dos Tenentes que depôs a República Velha seria decisiva para seus projetos pessoais. De volta ao Brasil para o que pretendia ser uma temporada curta de turnês, foi surpreendido pelo golpe de Getúlio e, percebendo que a agitação do país e sua situação financeira sempre frágil não permitiriam tão cedo o retorno à Europa, decidiu tirar vantagem das perspectivas que se abriam para o mecenato estatal. Após alguns apelativos artigos de jornal e um bem-sucedido concerto coral para milhares de vozes que regeu em São Paulo, foi nomeado, no início de 1932, chefe do Serviço de Música e Canto Orfeônico, ligado à Secretaria de Educação e Cultura do governo Vargas. Villa-Lobos conduziria o ambicioso projeto de educação musical do país com impressionante êxito por pelo menos 10 anos, até que, por motivos diversos, foi-se afastando das funções oficiais (e do Brasil) em benefício da carreira internacional. Manteve, porém, um cargo a título vitalício: a direção do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico.
Com o correr do tempo, porção significativa dos protagonistas, diretos e indiretos, do movimento de 22 foi-se confortavelmente empregando em funções públicas. Muitos dos paulistas já militavam localmente no PRP (Partido Republicano Paulista) ou em alguma de suas dissidências, mas depois da Revolução a oferta de empregos começou a se difundir pelas esferas municipal, estadual e federal. Mário de Andrade havia fundado o Departamento de Cultura e Recreação da cidade de São Paulo, do qual foi diretor até 1937, quando assumiu um cargo docente no Departamento de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por essa época, o livreiro Rubens Borba de Moraes e o crítico Sérgio Milliet também eram empregados daquele Departamento municipal. Cassiano Ricardo assessorava o governo do estado. Manuel Bandeira foi nomeado inspetor de ensino secundário no recém-criado Ministério da Educação e Saúde. Menotti del Picchia, que já cumprira mandatos de deputado estadual nos anos 20 e fora assessor do governador Pedro de Toledo durante a revolta constitucionalista de 32, conseguira o cargo de Diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda do estado. Alcântara Machado havia sido eleito deputado em 1934, logo antes de sua morte repentina. Luís Aranha e Ribeiro Couto, seguindo os passos de Graça Aranha e Ronald de Carvalho, entraram para o Itamaraty no final da década de 20. Graça e Ronald, os únicos funcionários públicos — se descontarmos o cargo docente que Mário exercia desde os anos 10 — em 1922, morreram em 31 e 35, respectivamente. Graça Aranha, já aposentado, havia trilhado o caminho inverso dos outros, indo defender os negócios da família Prado no exterior[18].
Argumenta Luiz Costa Lima que, diante da ausência de público que consumisse ou debatesse sua obra, o escritor brasileiro se limitou, desde as origens de nossa história literária, a apresentar-se como “orador, não importa até que pela forma escrita, pelos artigos panfletários e poemas arrebatados”, empenhando-se em “campanhas nacionais”, na “literatura militante”, embrenhando-se na burocracia, de onde tirava seu sustento. Roberto Campos disse certa vez que “todos queremos ser funcionários públicos”. Isso parece valer para épocas mais próximas e para os artistas bem-sucedidos. Quando Sérgio Miceli nos fala da substituição do oligarca familiar pelo burocrata, na função de provedor da classe intelectual, vêm-me à mente alguns outros processos de troca de papeis pelos mesmos personagens — o do aristocrata rural pelo urbano, de que Sergio Buarque e Gilberto Freyre tanto falam; o do príncipe feudal pelo nobre esclarecido; o patriarca pelo político “progressista”; e finalmente o panfletário oitocentista pelo novecentista, com suas causas e bandeiras atiçadas pelo fogo estonteante do discurso superideologizado. Um pouco na contramão da tese de Miceli, porém, o Estado brasileiro sempre esteve presente no sustento do artista-intelectual brasileiro; o que mudou foi o alcance a institucionalidade. Se, a partir dos anos 30, o fez por prerrogativa institucional, sob a nova cara de Estado-mecenas, ou de Estado-empregador, antes disso serviu de anteparo a “talentos” vários. É claro que o patrimonialismo e o personalismo, os únicos parâmetros possíveis na fase anterior, nunca desapareceram: apenas ocultaram-se por trás da cortina da burocracia e dos princípios da administração pública — em especial o da impessoalidade, uma dessas ilusões petrificadas em nossos códigos que nada significam na prática diária. Embora as condições para o mecenato parecessem substantivamente limitadas no século XIX, nada impedia que Dom Pedro II mantivesse sob sua proteção favoritos como Gonçalves de Magalhães, espécie de “poeta oficial” — inclusive em detrimento de nomes bem mais talentosos como Gonçalves Dias e José de Alencar, que o imperador chegou a hostilizar em artigos anônimos e por meio de bajuladores.
O grande “renascimento” artístico que veremos no Brasil a partir dos anos 30, fruto da maturidade dos atores de 22 e da geração imediatamente posterior, pode ou não ter sido alavancada pelo aparecimento de um Estado-mecenas mais aparelhado; eis uma questão que merece ser discutida com mais profundidade. O que me parece claro, porém, é que as geniais figuras do nosso Modernismo posterior à Semana estariam prontas de qualquer modo, sem os uivos das plateias e os urros dos manifestos.
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Digressão: a arte de criar obras-fantasmas
Num texto dos anos 40, Oswald de Andrade revelou que o “primeiro poema modernista nacional de que tenho conhecimento” havia sido escrito por ele próprio, em 1912, com o título “O último passeio de um tuberculoso pela cidade, de bonde”. Sem rima nem métrica, era formatado do único jeito que Oswald sabia; os amigos não aprovaram e ele acabou jogando o manuscrito no lixo. Nos anos 20, fez outro poema, “Reivindicação”, não perdido mas tampouco publicado, para indicar seu arrependimento:
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“Que pena
Não achar
Aquele Poema
Que eu fiz
Antes de todos
Os poemas
De Mário de Cendrars de Luiz Aranha e de Manuel
Eu trabalhei
Com um cinzel retardatário
Era O último passeio em 20 anos
De um tuberculoso
Pela cidade
De bonde
Dlen! Dlen!
Eu o poria neste papel”
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Há quem duvide que o primeiro poema tenha de fato existido. Não parece haver registro, naqueles remotos anos 10, de qualquer sessão de leitura promovida por Oswald incluindo a peça no cardápio. A nostalgia do título e do tema, remetendo ao Romantismo, à melancolia e ao desajuste entre os objetos (o tuberculoso, figura classicamente oitocentista, despedindo-se da vida na modernidade do bonde), aproxima-se mais de uma descrição de imagem que propriamente de poesia. Vemos Oswald, com sua poderosa imaginação pouco dada a materializar-se em sólidas obras literárias, concebendo a cena abstratamente, como um símbolo de uma época que se foi, substituída, não sem dor, pela era da máquina, dos sons e da velocidade (o “dlen dlen” da sineta), insensíveis aos “cadáveres inúteis” do passado, para usarmos a expressão de Menotti del Picchia. Vemos Oswald, o pretensioso autor dos manifestos, líder e mentor autodeclarado do movimento, revelar que ele, claro, foi também o criador do primeiro poema moderno de que se teve notícia no Brasil. Como num ato de provocação, em vez de tentar recompor o poema, seu criador decidiu apenas “relembrá-lo” em discurso indireto.
Os Choros de Villa-Lobos, sua mais importante série de composições junto com as Bachianas Brasileiras, chegaram até nós em 12 peças numeradas, mais a “Introdução aos Choros”, para orquestra e solo de violão, e os dois “Choros bis”, para violino e violoncelo. As dimensões são tão extravagantes quanto a própria música: se tocados em sequência, estendem-se por quase quatro horas. O autor dizia, no entanto, que havia perdido as partituras dos dois últimos, 13 e 14 — extraviados em Paris quando teve de deixar às pressas o apartamento em que vivia, em 1930. Em entrevista a Vasco Mariz, descreveu-os em detalhes, da orquestração à estrutura temática, como começavam e terminavam. Falou como o 13º era uma “orgia de sons, ritmos e timbres”, e como o 14º, “o mais violento de todos”, sintetizava “as razões estéticas” da série inteira[19].
As sinfonias de Villa, coincidentemente também em número de 12, guardam outro “fantasma” em suas fileiras: a Quinta, cuja partitura nunca foi encontrada, embora tenha sido, segundo o compositor, escrita em 1920 com o subtítulo “A Paz” para coroar a tríade começada por “A Guerra” (Sinfonia nº 3) e seguida por “A Vitória” (nº 4). Segundo Lisa Peppercorn, a ideia nunca teria saído do papel; já Mariz e Luiz Paulo Horta acreditam que a partitura tenha sido perdida. A julgar pelo que a biógrafa suíça conta sobre a Segunda Sinfonia, escrita apenas em 1943 ou 44 após “muita gente ter exigido ver a obra” supostamente datada de 1917[20], não seria descabido supor que tanto a Quinta Sinfonia — um número mítico no gênero, da mesma forma que a Nona — quanto os Choros 13 e 14 não tenham passado de invenções, resgatadas não por poemas mas pela lábia do artista, tão criativa como sua pena.
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Notas:
[1] Costa Lima desenvolve a ideia da cultura “auditiva” em três ensaios: “Da Existência Precária: o Sistema Intelectual no Brasil” (em “Dispersa Demanda”, 1981), “Dependência Cultural e Estudos Literários” (em “Pensando nos Trópicos”, 1991) e “Nosso País, Será Isso Mesmo?” (em “Frestas”, 2013).
[2] Martins, Wilson. “A Ideia Modernista”. Rio de Janeiro: Topbooks e Academia Brasileira de Letras, 2002. Pág. 97. Grifos do autor.
[3] Sua intensidade foi de surpreendentes 5,1 graus na escala Richter.
[4] Martins, Wilson. Op. cit. Págs. 60, 71 e 73
[5] Idem, pág. 85
[6] Stegnano-Picchio, Luciana. “História da Literatura Brasileira”. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, 2ª edição. Pág. 479
[7] Exemplar é o trecho de sua primeira crítica ao jovem Mário de Andrade, no artigo que lhe deu fama: “Bendito esse futurismo paulista, que surge companheiro de jornada dos que aqui gastam os nervos e o coração na luta brutal, na luta americana, bandeirantemente!” (Jornal do Commercio, 27/5/1921).
[8] Stegnano-Picchio, Luciana. Op.cit., pág. 470
[9] Amigo e admirador de Olavo Bilac – antes colaborador da revista “O Pirralho”, depois uma das vítimas preferenciais dos petardos modernistas -, Oswald parece ter aderido ao verso livre por pura incapacidade de rimar. Seria injusto, porém, atribuir apenas a esse defeito a gênese acidental de sua adesão à causa dos revolucionários. A pintura de Malfatti, que encantou os dois Andrades em 1917, teria desempenhado papel importante nesse caminho de Damasco.
[10] Martins, Wilson. Op. cit., pág. 53
[11] A carta é citada por Gonçalves, Marcos Augusto. “1922 – A Semana que não Terminou”. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª reimpressão, 2018. Pág. 326
[12] Stegnano-Picchio, Luciana. Op.cit., pág. 500
[13] A programação musical da Semana foi praticamente toda integrada por peças de câmara, piano solo e canções de Villa-Lobos datadas de alguns anos antes. A mais significativa foi o “Quarteto Simbólico”, marcadamente debussyniano, composto em 1921.
[14] Martins, Wilson. Op. cit. Págs. 122-3
[15] Gonçalves, Marcos Augusto. Op. cit. Págs. 30-1. Ficou quase célebre a postulação de Sérgio Miceli: “O casal formado pelo poeta Oswald de Andrade e pela pintora Tarsila do Amaral é a encarnação mais perfeita e acabada do estilo de vida dos integrantes dos círculos modernistas, obcecados ao mesmo tempo pela ambição de brilho social e pela pretensão de supremacia intelectual”. Miceli, Sérgio. “Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-1945)”. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1979. Pág. 13
[16] Gonçalves, Marcos Augusto. Op.cit. Pág. 33
[17] Citado por Andrade, Gênese, “Oswald de Andrade em Torno de 1922: Descompassos entre Teoria e Expressão Estética” in “Remate de Males”, jan./dez. 2013
[18] O multifacetário Graça Aranha foi exemplo ilustrativo da separação nebulosa entre público e privado que predominava nas cabeças da nossa elite burocrática. Antes de entrar para o Itamaraty, havia sido juiz no interior do Espírito Santo, experiência que lhe rendeu o romance “Canaã”. Conheceu os Prado na virada do século, quando servia em Paris, e desde então passou a trabalhar em prol dos negócios da família. Manteve caso extraconjugal com uma irmã de Paulo Prado e, ao se aposentar em 1914, associou-se formalmente ao clã em atividades ligadas à exportação de café e carne. Foi por intermédio de suas relações com os Prado que os jovens modernistas lograram o patrocínio para viabilizar a Semana.
[19] Mariz, Vasco. “Heitor Villa-Lobos, o Homem e a Obra”. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Academia Brasileira de Música, 2005, 12ª edição. Pág. 177
[20] Peppercorn, Lisa M.. “Heitor Villa-Lobos – Ein Komponist aus Brasilien”. Zurique: Atlantis Verlag, 1972. Págs. 199-204
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