por Thiago Blumenthal
A primeira impressão deixada pela leitura de O Rio da Consciência, do doutor Oliver Sacks (1933-2015), é exatamente esta anunciada no título, comumente usada para descrever as pessoas com formas muito graves de síndrome de Tourette. Sacks devia ter um motor de quinhentos cavalos debaixo de seu boné. A familiaridade com que trata os assuntos mais variados em um livro tão curto pode surpreender mesmo os fãs mais antigos de Sacks, que o acompanharam enquanto escrevia sobre samambaias, levodopa, alucinações, fórmulas químicas, judaísmo, enxaqueca, algumas formas de autismo e a lista segue.
No presente livro, recém-lançado, temos uma compilação de dez escritos entre inéditos e alguns já publicados pela revista New York Review of Books, que funcionam como capítulos de um imenso diálogo com a figura-chave, a meu ver, do pensamento sacksiano: Darwin. Não por acaso há ali artigos dedicados a pontos mais obscuros do pai da teoria da evolução, como sua paixão pela botânica ou pelas minhocas. Darwin, sabemos, gostava de se intitular geólogo acima de qualquer outra categoria, mas era grande amigo de botânicos célebres, como Joseph Dalton Hooker e Asa Grey, de Harvard. Hooker, aliás, passaria a ser seu principal confidente – e o único a ter acesso aos primeiros esboços do seu livro sobre evolução.
A velocidade do pensamento e da escrita de Sacks, mesmo em seus ensaios deixados para espólio, alguns concebidos a duras penas devido ao tratamento de câncer no fígado, percorre o livro com a fluidez característica de seus primeiros textos. Sem dúvida há muito ali do estilo técnico-científico de Enxaqueca, publicado há quase meio século, hoje um clássico da literatura médica. Mas ao mesmo tempo em que parece haver um Sacks mais próximo da linguagem técnica, o mesmo demonstra um amplo conhecimento de assuntos e bibliografias contemporâneas. Sabe onde pisa, conhece por exemplo a obra de um Christof Koch, hoje um dos maiores nomes da neurociência moderna, cujo trabalho com a base neural da consciência tem ressonância em diversos campos.
Quando o assunto é consciência, Sacks demonstra segurança para traçar toda uma trajetória dos principais estudos na área. Desenvolve com graça e clareza o pensamento de Gerald Edelman, de Jean-Pierre Changeaux, de Daniel Dennett. Eis aí o ponto de diálogo, porque a ordem dos ensaios se liga de maneira sintática, do darwinismo à teoria da mente. É como se um alarme soasse por todo o livro, acendendo uma lanterna na escuridão que para nós ainda é a consciência – o momento em que transformamos o cérebro em mente, biologia em subjetividade.
Consciente da incompreensão humana diante da gênese dos qualia, ou seja, da computação cerebral objetiva em uma experiência subjetiva, Sacks debate com seus pensadores favoritos como ocorrem essas transformações. Vai de Darwin a William James, de Freud a Dostoievski, de Wagner a Libet, no intervalo de poucas páginas, mas sem misturar conceitos, e sempre de maneira muito objetiva.
Emociona-me particularmente testemunhar como o “rio de consciência”, metáfora borgeana da qual se vale para intitular seu ensaio-chave, flui em um pensamento teórico sofisticado até chegar em Proust, afirmando que somos feitos de momentos não apenas perceptuais, mas momentos pessoais, para finalmente nos introduzir à imagem capital de Proust de que consistimos em uma “grande coleção de momentos” – emociona-me pois é uma das portas que deixo aberta em minha pesquisa de doutorado e à qual adentrarei no pós-doutorado. Não é todo dia, afinal, que dois autores de sua predileção se encontram de maneira tão feliz.
Se é com Darwin que Sacks dialoga a maior parte do tempo, fica clara sua dívida para com William James e com Freud em outros ensaios, conforme deixa claro o preâmbulo do livro. São e sempre foram as principais referências intelectuais de Sacks, desde quando era um estudante de medicina na Inglaterra, antes de partir a Nova York no pós-guerra. Darwin está presente na devoção com Sacks que esmiúça temas que eram caros ao nobre navegante do Beagle. Descobrimos, via Sacks, que nada dera tanta satisfação a Darwin em sua vida de cientista quanto descobrir o significado da estrutura de plantas floríferas.
Já com William James o diálogo se dá sob um vigor mais psicológico. Para James, nossos pensamentos não andam a esmo como “gado desgarrado”, e talvez poucas imagens tenham influenciado tanto o pensamento sacksiano quanto esta, citada no ensaio sobre consciência. E Freud está ali, em todo o seu aparato intelectual, como um guia que nunca se cansa de trabalhar e revisar sua própria obra.
O Rio da Consciência pode pressupor um leitor iniciado de Oliver Sacks. Talvez. O conteúdo de seus ensaios tem um teor um pouco mais técnico que os últimos livros publicados pelo autor (de ordem mais biográfica) e alguns assuntos, como o do próprio título, possuem a complexidade que poderia requerer um leitor afeito aos temas. Não deve, contudo, intimidar nenhum interessado na ordem maior da vida. O que sentimos? como sentimos? e do que afinal somos feitos? são perguntas que Sacks parece debater, em chave talmúdica, com seus grandes parceiros de vida e de ciência.
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