por Thiago Blumenthal
A constância das leis naturais continua sendo o argumento mais poderoso a favor da tese de que os deuses não intervêm em nossos destinos. Pode-se dizer o mesmo de um dos sentimentos mais profundos da raça humana: o amor. No amor também somos como os outros, viemos das mesmas conjunções atômicas e inevitavelmente compartilhamos da mesma ventura.
Nossos ancestrais também se apaixonaram, galantearam, alguns deles mantiveram seus relacionamentos por toda a vida, outros abandonaram seus parceiros (ou foram abandonados), juntaram-se a uma outra alma novamente. Alguns também optaram pela vida celibatária.
O que os une, mesmo os do time dos solteiros, é a marca na pele do sentimento amoroso. São padrões naturais, genéticos, um centro nervoso que nos distingue ao longo de eras de evolução, em nossa comédia humana, e nos previne da plangente tragédia da impermanência.
Prestes a concluir a leitura do livro mais recente do médico António Damásio, The Strange Order of Things, não consigo desligar a chave mental que isola os sentimentos de tudo o que me rodeia, das circunstâncias do acaso, da experiência cultural, do envolvimento com outras pessoas. Damásio pensa em termos de “homeostase”, um termo que carrega em si certa complexidade, mas de crucial importância para entendermos do que somos feitos, afinal de contas, e o que produz nossos destinos.
Os sentimentos são a maneira que a mente tem de expressar a homeostase, enquanto esta, agindo sob essa “casca sentimental”, é a sequência funcional que conecta as formas de vida mais primitivas ao nosso extraordinário e intrincado sistema nervoso (e sanguíneo). Não parece simples e de fato não o é. Contudo, também não é tão árduo compreender a relação entre o que sentimos e as descargas elétricas que pulsam a todo instante dentro de nossas cabeças.
A origem do sentimento se equilibra com muita fragilidade na substância da vida, entre a prosperidade e a morte. Agitações mentais, problemáticas ou repletas de glória, suaves, intensas. Elas podem mexer com você, tanto de um modo intelectualizado ou intenso, puxando toda a sua atenção para si. Mesmo o sentimento mais positivo vai mexer com você, destruir a sua paz interior, quebrar o silêncio. Não importa, sofrimento ou êxtase, os polos opostos desse espectro foram desde alguns bilhões de anos, na evolução para o Homo Sapiens, os principais agentes motivadores da inteligência criativa, ligada enormemente ao sentimento, que produz cultura, tal qual concebida por Cícero e pela Roma antiga – o cultivo da alma, uma espécie de símile para a homeostase, por pura manutenção desse equilíbrio.
Um imperativo poderoso, impensado, inaudito, cuja descarga implica nada mais nada menos do que nossa estabilidade, isto é a homeostase, onde os sentimentos se concretizam como experiências subjetivas de nossos estados mais vitais, tanto no nível nervoso como no sanguíneo. Um produto da mente consciente, da consciência, esse mistério agudo que passou a atrair a atenção de tantos cientistas (e pelo qual tenho me aventurado em minhas pesquisas) em especial nas duas últimas décadas, ainda que o tema seja debatido desde a Antiguidade, tendo passado pelas habilidosas mãos de Descartes, um nome fundador da filosofia moderna.
Contudo, nesses últimos anos temos visto uma curiosa, e às vezes insólita, abordagem interdisciplinar da consciência. Leio uma reportagem recente sobre a polêmica convenção de estudos da consciência em Tucson, Arizona, que atrai de neurocientistas, filósofos, linguistas, até gurus de ioga e da meditação. É uma zona de conflito em que o tiroteio se intensifica, portanto um terreno temerário.
Todavia, assim são as veredas do amor igualmente, uma zona de guerra. Com o advento da memória avançada e da linguagem, de um sistema de comunicação que promovesse alguma troca de fruto afetivo, tornamo-nos capazes de estabelecer, pontuar, recriar, relembrar e manipular os fatos da vida como nos são apresentados à nossa maneira, e desse modo nos apropriamos do sentimento amoroso, em todos os seus enredamentos, sob o regulamento pacífico e silencioso de resistir e perpetuar-se. Não importa se somos linguistas, escritores, engenheiros mecânicos ou iogues.
Para Freud, não há condição em que estejamos mais indefesos contra o sofrimento do que quando apaixonados. Nesses momentos, lançam-se do íntimo as palavras de dor, e as máscaras vêm abaixo, defronte a uma realidade tacanhamente insuspeita. O povo taita, no Quênia, define o amor de dois modos, o primeiro como uma espécie de doença e o segundo por uma profunda afeição pelo ser amado. Em coreano, sarang corresponde a uma concepção mais ocidentalizada do amor, enquanto chong se define por um sentimento mais duradouro.
Participei de uma banca recentemente, em que debatíamos dois tipos de amor distintos no hebraico bíblico, o dod e o ahava (o carnal e o espiritual), distinção que é cara aos versos do Cântico dos Cânticos. Biologicamente, não há uma ordem determinada para os três sistemas básicos de amor (desejo, amor romântico e afeição). Há quem se apaixone muito antes do sexo, e há quem se apaixone depois de uma noite de satisfação orgástica. A “loucura dos deuses”, como chamavam os antigos gregos, pode ser ativada na mente humana a depender da direção do vento e da cultura na qual estamos inseridos. A depender também da meteorologia e do oceano que nos separa de nossos seres amados.
Há aquela célebre história de Darwin ter ficado chocado com Jenny, um orangotango do zoológico de Londres “desagradavelmente humano”. A rainha Vitória também não era muito fã da pobre criatura. Não devemos tirar lição nenhuma, a meu ver, mas me pergunto se Jenny poderia sentir amor, ainda que não correspondido, por Darwin e pela rainha, como nos versos de Leonard Cohen: “Queen Victoria, I’m not much nourished by modern love, but will you come into my life”. Afinal, roubamos nossas mentes e nossa cultura, e também nossos amores, do passado com a maior liberdade do mundo, sem embaraço. Assim persistimos, barcos contra a corrente, incessantemente levados de volta ao passado.