por Carlos Alberto dos Santos
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Nasce o IF-UFRGS
Este ensaio dá seguimento ao anterior, publicado no início de dezembro[1], e tem como referência as seguintes publicações[2], [3]. Em 1959, o CPF-URGS foi extinto para dar lugar ao Instituto de Física, desde então conhecido como IF-UFRGS. Sua data de criação é precisamente 9 de março de 1959. A partir de meados dos anos 1970, o IF-UFRGS, assim como várias instituições similares no Brasil, passaram a ter boa visibilidade nacional, mas antes disso, digamos, até meados dos anos 1960, o conhecimento de grupos de pesquisa em física era muito limitado fora de seu estado de origem. Quando eu fazia minha graduação em física na PUC-RJ, entre 1970 e 1973, o que eu sabia da física do RS era que lá tinha um professor chamado Gerhard Jacob[3]. Obviamente que estou me referindo ao parco conhecimento de um estudante de graduação. Quando, em meados de 1973 participei do II Simpósio Nacional de Ensino de Física (II SNEF), na UFMG, descobri e fiquei impressionado com o que era feito no IF-UFRGS em termos de pesquisa em ensino de física. Passados mais de 30 anos, percebo que a história do IF-UFRGS anterior aos anos 1970 continua desconhecida até mesmo por uma considerável parcela de nossa comunidade científica. O presente ensaio objetiva desnudar essa história, fazendo um recorte em torno de alguns eventos fundamentais.
É preciso ter em mente que o IF-UFRGS nasceu, digamos, em berço de ouro. Herdou tudo que foi feito no CPF-URGS, e não era pouca coisa. Além do DNA empreendedor, toda a infraestrutura para a pesquisa experimental estava montada, incluindo equipamentos de eletrônica e uma bem montada oficina mecânica. O trabalho que faltava, o que também não era pouco, residia na formação de recursos humanos, e nesse sentido a história do IF-UFRGS é exemplar.
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A dupla hélice do IF-UFRGS
A criação do IF-UFRGS ainda não estava no horizonte dos gestores da universidade, quando, em 1955, a universidade teve a oportunidade de indicar candidatos que desejassem participar de um curso de férias em energia nuclear, que seria realizado nas dependências da USP. Tratava-se de um programa de recrutamento de pessoal para participar da instalação, na Cidade Universitária da USP, do primeiro reator nuclear no Brasil[2]. Até aquele momento, a Faculdade de Filosofia da URGS só tinha graduado quatro bacharéis em física: Antônio Estevam Pinheiro Cabral (1949), Pérola Maria Paganelli (1951), Gerhard Jacob (1953) e Darcy Dillenburg (1954). Antônio Cabral estava muito envolvido com a administração do CPF[1], e Pérola Paganelli não permaneceu na UFRGS depois de graduada. E foi assim que, em janeiro de 1956, Gerhard e Darcy foram conhecer a física que se fazia para além do rio Mampituba. Anos depois veríamos que ali estava sendo plantada a semente do IF-UFRGS, e uma espécie de dupla hélice institucional estava em gestação. Durante as primeiras décadas do instituto, Darcy e Gerhard sempre trabalharam cooperativamente, e no início seguiram seus passos científicos sob orientação de Theodor August Johannes Maris, que na metáfora biológica seria a ATP, fornecedora de energia para a dupla hélice. Ou, numa linguagem mais mundana e usual nos anos 1960, estaria ali a constituição da santíssima trindade do instituto.
Na USP tiveram cursos com Marcelo Damy de Souza Santos, José Goldemberg, Paulo Saraiva de Toledo e Rômulo Ribeiro Pieroni, alguns dos pioneiros da física no Brasil. Em depoimento que escreveram para o livro comemorativo dos 50 anos do IF-UFRGS[2], Darcy e Gerhard confessam que ficaram surpresos quando, no final de fevereiro receberam a notícia de que haviam sido selecionados para o grupo inicial do reator. Com bolsa do CNPq, mudaram-se para São Paulo em julho daquele ano. Darcy e Gerhard já sabiam, desde as primeiras aventuras eletrônicas com Paulo Pedro Petry no CPF, que morreriam de fome se fossem viver de física experimental. Procuraram o professor Saraiva, físico teórico, para com ele trabalhar no projeto do reator. Logo Saraiva sugeriu que eles fizessem o doutorado na Faculdade de Filosofia da USP, que funcionava no icônico endereço da rua Maria Antônia. O departamento de física era chefiado por Mário Schenberg, que só aparecia no local lá pelas quatro horas da tarde, depois de ter trabalhado até as cinco da manhã.
Tudo corria na maior normalidade; durante o dia trabalhavam no então denominado Instituto de Energia Atômica (IEA), hoje IPEN, e à noite frequentavam cursos preparatórios para o doutorado. Mas, e como dizia o escritor Plínio Marcos, sempre tem um “mas”, o IEA passou a exigir cartão de ponto. Foi o suficiente para os dois jovens e impetuosos gaúchos abandonarem o projeto do reator e se mudarem com malas e cuias, mais cuias do que malas, para a Maria Antônia. Conseguiram um orientador, Walter Schützer, que lhes acenou com um projeto em teoria de elétrons na matéria condensada. Esse era o planejamento para o ano de 1958. Olhando em retrospectiva a história do IF-UFRGS, essa proposta do professor Schützer, que colocava Darcy e Gerhard na física do estado sólido, ilustra como a casualidade pode desviar o rumo da história da ciência. Enquanto Gerhard e Darcy acertavam seus planos acadêmicos com o professor Schützer, em outubro de 1957, o reitor da UFRGS, professor Elyseu Paglioli, recebia a visita de Ernesto Luiz de Oliveira Júnior que estava em campanha nacional para implantação dos projetos por ele concebidos e implementados por meio da famigerada Comissão Supervisora dos Institutos (COSUPI), que seria instituída no ano seguinte, e sobre a qual escrevi em ensaio anterior[1]. A ideia de Oliveira Júnior era criar um Instituto de Matemática e Física na UFRGS, mas Paglioli o convenceu a financiar dois institutos, um de matemática e outro de física. Logo depois desse acerto, o então diretor do CPF, professor Ary Nunes Tietböhl vai a São Paulo ao encontro de Darcy e Gerhard, com uma proposta do diretor da Faculdade de Filosofia, professor Luiz Pilla, para que os dois regressem a Porto Alegre, ocupem duas cátedras na faculdade e passem a colaborar na eventual criação do Instituto de Física.
Depois de alguma hesitação e de ouvir conselhos veementes do professor Saraiva, os dois abandonam o projeto de doutorado, mas antes de voltarem a Porto Alegre, Darcy e Gerhard passaram os meses de janeiro e fevereiro de 1958 frequentando um curso de física no ITA, São José dos Campos, onde conheceram Marcos Moshinsky, físico nuclear da Universidade do México. Foi o primeiro contato internacional que colocou a dupla hélice em funcionamento. Os dois ofereceram-se para redigir as notas do curso, e a partir daí uma forte amizade se estabeleceu em proveito do IF-UFRGS. Em março, Darcy assumiu interinamente a cátedra de Física Geral e Experimental, e Gerhard ficou responsável pela cátedra de Física Teórica e Superior. Dois catedráticos sem doutorado, como era usual naqueles anos. Fariam suas defesas de Teses de Cátedra anos depois, o que corresponderia ao doutorado.
Naquele momento, às vésperas da criação do IF-UFRGS, o objetivo central era a arregimentação de um físico experiente e de boa formação acadêmica para liderar o projeto científico do IF. Eles já tinham contato com profissionais desse nível, mas nem todos podiam atender o convite. Os poucos brasileiros com esse perfil estavam comprometidos com a criação de suas instituições (CBPF e IF-USP). Juan José Giambiagi, respeitadíssimo físico teórico argentino, embora tenha trabalhado um bom tempo no CBPF, tinha forte compromisso com a Universidade de Buenos Aires, e assim que as condições políticas em seu país permitissem ele voltaria à sua alma mater. Guido Beck, que se encontrava no CBPF, era um homem do mundo, não tinha perfil para permanência a longo prazo em um único local. Com esses dois, Gerhard e Darcy mantiveram um estreito contato no final dos anos 1950 e início dos 60, sobretudo Guido Beck, com quem mantiveram uma correspondência epistolar com mais de 40 cartas entre eles. José Goldemberg serviu de ponte para um convite ao físico nuclear experimental japonês Mitsuo Miwa, que não pôde atender ao convite para orientar as pesquisas experimentais em Porto Alegre, eventualmente como diretor do instituto. Nos dias 1 e 2 de fevereiro de 1958, Darcy e Gerhard assinam duas cartas convidando Roberto Aureliano Salmeron, que estava fazendo seu pós-doutorado no CERN, em Genebra. Infelizmente as cópias dessas cartas foram extraviadas, mas a referência que Salmeron faz na sua resposta não deixa dúvida de que elas existiram. Salmeron é uma personalidade importante na história da física no Brasil, principalmente no que se refere aos anos 1940-1960. Provavelmente, a história do IF-UFRGS seria diferente se ele tivesse aceitado o convite para dirigir o instituto. Ele foi muito gentil em sua recusa. Na carta com cinco laudas datilografadas, Salmeron delineia o cenário da física experimental no Brasil, naquele final da década de 1950, e apresenta o esboço de um plano de trabalho que executaria, se pudesse aceitar o convite para dirigir o IF-UFRGS[4]. Mais uma vez, a casualidade mudou o rumo da história. Como veremos, o instituto não seguiu o plano Salmeron simplesmente porque as circunstâncias impostas foram outras.
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Darcy e Gerhard encontram Maris
A amizade com Moshinsky iniciada naquele curso de férias no ITA, no início de 1958, foi o estopim para a virada na história do instituto. Um ano depois do curso, Darcy foi convidado para trabalhar com Moshinsky durante alguns meses. Ao chegar à cidade do México, soube da programação da 1ª. Escola Latino-Americana de Física (1ª ELAF) e providenciou para que Gerhard fosse convidado para o evento. A escola, realizada em julho-agosto, foi organizada por Moshinsky, Juan José Giambiagi e José Leite Lopes, ícones da história da física no México, Argentina e Brasil. A 1ª ELAF é considerada um evento marcante na história da física na América Latina. Como se verá, o evento foi ainda mais marcante para a história do IF-UFRGS. Foi naquele evento que Gerhard e Darcy tomaram conhecimento de um físico teórico de origem holandesa e formação alemã, pesquisador visitante na Universidade Estadual da Flórida, e que desejava se afastar por um ano, para se livrar do incômodo causado pela construção de um grande acelerador Van de Graaff naquela universidade. Para o afastamento, não excluía a possibilidade de vir para a América Latina.
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Em menos de dois meses, Theodor August Johannes Maris, Maris para a comunidade científica e Theo para os bem íntimos, já estava trabalhando em Porto Alegre, coordenando aquilo que um administrador científico estadunidense denominou um dia the nicest, most coherent Physics Institute in Latin America. Foi rápido, mas não foi fácil; exigiu notável habilidade de gestão de nossa dupla hélice. Convencer o reitor a firmar um contrato não ortodoxo, de um ano, com salário de três fontes (UFRGS, OEA e CNPq), cujo total superava o salário do reitor. Vencidos o trâmite burocrático e a oposição de um assessor jurídico do reitor, que afirmava ser inconstitucional aquele tipo de contrato, o convite foi oficializado, e na noite de 4 de outubro de 1959, Maris desembarca em Porto Alegre com toda sua família, a mulher Wiltrud e as filhas Elisabeth e Eva Maria. Ninguém o aguardava no aeroporto. O telegrama que enviara avisando sua partida só chegou ao destino no dia seguinte. Ele pegou um táxi e hospedou-se em um hotel de terceira categoria. Quando Gerhard e Darcy receberam o telegrama, saíram desesperadamente em busca de Maris, visitando vários hotéis até encontrá-lo ainda dormindo. Transferiram a família para um hotel de melhor qualidade e ele começou imediatamente a trabalhar no instituto, com aqueles que no momento não imaginava seriam seus amigos por mais de meio século.
O instituto tinha sete meses de vida; o diretor, Saviniano de Castro Marques, era um químico, catedrático da engenharia, e o único físico com formação acabada era Maris. Dois meses depois da chegada de Maris, foi organizado um pequeno simpósio para assentar as ideias e ver como o projeto do IF-UFRGS poderia ser inserido no universo científico brasileiro. Convidaram pesquisadores de São Paulo (Ewa Wanda Cybulska, Jose? Goldemberg e Oscar Sala) e do Rio de Janeiro (Luiz Carlos Gomes e Cesar Lattes). Também participou Mael Melvin, amigo de Maris e que estava na Argentina. O evento realizou-se de 7 a 12 de dezembro de 1959. Desses convidados, Cesar Lattes era o mais ilustre e o principal inspirador da criação do CPF-URGS, razão pela qual foi levado à presença do reitor Paglioli. Naquela oportunidade, dois temas de pesquisa poderiam ser a semente da história do IF-UFRGS. Um deles seria na área de física de nêutrons, que Darcy estava desenvolvendo para sua tese de cátedra. O outro, que terminou prevalecendo, era sobre reações quase-livres de prótons, no qual Maris vinha trabalhando na Escandinávia e nos EUA. Mas, ainda não havia no instituto uma ideia bem firmada do que fazer em termos de física experimental. Então, além de apresentar o IF-UFRGS à comunidade científica nacional, que se restringia ao eixo Rio-SPaulo, o simpósio também serviu para discutir com aquela comunidade modos e meios de iniciar a pesquisa em física nuclear experimental.
Surgiu a proposta de enviar estudantes interessados e promissores a São Paulo por um ano, para adquirir treinamento fundamental em espectroscopia nuclear, área de conhecimento dominada por José Goldemberg. Para espanto de todos, Maris fez uma proposta audaciosa: reproduzir em Porto Alegre, em não mais do que seis meses, a bem conhecida medida de correlação angular gama-gama em Co-60. A discussão foi encerrada com a aposta de uma garrafa de champanhe com os colegas de São Paulo.
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O primeiro experimento do IF-UFRGS e o champanhe de José Goldemberg
Dada a urgência, os técnicos da oficina mecânica construíram uma mesa de correlação angular em madeira, em vez de aço, como se tornaria habitual nos anos seguintes. Celso Sander Müller, um engenheiro de altíssima criatividade, que durante décadas socorreu inúmeros físicos experimentais no instituto, se encarregou de montar a aparelhagem, e Alice Maciel, a primeira física experimental a defender tese de doutorado no IF, realizou as medidas. Três meses depois do simpósio, eles já tinham montado o equipamento e obtido todos os resultados experimentais.
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Em junho, José Goldemberg envia um telegrama para Gerhard, congratulando-se com os resultados obtidos. A física experimental no IF-UFRGS nascia com a marca indelével da autonomia, mas a garrafa de champanhe virou lenda. Consultei todos os envolvidos no evento, e nenhum conseguiu lembrar com clareza o destino do champanhe. Uns disseram que Goldemberg enviou a garrafa, e que ela teria ficado em algum armário do laboratório, mas nem todos confirmam essa história. Em conversa recente, o professor Goldemberg me disse que lembrava do telegrama, mas não do champanhe. Ele acha que não enviou. Alice Maciel diz que a garrafa chegou, e que eles pretendiam consumi-la em algum momento festivo, mas a garrafa desapareceu da prateleira do laboratório. Há, nos arquivos do IF-UFRGS, uma matéria intitulada A champanhe de Cesar Lattes, de Ruy Bruno Bacelar de Oliveira. Infelizmente não sabemos nem o jornal, nem a data em que a crônica foi publicada. Há indícios de que tenha sido em um jornal da Bahia. O professor Marcus Zwanziger, professor aposentado pelo Instituto de Física da Unicamp, e que era estudante no IF-UFRGS na época do evento, acha que o autor foi estudante no IF nos anos 1960. Todavia, ele não consta em nenhuma relação de concluintes. De qualquer modo, a crônica justifica a ideia de que a história virou lenda, a começar pelo título, trocando José Goldemberg por Cesar Lattes. Depois, o cronista diz que o evento ocorrera em 1962, e não em 1960.
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Prêmios Nobel que visitaram o IF-UFRGS
O IF já nasceu bem inserido na comunidade científica internacional, status adquirido do CPF[1], seu antecessor. Em novembro de 1958, o CPF foi visitado por Mituo Taketani, colaborador de Hideki Yukawa, Prêmio Nobel de Física de 1949. Antes mesmo de suas defesas de cátedra, Darcy e Gerhard participaram de eventos e estágios no exterior com personalidades importantes da física. Darcy esteve com Moshinsky no México, no primeiro semestre de 1959. Antes disso, em setembro de 1958, Gerhard apresenta um trabalho na Segunda Conferência Internacional das Nações Unidas para Usos Pacíficos da Energia Nuclear, em Genebra. De lá ele foi passar alguns meses em Heidelberg, no grupo de Johannes Hans Daniel Jensen, que em 1963 dividiria o Prêmio Nobel de Física com Maria Goeppert-Mayer, pela elaboração do modelo de camadas do núcleo, tema que ocupou grande parte do tempo de pesquisa de Gerhard. Sua atuação impressionou Jensen, que em fevereiro de 1959 o convidou para ocupar uma vaga de assistente no instituto, e com ele fazer seu doutorado. Convite declinado em função do compromisso assumido com a UFRGS.
Essa inserção na comunidade científica internacional teve como consequência, entre outras coisas, as visitas de três ganhadores de Prêmio Nobel de Física (PNF) ao IF. Entre 22 e 25 de outubro de 1966, Rudolf Ludwig Mössbauer, PNF de 1961, visitou e apresentou um seminário no instituto. Apesar da importância da visita, o evento marcou a memória de poucos no instituto. Até 1996 eu jamais tinha ouvido falar dessa visita. O fato é mais curioso ainda porque eu trabalhava no laboratório de espectroscopia Mössbauer, a técnica que deu o Nobel ao ilustre visitante. Em outubro daquele ano, saiu uma nota no jornal Zero Hora dando conta dessa ilustre visita. Adalberto Vasquez, que coordenava o grupo Mössbauer, e que na época da visita estava iniciando seu mestrado, só tinha uma vaga lembrança do seminário. Não havia qualquer registro aparente daquela visita, nenhuma fotografia. Alguém lembrou que na época só havia dois espectrômetros Mössbauer instalados no Brasil: um no CBPF e outro no IF-UFRGS. O multicanal do CBPF estava com defeito, de modo que o único espectrômetro que Rudolf Mössbauer manipulou abaixo do Equador foi em Porto Alegre.
Em 2006, quando eu estava começando a organizar o arquivo para a montagem do livro comemorativo dos 50 anos do instituto, resolvi consultar Darcy e Gerhard, dois dos principais professores do instituto, e que deveriam ter se envolvidos com a visita. Darcy só lembrava bem do jantar oferecido por Maris, e que em dado momento Mössbauer convidou Maris para uma conversa em particular, em um dos quartos da casa. Depois Maris informou que ele o havia convidado para assumir um posto de professor titular na Universidade Técnica de Munique. Resolvi examinar o arquivo do jornal Zero Hora, e localizei seis fotografias, todas obtidas no aeroporto pelo repórter de ZH. Não havia nos arquivos do IF qualquer fotografia de Mössbauer. Comprei as fotografias de ZH e fui conversar com Gerhard. Não lembrava de nada. Achava que estava fora de Porto Alegre na época. Ficou surpreso quando lhe mostrei as fotografias, em uma das quais aparece ele bem risonho, ao lado de Maris e Mössbauer. Quando comecei a digitalizar os principais documentos do arquivo do IF, encontrei uma nota redigida pela secretária do IF, dando conta da visita de Mössbauer ao Brasil, a convite da Academia Brasileira de Ciências e do Itamaraty. Aliás, essa era uma prática muito interessante. Todas as visitas eram registradas em uma nota de uma lauda pela secretaria do instituto.
A visita de Patrick Maynard Stuart Blackett, PNF de 1948, foi melhor documentada e organizada. Além da nota usual, dando conta de sua chegada em 19 de agosto de 1968, e partida no dia 21, alguém no IF providenciou uma biografia sucinta do visitante. Além disso, uma programação detalhada, impressa em mimeógrafo a álcool, foi distribuída. Houve um jantar oferecido pelo reitor, coisa que aparentemente não ocorreu no caso da visita de Rudolf Mössbauer. Finalmente, alguém da universidade encarregou-se de fazer registros fotográficos.
Provavelmente a visita de Prêmio Nobel mais relevante para o IF tenha sido a de Albert Fert, PNF de 2007, pela profícua colaboração que teve com alguns professores do instituto. Sua visita mais recente foi em 2013, para o título de Doutor Honoris Causa da UFRGS[5]. Na fotografia apresentada abaixo, registra-se, de um lado, a informalidade durante sua visita em 1995 e o momento solene em que ele exibe o título ao lado do reitor Carlos Alexandre Netto. Na companhia de Paulo Pureur, seu aluno de doutorado, e Jacob Schaf, ambos professores do IF, Fert visita o mirante da Cascata do Caracol, em Canela. Entre 1988 e 1990, Fert recebeu em seu laboratório de Orsay Mário Baibich, professor do IF-UFRGS para um estágio de pós-doutorado. Foi durante esse período que eles publicaram os principais trabalhos que levaram à descoberta da magnetorresistência gigante, pela qual Fert dividiu o Nobel com o físico alemão Peter Grünberg.
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A debandada nos anos 1960, para proveito do eixo
Até o início dos anos 1960, jovens talentosos, com aptidão científica, de todas as regiões do país migravam para o eixo Rio-SP para dar vazão às suas criatividades. Com a criação do CPF e do IF, esse processo foi estancado no RS entre 1953 e 1966, o ano em que ocorreu uma debandada dos bacharéis formados na UFRGS. Esse cenário está bem relatado em dois capítulos do livro sobre os 50 anos do IF[2]: Meus verdes anos no IF-UFRGS (1960-1975), de Marcus Guenter Zwanziger, e Eu Lembro, de Paulo Henrique Dionisio. Marcus foi um dos que saiu do IF para fazer uma carreira acadêmica brilhante na Unicamp. Paulo Dionisio resistiu aos quase irresistíveis convites e permaneceu em Porto Alegre até sua aposentadoria no final dos anos 1990. Em seu lúcido, sincero e consistente relato, Marcus esboça o cenário científico no IF naqueles anos iniciais, sobretudo no que se refere à prevalência da física nuclear como linha de pesquisa. Entre outras coisas, é provável que essa prevalência tenha contribuído para a debandada que se observou no final dos anos 1960.
No caso da crise de 1967, que envolveu os bacharéis de 1966 (Artêmio Scalabrin, Elisa Maria Baggio, Henrique Saitovich, Jorge Humberto Nicola, Mário Eduardo Vieira da Costa e Paulo Henrique Dionisio), além de Eliermes Arraes Menezes, recém-graduado na UnB, que desejava fazer seu doutorado na UFRGS, o evento detonador foi uma mudança administrativa no IF. Até então, a regra era a contratação de todos os recém-formados para ministrarem disciplinas de física básica nos cursos de engenharia. Paralelamente, eles eram incentivados a fazerem suas teses de doutorado. O curso de pós-graduação ainda não estava formalmente criado. Era a fase de transição das cátedras e livres-docências da faculdade de filosofia, para o sistema de mestrado e doutorado como hoje o conhecemos. Naquele ano de 1967, o IF negociou um convênio milionário com o BNDE, para infraestrutura física e de pessoal, e para a criação de um curso de PG, com verba para bolsas de estudo. O problema era que não havia uma relação de candidatos para as bolsas. A administração do IF decidiu que a turma de 1966 deveria se demitir para trocar o salário pela bolsa do BNDE. Criado o insolúvel impasse, Paulo Dionisio saiu pelo Brasil representando o grupo em busca de emprego. Na USP ele não aceitou o convite para trabalhar com Ernest Hamburger. Em São Carlos, Sérgio Mascarenhas disse que contrataria tantos quantos para lá quisessem ir, desde que apresentassem uma carta assinada por Gerhard Jacob declarando que a saída não prejudicaria o projeto do IF-UFRGS. No CBPF, Jacques Danon foi enfático: Venham todos, venham logo, precisamos de muita gente aqui.
Depois desse périplo de Paulo Dionísio, o IF perdeu Elisa e Henrique para o CBPF e Artêmio, Eliermes e Nicola para a Unicamp, a grande sugadora de talentos científicos no início dos anos 1970. Da turma de 1967, Cylon Eudóxio Tricot Gonçalves da Silva, que de seu bacharelado foi direto para o doutorado nos EUA, terminou fazendo uma exuberante carreira científica na Unicamp.
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Para além dos anos 1960
Desde aquela debandada, lá se vão mais de 40 anos, o cenário da pesquisa em física expandiu-se notavelmente por praticamente todo o território nacional. O IF-UFRGS deixou de ser novidade, mas em algumas áreas do conhecimento continuou apresentando iniciativas inovadoras. Foi lá que a primeira dissertação em ensino de física foi defendida no Brasil (Marco Antônio Moreira, 1972). Foi lá também que o primeiro laboratório de grande porte com amplo acesso a pesquisadores externos foi instalado no país (Laboratório de Implantação Iônica, 1983). A pesquisa em astronomia, que teve um início tímido nos anos 1970, vem ganhando projeção internacional nos anos recentes, assim como as pesquisas em física de altas energias, com pesquisadores do instituto integrando equipes internacionais.
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Com a palavra, os pioneiros Petry, Zawislak e Moreira
Na comemoração dos seus 60 anos, o IF-UFRGS publica entrevistas com três dos seus pioneiros[6]. Esses documentos de História Oral, obtidos na idade avançada dos entrevistados, são muito relevantes sob dois aspectos. Em primeiro lugar, são registros de fontes primárias, pessoas que participaram dos eventos em pauta. Em segundo lugar, os registros emergem do fundo da memória e constituem aquilo que se denomina de imaginário afetivo. Portanto, para a historiografia é muito interessante contextualizar esses depoimentos no cenário dos registros documentais.
Paulo Pedro Petry, engenheiro eletricista e catedrático da Escola de Engenharia desde 1958, esteve ligado ao IF desde seu antecessor, o CPF[1], período em que trabalhou com Gerard Hepp, engenheiro da Philips de renomada competência. Mesmo assim, conclui-se da entrevista que no imaginário do professor Petry, o CPF é apenas superficialmente lembrado. Por exemplo, alguns eventos que ele relata e se refere ao IF, trata-se na verdade de eventos ocorridos no CPF. Sob sua coordenação, a divisão de eletrônica chegou a ter 30 bolsistas de engenharia, com recursos da COSUPI. Isso foi no CPF, e não no IF, como o professor afirma. Em vários momentos da entrevista, o professor Petry faz referência a dois de seus mestres. O primeiro deles, antes de ele ir trabalhar no CPF, foi o engenheiro Antônio Goetze, com quem Petry montou o transmissor de 2 quilowatts para a rádio da UFRGS, em 1952. O outro foi Gerard Hepp, que teve papel essencial no desenvolvimento do CPF[1].
Fernando Cláudio Zawislak, foi o primeiro doutor em física experimental da UFRGS, tendo defendido sua tese, sob orientação de John D. Rogers, em 1967. Assim como o professor Marcus Guenter Zwanziger, que em seu capítulo do livro sobre os 50 anos do IF faz uma justa e tocante homenagem ao professor Rogers (p. 136)[2], o professor Fernando Zawislak atribui a esse notável professor papel fundamental no desenvolvimento da física experimental no IF-UFRGS. Infelizmente ele ficou pouco tempo no instituto. Chegou em 1964 e transferiu-se para a Unicamp em 1975. Nesse período, orientou 14 dissertações de mestrado e 6 teses de doutorado. Ou seja, Rogers participou da formação de toda a primeira geração de físicos experimentais do IF-UFRGS.
O professor Fernando faz uma justa referência à biblioteca do instituto, coisa que deixamos de fazer em trabalhos anteriores. Esse é o momento de corrigir nossa falha. Desde o CPF, Gerhard e Darcy dedicavam especial atenção à formação da biblioteca. O instituto se desenvolveu com o princípio de que a primeira porção de qualquer verba tinha que se destinar à aquisição de livros e periódicos. Nos anos 1970, a biblioteca do IF-UFRGS tinha um dos maiores acervos no país, do mesmo nível dos acervos do CBPF e do IF-USP. Havia uma prática administrativa que foi tolerada pelas bibliotecárias do instituto, mas que tinha alguma objeção de bibliotecárias de outras bibliotecas, ou seja, a biblioteca era coordenada por um professor da física teórica e outro da física experimental. A bibliotecária-chefe era subordinada a essa coordenação. A bibliotecária Zuleika Berto, que hoje é funcionária emérita da UFRGS, foi a zeladora desse verdadeiro tesouro desde 1965. Mesmo depois de sua aposentadoria, continuou na biblioteca, como funcionária convidada, onde permanece até hoje. Em 2015, suas colegas de trabalho, Cleusa Pavan e Rosa Mesquita organizaram um livro em sua homenagem[7]. No capítulo que escrevi para o livro, fiz uma breve descrição da sala de periódicos e sua impecável organização nos anos 1970. Nas fotografias abaixo, pode-se ver a evolução do espaço físico ocupado pela biblioteca quando o instituto se mudou do campus central para o Campus do Vale.
Os periódicos ficavam em uma salinha pequena, cujo destaque para quem via de fora era a máquina de xerox, mas a primeira imagem fixada em minha retina é também aquela que considero a marca registrada da BibFis, antes do advento dos periódicos digitais. Era um rústico móvel, uma espécie de balcão, onde os periódicos recebidos ao longo de uma semana eram distribuídos de acordo com o dia do recebimento. Na semana seguinte, dia a dia, eles iam passando para outro móvel, que de rústico não tinha nada. Era um bonito e bem fabricado gaveteiro, onde os principais periódicos permaneciam por um ano, ou até que a gaveta ficasse cheia. O último exemplar recebido ficava na parte externa da gaveta. Só depois disso é que iam para as prateleiras permanentes, e quando havia recursos financeiros recebiam belas encadernações. Portanto, a literatura mais recente estava toda ali, de fácil acesso aos leitores. Esse tipo de organização da literatura permitia que o usuário estabelecesse sua estratégia sem correr o risco de ficar desatualizado. Alguns iam diariamente em determinada hora, sentavam-se em uma das confortáveis cadeiras em frente ao móvel e passavam a vista na literatura do dia. Outros escolhiam um determinado dia e examinavam a literatura da semana. Sempre que determinado artigo interessava, o usuário marcava as páginas iniciais e finais em uma tirinha de papel que Zuleika mandava confeccionar no setor de reprografia do instituto (outra joia da coroa) e deixava no balcão, colocava seu nome e aguardava o artigo no seu escaninho de correspondência, que ficava dentro da biblioteca. Se a cópia fosse urgente e a máquina de xerox estivesse disponível, o usuário fazia o serviço no momento da consulta. Na comemoração dos 50 anos do instituto, perguntei a Victoria, Darcy e Gerhard quem tinha tido a ideia do gavetão para armazenar os períodicos do ano corrente. Ninguém lembrava. Certamente foi ideia desses três, com a ajuda de Maris.
Não conheço outra biblioteca de física no Brasil que naqueles anos 1970 tivesse esse tipo de organização no acesso à literatura científica corrente.
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Em sua entrevista, o professor Fernando Zawislak ressalta o fato de que o IF-UFRGS é o único a obter nota máxima, 7, em todas as avaliações da CAPES de seu programa de PG. Outras instituições igualmente bem preparadas, obtiveram, em um ano ou outro, nota 6, mas ele demonstra preocupação com a possível estagnação científica do instituto. Indica veementemente a necessidade do instituto implementar programas de pesquisa mais inovadores, sobretudo em áreas interdisciplinares. É a palavra de quem soube fazer isso quando decidiu, final dos anos 1970, arregimentar um grupo de colegas para a instalação do laboratório de implantação iônica.
Na minha opinião, Marco Antônio Moreira em Porto Alegre e Ernst Wolfgang Hamburger em São Paulo, são os dois principais propulsores da pesquisa em ensino de física no Brasil. Os primeiros programas de pós-graduação no país foram por eles organizados[8], e nesse sentido o IF-UFRGS foi exemplar. Infelizmente, na entrevista o professor Moreira não abordou esse aspecto da sua notável carreira acadêmica, um resumo da qual pode ser apreciada nesta apresentação que fiz em 2017[9].
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Notas:
[1] C. A. dos Santos, “A física fora do eixo: o CPF da URGS,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 10-Dec-2020.
[2] C. A. dos Santos, Instituto de Física da UFRGS. 50 Anos de Inovação Científica, Pedagógica e Tecnlógia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013.
[3] C. A. dos Santos, “Gerhard Jacob, o cientista e o gestor acadêmico,” Rev. Bras. Ensino Física, vol. 42, p. e20190332, 2020.
[4] R. A. Salmeron, “Carta de Salmeron a Darcy Dilenburg e Gerhard Jacob,” Revista Brasileira de Ensino de Física, 1920. [Online]. Available: https://www.scielo.br/pdf/rbef/v42/1806-9126-RBEF-42-e20190332-s1.pdf. [Accessed: 28-Dec-2020].
[5] UFRGS, “Albert Fert é Doutor Honoris Causa da UFRGS,” Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013. [Online]. Available: http://www.ufrgs.br/ufrgs/noticias/albert-fert-e-doutor-honoris-causa-da-ufrgs. [Accessed: 30-Dec-2020].
[6] IF-UFRGS, “Entrevistas,” Portal do Instituto de Física – UFRGS, 2020. [Online]. Available: https://www.if.ufrgs.br/historia/60anos/entrevistas. [Accessed: 30-Dec-2020].
[7] C. Pavan and R. Mesquita, Zuleika Berto: Cinquenta anos de história. Porto Alegre: Instituto de Física, 2015.
[8] C. A. dos Santos, “Pesquisa em ensino de física no Brasil,” História da Ciência – casifufrgs, 2020. [Online]. Available: https://www.youtube.com/watch?v=tooG45NwWdA. [Accessed: 02-Jan-2021].
[9] C. A. dos Santos, “Ensino de Física no Brasil: da pesquisa básica nos anos 70 ao MNPEF,” Slideshare casifufrgs, 2017. [Online]. Available: https://pt.slideshare.net/casifufrgs/ensino-de-fsica-no-brasil-da-pesquisa-bsica-nos-anos-70-ao-mnpef. [Accessed: 02-Jan-2021].
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Agradeço ao professor Luiz Fernando Ziebell, do Instituto de Física da UFRGS, pela cuidadosa leitura do manuscrito.
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