por Andrei Venturini Martins
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Nos últimos dias, o mundo inteiro, estarrecido, viveu aquilo que só estava nas produções cinematográficas e literárias. O “novo” coronavírus (SARS-CoV-2) mostrou o seu tamanho ao instalar o caos nas ruas e nos corações das pessoas. O problema começou na obscura China, que não poupou esforços para abafar o alerta de seus médicos e ocultar a situação caótica que tendia a se alastrar. Após meses de combate, e não conseguindo mais esconder as evidências, apresentou ao mundo uma linha de combate e divulgou cenas cinematográficas de eficiência, tanto na construção de hospitais quanto no uso de drones para alertar as pessoas. A epidemia foi aparentemente controlada na China, e o país liderado por Xi Jinping apresenta-se ao mundo como digno dos mais falaciosos adjetivos: eficaz, efetivo, competente, eficiente e diligente. Operativo. Não foram poucos aqueles que morderam a isca e aplaudiram o teatro chinês.
Após a China, a comunidade internacional, despreparada para a epidemia, percebeu que era uma questão de tempo para que o drama se alastrasse. No início de março, a OMS (Organização Mundial de Saúde) anunciou que a situação havia se agravado, declarando estado de pandemia, ou seja, o vírus havia se disseminado pelo mundo e sua transmissão era sustentável. A Itália, país com o maior índice de contágio no continente europeu, vive uma situação dramática, seguida por Irã e Espanha. Em todo o planeta, os países se comportam como se estivessem diante de um rolo compressor, pronto para esmagar regiões inteiras caso o vírus contamine ao mesmo tempo grande parte da população, sobrecarregando e podendo levar ao colapso os sistemas de saúde de qualquer país, mesmo os que se dizem bem preparados.
O inimigo não é uma criatura gigante, nem mesmo um asteroide poderoso que a qualquer momento se chocará com a Terra, como ilustrou a inteligentíssima obra cinematográfica de Lars von Trier, Melancolia, que narra o drama de uma família diante da aproximação do Planeta Morte, cujo choque com a Terra reduziria tudo e todos a pó. Ao contrário, nos últimos dias somos atacados por um ser minúsculo, invisível. Quem estiver infectado, corre risco de trazê-lo para dentro de sua casa e causar estragos. Por tudo isso, a quarentena está entre as medidas mais usadas em todo o mundo, solicitada não só pelos Estados, mas pelos profissionais da saúde, os médicos, cuja luta no front revela que o espírito heroico do enfrentamento corporal dos inimigos, tão elogiado pela cultura grega na Ilíada e na Odisseia de Homero, ainda está presente entre nós. Ernest Becker, em sua obra A Negação da Morte, dizia que admiramos os heróis porque eles enfrentam corajosamente aquilo que mais tememos: a morte. A admiração, hoje, se volta para os médicos, enfermeiros, cozinheiras, equipes de limpeza, manutenção, segurança e todas as pessoas que, corajosamente, permitem que haja condições mínimas para continuarmos respirando.
O heroísmo ainda habita entre nós, e o pano de fundo de toda essa situação que beira o pânico é o medo da morte. Numa pandemia, a morte espreita na soleira da porta e confronta o nosso desejo ancestral de viver eternamente. Após o advento da modernidade, buscamos na ciência a proteção necessária para os sobressaltos macabros da natureza, entre os quais está a letalidade provocada por vírus e bactérias. Todavia, a crença difundida desde meados do século XVI e XVII, com Francis Bacon por exemplo, na obra a Nova Atlântida, de uma sociedade científica, com produtividade capaz de conduzir a todos a uma vida confortável e livre das mazelas corporais que assolam miseravelmente os pobres seres humanos, ainda não se concretizou. Não há dúvida de que a ciência trouxe inúmeros benefícios, como vacinas, anestesia, técnicas cirúrgicas, remédios, educação alimentar e higiênica, mais conforto para os sofrimentos do corpo e, quiçá, da alma. Mas assim como a ciência se fortalece e se agiganta a cada dia por seu alto desempenho, também os microrganismos se transformam, intensificam as suas forças adaptativas, e não é de se estranhar que contrariem nossas previsões mais otimistas.
É evidente que, nos últimos anos, a tecnologia tem auxiliado bastante, protelando a morte e aumentando a expectativa de vida. No entanto, tais benefícios criaram um ambiente de ufanismo, inclusive entre os intelectuais. Um exemplo disso é o parágrafo que abre a excelente obra Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han, filósofo coreano e professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim: “Cada época possui suas enfermidades fundamentais. Desse modo, temos uma época bacteriológica, que chegou ao seu fim com a descoberta dos antibióticos. Apesar do medo intenso que temos hoje de uma pandemia gripal, não vivemos numa época viral. Graças à técnica imunológica, já deixamos para trás essa época”. Apesar de ser uma obra admirável, em que o autor coloca em prática uma sábia frase medieval, sapere aude [ouse saber], a qual foi retomada por Kant em seu ensaio O que é Esclarecimento? (séc. XVIII), certamente o filósofo coreano precisará fazer algum ajuste para as próximas edições. Após o fenômeno “novo” coronavírus, a afirmação do declínio da época viral mostra-se como um erro. Dizer que não vivemos uma “época viral” é afirmar a queda do chamado paradigma imunológico, que caracterizou o século XX, no qual havia uma divisão do amigo e do inimigo, do próprio e do estranho a ser eliminado.
Contradizendo o diagnóstico de Byung-Chul Han, o paradigma imunológico não é um artefato no museu da História, mas se mostra vivo na luta mundial contra um adversário comum e invisível a olhos nus. A era imunológica, que se abre com mais força pós-coronavírus, é um período em que, detectado o inimigo, traça-se uma estratégia de defesa e ataque, como rezam as cartilhas de guerra. Líderes de países relevantes no cenário político mundial, como Trump, Merkel e Macron, fizeram referência à pandemia de coronavírus como estrategistas militares, adotando mecanismos de defesa usados em momentos beligerantes, como o fechamento do espaço aéreo e as restrições do deslocamento, formas mais extremadas de conter a proliferação exponencial do vírus. Porém, há uma afirmação do filósofo coreano que explica o caos instalado no mundo pós-coronavírus: “O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização”. Os bloqueios imunológicos diminuem as relações sociais, dificultando não só a microeconomia informal que movimenta parte das riquezas de países como o Brasil, mas produzem um efeito nefasto em uma estrutura econômica dependente do mundo globalizado. Em um mundo interligado por laços econômicos, sociais e políticos, em que os países se mostram dependentes uns dos outros, o paradigma da imunização – com seus muros, estratégias de contenção e restrições – se mostra um intragável obstáculo para o recente século XXI.
Depois de todos esses acontecimentos, creio que o mundo voltará sua atenção tanto para os inimigos invisíveis carregados por criaturas visíveis, seres humanos e animais, quanto para os estragos que o hostil universo microscópico pode causar. Será uma tarefa hercúlea adaptar o paradigma imunológico, que restringe as relações, à sociedade globalizada, que depende de trocas e intercâmbios.
Trancados em suas casas, receosos de uma provável contaminação, preocupados com os familiares que estão distantes, ou que fazem parte dos grupos de risco, e sem saber as consequências da “onda coronavírus” que ainda não se derramou com toda sua força no Brasil, o povo espera que as autoridades ajam com prudência. Que nossos líderes tenham aprendido alguma coisa com as experiências daqueles que já enfrentaram e estão enfrentando essa batalha viral, e que tenham traçado uma estratégia eficaz para abrandar os danos causados pela pandemia. De sua parte, resta ao povo cumprir as determinações das autoridades e as recomendações dos especialistas incumbidos diretamente deste combate, mas sem esquecer as sábias palavras do médico Bernard Rieux, personagem da obra A Peste, de Albert Camus: “Era preciso, apenas, começar a caminhar para frente, nas trevas, um pouco às cegas, e tentar praticar o bem”.
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Andrei Venturini Martins é Doutor em Filosofia pela PUC-SP. Professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), palestrante na Casa do Saber e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP LABÔ.