FOCO: Éric Rohmer sobre ‘A Condessa de Hong Kong’, de Charles Chaplin

De 'Charles Chaplin', 1967.

Em parceria com a Foco – Revista de Cinema, antecipando a sua próxima edição, publicamos o texto que o autor da série “Comédias e Provérbios” dedicou ao último filme do célebre humorista e cineasta.

Charles Chaplin com o elenco de A Condessa de Hong Kong.

O maior elogio ao cinema veio de um diálogo entre um cineasta e um cientista: “O que mais admiro em sua arte, Sr. Chaplin, é sua universalidade. Você não diz uma palavra, mas o mundo entende você!”. “É verdade. Mas sua glória, Sr. Einstein, é ainda maior! O mundo inteiro te admira, mesmo que eles não entendam uma palavra do que você diz”.

O último filme realizado por Charles Chaplin foi tido, à época do seu lançamento, como pouco mais que uma triste conclusão à obra de um dos grandes pioneiros do cinema. Entretanto, em 1972, o cineasta francês Éric Rohmer afirmava, no posfácio de uma compilação dos textos que o crítico André Bazin dedicou ao cinema de Chaplin, que nos anos 1960 o filme que realmente lhe pareceu capaz de “inspirar ideias inovadoras sobre o cinema” foi justamente a anacrônica farsa chaplinesca.  

Provocação, diletantismo? Na década em que eclodem a nouvelle vague, os cinemas novos e as vanguardas experimentais é o filme terminal de um velho cineasta que suscita, no autor de O Celuloide e o Mármore, o interesse pela modernidade? O entusiasmo de Rohmer talvez possa ser explicado justamente por um viés científico, ao propor uma maneira de relativizar e de tornar recíprocos tanto os méritos dos aspectos globais da obra de Chaplin quanto o contexto no qual essa obra passou a ser percebida como arcaica. Pois se em outras épocas a arte de Chaplin e a personagem de Carlitos foram admiradas pela maneira como o grande público as assimilou, é possível especular que a partir de Monsieur Verdoux o mundo tenha passado a rejeitar Chaplin não porque deixou de entendê-lo, mas justamente por entender melhor aquilo que ele na realidade sempre exprimiu. O que nos leva a pensar que não foi tanto a ausência de novidades o que afastou o grande público daquele que fora o artista mais popular dos primeiros anos do cinema, mas justamente a permanência do que antes parecera mera rotina, no sentido cômico do termo, e que terminou por se revelar um tanto mais incômodo (Monsieur Verdoux, 1947), cáustico (Um Rei em Nova York, 1957) ou trágico (Luzes da Ribalta, 1952) aos olhos dos espectadores que haviam se habituado à figura ora comovente, ora cômica do vagabundo.

Essa discrepância entre público e obra, deflagrada pelos últimos trabalhos de Chaplin, não terá dado origem, afinal, ao horizonte que viu nascer as obras de Jean-Luc Godard, Michelangelo Antonioni, Marcel Hanoun, Jean-Marie Straub, Pier Paolo Pasolini, Kenneth Anger, Nagisa ?shima, Glauber Rocha, Andy Warhol e V?ra Chytilová a partir dos anos 1960, justamente? Menos paradoxal do que parece, a admiração de Rohmer demonstra na realidade uma aptidão de grande capacidade sintética. Foi um esforço análogo que nos guiou durante os trabalhos da próxima edição de nossa revista, a qual entrará no ar proximamente.

Bruno Andrade

Detalhe do poster francês para A Condessa de Hong Kong.

A CONDESSA DE HONG KONG, Charles Chaplin, 1967

por Éric Rohmer

Tenho algum escrúpulo, é escusado dizer, em tomar a batuta de Bazin, ainda mais que, disposto a segui-lo em tudo, só faço exceção quanto a isso no capítulo sobre Chaplin. Longe de sentir seu entusiasmo por Verdoux ou Calvero, odiei-os muito cordialmente, assim como Shahdov, único ponto em que concordamos. Mas talvez essa minha aversão não passe de homenagem disfarçada: quando vi A Condessa de Hong Kong (A Countess from Hong Kong) foi a paixão total. Meu fervor irradiou-se até os mais remotos Carlitos, levando junto, convém dizer, o grupo dos “falados” que não pude rever e por conta dos quais ainda se devem minhas precauções, exceto talvez, curiosamente, por Um Rei em Nova York (A King in New York, 1957).

Ao contrário de Bazin, que explicava Chaplin por Carlitos e seu mito, eu gostaria de estudar Carlitos à luz de Chaplin e sua direção, a qual nos é oferecida aqui – como outrora em Casamento ou Luxo? (A Woman of Paris: A Drama of Fate, 1923) – em estado puro, longe da sombra projetada pela presença mitificante do herói. Pouco importa que meus argumentos sejam de natureza oposta aos de Bazin, e às vezes inclusive completamente antagônicos. Fico feliz de aproveitar a oportunidade para me reencontrar com ele: pois Chaplin era, no fundo, seu predileto, e o filme que, nos anos 1960, realmente me entusiasmou e inspirou sobre o cinema das ideias inovadoras foi precisamente A Condessa.

Dito isto, já disse tudo, pois meus pensamentos são indizíveis. A bem da verdade, nem sequer são pensamentos, mas intuições, pressentimentos. Intuição, por exemplo, de que se Carlitos – ou Chaplin – não é todo o cinema, como sustentaram zelosos paladinos, todo o cinema, para quem sabe procurar, está em Carlitos, em filigrana, e um cinema que, em 1972, não disse sua última palavra. Mas falar desse filme, analisá-lo, desmontar seu mecanismo, para quê? Ele não se explica, já que ele próprio é o princípio explicador. Pode-se dizer tudo por meio da Condessa, nada sobre ela. O melhor estudo a ser feito do filme é retomar, uns depois dos outros, os filmes de Chaplin e descobrir como anunciam, cada um à sua maneira, esse ponto de chegada que ele é da série, último até o presente, e provavelmente para sempre, desses pontos finais que são os Chaplins falados, incluindo Tempos Modernos (Modern Times, 1936), o qual, por sua vez, poderíamos explicar dessa forma, às avessas de Bazin.

Aliás, como falar de um filme cujo principal mérito reside precisamente na dificuldade de se falar dele? Ora, em toda a história do cinema os filmes de Chaplin são aqueles que conseguiram ser os mais comentados. São também os mais fáceis de contar. Suas gags fazem rir “no papel”, ao passo que aquelas, digamos, de Buster Keaton não conseguem se reduzir em termos de discurso. No universo conceitual de Carlitos, o objeto vale pela ideia que se prende a ele – sua função usual ou desviada –, pouco importam sua forma, suas dimensões. Elas são determinantes, ao contrário, em Keaton, no qual o cômico pode nascer sem referência alguma à função, ao tamanho ou à forma do motivo apresentado.

Os comentadores de Chaplin lhe prestaram um mau serviço ao reduzir seus filmes a uma espécie de jogo de par-ou-ímpar, nos mergulhando nos tormentos e nas delícias de uma especulação em que o rito nasceria da expectativa, seja satisfeita, seja frustrada. Eles colocaram em evidência a inteligência dessa comicidade e a parcela de inteligência que ela exige do espectador, uma vez que o riso nunca nasce da própria coisa, mas do choque das ideias às quais serve de suporte. E o fizeram velando justamente o que pretendiam trazer à luz, a saber, o gênio propriamente cinematográfico de seu ídolo. A originalidade, ou mais exatamente, a estranheza do roteiro nos filmes do último período o faz monopolizar o conjunto dos comentários, tornando subsidiárias, como o próprio Bazin admite, as questões “de estética formal da narrativa e da direção.” “Luzes da Ribalta” (Limelight, 1952), escreve ainda, “não se parece com nada.” Frase que se aplica com não menos justiça a Monsieur Verdoux (1947) e a Um Rei. Resumindo, A Condessa confunde-se com a massa daquelas comédias hollywoodianas em que a falsa dignidade de uma personagem masculina é arrasada pelo capricho, a astúcia e o charme de uma mulher.

Ogden Mears (Marlon Brando), filho de família rica e diplomata, que volta aos Estados Unidos de navio, fica sabendo, na escala de Hong Kong, que, em vez do posto de secretário de estado que esperava, obteve o de cônsul numa remota Arábia. Para afogar sua decepção, aceita o convite de um velho amigo de seu pai, “papai Clark”, para irem terminar a noite num bar em companhia de três daquelas “autênticas” condessas que, nas boates de marinheiro, cobram 25 centavos a dança. Harvey (Sidney Chaplin), seu colaborador, está na farra. Uma das moças, Natascha (Sophia Loren), parece se interessar muito particularmente por nosso herdeiro.

Até aqui, nada de comicidade franca, a despeito de certas réplicas engraçadas e do pitoresco de “papai Clark”: o riso ainda é promessa no descompasso entre o exterior das personagens e o papel que pretendem desempenhar. No dia seguinte, encontramos Ogden de smoking, no divã de sua cabine, emergindo de uma pesada embriaguez, ao passo que o navio já levantou âncora. A situação tende pouco a pouco ao grotesco. Hudson, o camareiro (Patrick Cargill), trata de pôr ordem nas ideias e na toalete do patrão. Solenemente, retira-lhe as calças, enquanto o outro veste recatadamente um robe de chambre. Primeira gag verdadeira: Ogden abre um armário e volta a fechá-lo, dizendo: “Perdão!”, dá um passo atrás, se detém, retorna até o armário e nele descobre Natascha em vestido de noite. Ela não encontrara modo melhor de entrar nos Estados Unidos clandestinamente. Ele tenta explicar-lhe que aquilo é uma loucura, enquanto a conversa deles é incessantemente interrompida pelas entradas intempestivas de Hudson, de Harvey, do garçom trazendo o café da manhã (com o qual Natascha se regala, sem ligar para o fato de que o destinatário supostamente ainda não curou sua ressaca). É, sempre, a fuga desesperada da passageira clandestina para o seu esconderijo e o pânico do diplomata, que, irritado, acaba chamando o comissário-de-bordo. Porém, quanto este chega, ele se contenta em lhe perguntar qual é a próxima escala, e, assim que o homem se vai, propõe, até lá, uma trégua a Natascha.

A hora de dormir nos fornece alguns quadros de franco estilo burlesco. Ogden oferece seu quarto à Condessa. Ele vai dormir no sofá da sala e lhe empresta um pijama que nela sobra ridiculamente. Novas incursões de intrusos durante as quais acontece, sempre com a mesma precipitação, a troca dos quartos e camas. No dia seguinte, pela manhã, prossegue o jogo com o camareiro. Chegaram à escala, mas Natascha não quer sair de vestido longo. Ogden vai comprar para ela um vestido numa galeria do lugar: a roupa é exageradamente grande. Irritado com a lentidão da moça enquanto Harvey vem anunciar a chegada de um grupo de jornalistas, Ogden ameaça arrancá-la à força do pijama e a persegue, acuando-a atrás de uma porta e arrancando-lhe uma manga…

A Condessa conseguirá permanecer a bordo, mas não sem ter sido descoberta por Harvey, que acha que só se livrará dela à base de dinheiro. Trabalho perdido. Com o mar jogando, vem a cena cômica de enjoo, que evoca O Imigrante (The Immigrant, 1917). O próprio Chaplin faz então uma breve aparição sob os traços de um mordomo. À noite, nova complicação: visita de um bombeiro hidráulico. Natascha não tem outra saída a não ser subir e se misturar à multidão de dançarinos. Ela dança com Ogden, depois com o capitão, que a toma pela passageira que não saíra da cabine desde o início da viagem. Um indivíduo escuso, que a conheceu em Hong Kong, a aborda: ela consegue se livrar, ajudada de maneira bem engraçada por Ogden e Harvey. A cena transfere-se por um momento para a cabine da famosa passageira que não sai. É uma adorável velhinha (Margaret Rutherford), cuja suave loucura permanece indiferente à avalanche de presentes destinados a Natascha. Mas eis que chega a notícia de que Mrs. Mears está à espera de seu marido em Honolulu, escala seguinte. Insensivelmente, o tom passa ao grave. Ogden vai dar a má notícia a Natascha e se emociona em seus braços. É uma verdadeira declaração de amor: não pode viver sem ela, vai convidá-la a ir para a Arábia, quando sua mulher estiver em Paris fazendo compras etc.

Porém, para legalizar a situação sempre irregular da Condessa, há apenas um meio, sugere Harvey: é que ela se case com um norte-americano – Hudson, por exemplo. O camareiro presta-se sem pestanejar ao subterfúgio, e o burlesco faz reaparição ruidosa na “noite de núpcias”. Hudson dorme em uma das camas de solteiro e Natascha na outra. O homem, perturbado, faz caras entre amuadas e lúbricas e todo tipo de palhaçada, revirando toda a roupa de cama, até a chegada de Ogden, que, convencido de que sua mulher não subirá a bordo antes do dia seguinte, decide se reapossar de seu leito. O camareiro sai. Os namorados ficam sós…

No dia seguinte, novos aborrecimentos para Natascha. Os serviços de imigração exigem seus documentos. Cansada da guerra, acuada de todos os lados, pois Mrs. Mears acaba de chegar, pula no mar. Podemos vê-la em seguida, em uma estrada havaiana, pedindo carona. Mas Harvey logo a encontra, ociosa em certa praia. Compra-lhe uma roupa, que ela vai vestir na cabine. Depois leva-a até o Grande Hotel e lhe reserva um quarto, fazendo-a passar por sua mulher. O vestido, desta vez, é pequeno demais: um botão está saltando.

Ogden e sua mulher encontram o falso casal. Harvey convida Mrs. Mears para dançar a fim de que os namorados possam conversar. Ogden reitera a Natascha sua promessa de levá-la à Arábia, mas, para não o comprometer, enquanto ele queria dançar, ela se esquiva antes mesmo que os outros dois voltem à mesa.

A embarcação vai partir. Na cabine, Ogden está sentado, prostrado, enquanto a mulher arruma seus pertences. Ela descobre o gigantesco sutiã comprado para Natascha junto com o vestido folgado. É a última gag do filme. Os cônjuges ajustam as contas com algumas réplicas decisivas, e chega o fim, patético em sua extrema simplicidade. Da cabine, somos transportados ao Grande Hotel. É noite. Natascha, sentada em frente a um compartimento envidraçado, contempla o barco, todo reluzente, em vias de aparelhar. Mas eis que percebemos, do outro lado do imenso hall, Ogden em companhia de Harvey. Pede a um maître que o conduza até a Condessa. Através de uma massa de dançarinos e do trêmulo dos violinos, ele consegue chegar até ela. A Condessa se volta, ele a toma nos braços, e os dois põem-se a dançar…

Essa comédia sentimental se assemelha a mil outras com a marca de Hollywood. Não se trata mais de uma fábula, como antes, mas de uma historieta simples, em que a psicologia prevalece nitidamente sobre a moral. O diálogo, até aqui medido pelo conta-gotas, e sem qualquer outro papel didático, flui num curso normal e brilha por uma virtude cômica própria. Pensamos em Lubitsch, em Cukor ou, mais precisamente, em Hawks (A Noiva Era Ele [I Was a Male War Bride, 1949]) ou Minnelli (Teu Nome é Mulher [Designing Woman, 1957]).

Deveríamos pensar que Chaplin, cansado de caminhar solitariamente, com a inspiração esgotada, tenha enfim se resignado a seguir a moda que ele achava estar em voga e que não passava, em 1966, daquela da véspera, se não da antevéspera? Nesse caso, A Condessa seria a coisa mais melancólica do mundo, pois uma das marcas mais evidentes do gênio de Chaplin, a partir do cinema falado, era não dever nada a ninguém, ignorar esplendidamente a evolução da arte do filme. E, nessa perspectiva, poderíamos criticar o cineasta justamente por ter se deixado arrastar num empreendimento que, se não mancha sua antiga glória, priva sua carreira do belo final que merecia (e que aliás teve, para Bazin, não com Um Rei, mas com Luzes da Ribalta).

Observemos, todavia, embora esta seja uma base fraca para a defesa, que o projeto da Condessa data de 1937 e que não passava de um entre outros roteiros que Chaplin tinha em suas gavetas e dos quais se propunha a tirar um segundo Casamento ou Luxo?, isto é, um filme cujo protagonista não seria mais ele próprio.

Porém, deixemos de lado as circunstâncias atenuantes e abordemos a questão de frente. Vamos admitir: de nossa parte, enaltecemos como um trunfo de A Condessa de Hong Kong aquilo que em geral lhe é criticado. A estranheza da obra anterior nunca nos pareceu ter mérito suficiente, jamais podendo ser considerada original. A verdadeira originalidade dos Verdoux e companhia existe além de sua estranheza – que exprime sobretudo uma falta, uma dificuldade de adaptação –, e, inclusive, a despeito dela. A Condessa não se distancia mais da comédia norte-americana do que os Carlitos se distanciavam de Mack Sennett. Ela tem seu lugar, digamos, ao lado de O Esporte Favorito dos Homens (Man’s Favorite Sport?, Howard Hawks, 1964), assim como Em Busca do Ouro (The Gold Rush, 1925) ao lado de A General (The General, Buster Keaton & Clyde Bruckman, 1926). Que Chaplin, em seus velhos dias, tenha manifestado o desejo de voltar às fileiras de onde saiu e em que prestou brilhantes serviços, isso é, claramente, marca antes de humildade que de rendição.

Um dos méritos do filme é demonstrar que a situação de Chaplin é menos excepcional do que se pretendeu. Prefiro fazer dele um dos mais belos florões – e não o único – de uma arte que talvez seja (dixit Bazin) a do século XX (portanto o mais fecundo e rico em talentos), logo, como pensaram muitos literatos, a exceção feliz no seio de um modo de expressão menor e balbuciante. Em todo caso, presta-se a ele um mau serviço continuar a ver nele esse monstro sagrado que se tornou sob o impulso interno de seu mito. Sejamos-lhe gratos por nos estender a mão e se apresentar pela última vez a nós sob a aparência furtiva e simples de um mordomo. Uma vez que ele nos entrega assim a nu sua direção, antes afogada nas brumas da mensagem, em vez de cerrarmos os dentes, mordamos a isca que ele nos lança.

Seria bom que a carreira da maior personalidade cômica da história do cinema terminasse com uma gargalhada – franca, rica, infantil, como provocavam os Carlitos. Chaplin só redescobre sua veia cômica sob o preço de um sacrifício agora total. De Tempos Modernos a Luzes da Ribalta, Carlitos morre por etapas, conservando ainda seu bigode em O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940), aparando-o para Verdoux, não conseguindo, no rosto glabro de Calvero, apagar completamente a lembrança do homenzinho de chapéu-coco. E eis que em Um Rei em Nova York surgia um Carlitos do além-túmulo, uma Sombra, um Zumbi. Sob todas essas encarnações, o anacronismo da personagem, homem de caras e bocas, num mundo da palavra, cortava o riso.

Carlitos morreu, permanece a gag, mas nova dificuldade. Estamos longe da riqueza abundante dos anos 1920. Não é que nosso riso não seja solicitado em diversas passagens, e mostraríamos muita má vontade se nos mantivéssemos pétreos, pois a piada, às vezes bem velha, é introduzida com uma leveza, uma desenvoltura, uma elegância que a rejuvenescem. Não há gags na maior parte do tempo, mas antes tiradas, insinuações maliciosas, trotes de alegres farristas, como as peças que Harvey prega no ex-companheiro da Condessa – a gota d’água na gola e o golpe do “encontro”.

Mas deixemos de lado essas ações paralelas, que se integram facilmente em um contexto realista, para nos determos nesse monstro quase pré-histórico que defende ciosamente aqui seus últimos centímetros de território contra o assalto da Verossimilhança. De fato no filme inteiro há apenas duas gags verdadeiras, ambas complacentemente repetidas. A primeira, mais convencional, é a abertura da porta da cabine que desencadeia automaticamente uma reação de fuga representada com exagero. A segunda, de aparência menos tosca, relaciona-se ao vestuário, ou, mais exatamente, ao vestir e despir. Ambas representam a mesma motivação psicológica: o temor de uma intimidade violada, de uma nudez desvelada, pois nem os lugares se adaptam à situação, nem as roupas ao corpo.

O que faz rir não é o efeito físico em si – e, nesse caso, a invenção seria das mais pobres –, mas a forma como é recebido no pensamento da personagem, e, por consequência, no do espectador. Quanto mais o fato é simples e igual a si mesmo, mais a ideia se revela sublime e a cada vez diferente. O “psicologismo” do cinema de Carlitos – em que todo elemento visível é apenas indício de um pensamento, deflagrando em nosso espírito um processo de associação que adquire vida própria e vai correr em nossa cabeça paralelamente às sensações recebidas da tela – parece aqui em plena evidência e combina melhor com o tom, os diálogos e as situações da comédia intermediária do que com o moralismo das penúltimas obras, em que a moral só aparecia com a suspensão da direção.

O gênio destruidor de Chaplin, com Carlitos previamente eliminado, irá se exercer sobre a gag, mas sem atingir o aniquilamento total. Mesmo desmantelada, arremedada, desonrada, ridicularizada, a gag continua a parecer como elemento deflagrador do riso, mas este, uma vez lançado, voa com suas próprias asas, atravessa com maior ou menor facilidade o abismo que separa o mundo burlesco, de onde brotou, do universo cotidiano, onde desemboca e repercute. Vê-se que Chaplin, longe de se considerar agora o único e de propor soluções que valem apenas para si, promovendo um ajuste de contas de Chaplin com Carlitos – ao passo que as contas que nos interessam são as do cinema com o cinema, do falado com o mudo –, apresenta muito humildemente sua resposta à pergunta das perguntas, para qualquer um que tenha praticado – ou amado – o cinema de antes de 1930 e ainda pretenda praticá-lo – ou amá-lo: como conciliar o espírito da gag, seu aspecto fantástico e sua poesia com o naturalismo requisitado pelo cinema atual?

Pois não é que a expressão visual seja sobrepujada pela presença do som: há audiovisuais bastante eficazes, por exemplo, nos Irmãos Marx. O antagonismo não é entre som e imagem, mas entre um espaço-tempo reconstruído, dominado, se não falseado, e um mundo que se apresenta, ainda que não o seja, como um decalque exato da realidade, que, a princípio, “não é engraçada”. Em suma, em vez de ser a lei corrente, ela será exceção, rangendo no filme, ao passo que outrora cantava.

A Condessa é ao mesmo tempo mais burlesca e mais realista que a maioria das comédias norte-americanas e, melhor que estas, consegue casar os inconciliáveis. O burlesco, no filme, parece resultar não da vontade de um autor que bruscamente optasse por mudar de registro, mas de um capricho, até mesmo de uma necessidade das coisas mesmas, que, sob o efeito de uma causa insólita, tornam-se verdadeiramente burlescas. Burlesco é o gesto do homem que tem medo, pois o medo impõe um ritmo ao gesto que sai da norma: por exemplo, as fugas desesperadas que se produzem a cada abertura de porta. A exacerbação da representação não é efeito de estilo, mas fruto de uma contradição do ser humano, que, despojado da máscara social que lhe servia como segunda natureza, tem dificuldades para encontrar a si próprio. Toda a comicidade de A Condessa de Hong Kong repousa no desmoronamento da fachada das conveniências. O tema não é novo, esteve inclusive muito na moda na época de Capra, mas aqui a verdade que a mentira cotidiana esconde toma o aspecto de falsidade para o nosso olho habituado à falsidade. O medo ou a lubricidade revestem-se de formas fantásticas, inverossímeis, porque justamente todas as coisas naturais são, em nosso mundo artificial, algo inverossímil.

Vamos adiante. Nascida unicamente dessa contradição, a comicidade seria breve, terminaria logo, não deixando, como a de Um Rei em Nova York, senão um gostinho prévio de amargura. Porém, como vimos, se a gag é ela própria cerrada, concisa, resumida (tanto no espaço como no tempo), isso não a impede de estender seus tentáculos ao infinito, não materialmente, pelo engendrar de novas gags repercutindo em cascatas e provocando cascatas de riso, mas virtualmente, pelo fluxo de pensamento não menos em cascata que a imagem furtiva provoca. Esse pensamento – expectativa, previsão, prognóstico – faz mais que congelar um sorriso perpétuo em nossos lábios. Ele provoca um riso, riso de cabeça, não de diafragma, mas não menos físico, não menos extenuante.

A estrutura dos filmes de Chaplin é monódica. A leitura deles se faz horizontalmente, seguindo-se o curso de uma melodia, por exemplo a executada por um violino, o violino de Carlitos. Melodia ora sustentada, ora relaxada, ora lenta, ora apressada, ora despojada, ora enriquecida de variações, cadências, arroubos. Aqui também temos monodia, porém mais seca, mais pobre: ficamos sensíveis menos à própria linha que à qualidade do som e à riqueza de seus harmônicos naturais. O riso não é tão límpido, tão nítido, tão incisivo como na exibição de Carlitos (e também temos nele, como assinalava Bazin, diversos exemplos de risos de “reflexo”), mas nem por isso acanhado, como se tornou mais tarde. É frequentemente “doloroso”, o que exige de nossa parte uma profunda tensão de espírito, mas dele nada se irradia de sombrio. Ele nos propicia a dúbia, contraditória e reconfortante impressão de que as coisas nos transcendem – e merecem nossa atenção – e que transcendemos as coisas – e portanto as merecemos. Em Verdoux, em Um Rei em Nova York, rimos, mas um riso que nos congela e nos dá vergonha, um riso obrigatoriamente breve, uma vez que seus prolongamentos são trágicos. Aqui, ao contrário, o próprio eco remoto das gags vem colorir com alegria os gestos mais cotidianos dos heróis.

Dito isto, não se ri o tempo todo em A Condessa. Chaplin, quando quer, sabe cortar o fio do riso, como o vimos fazer em Em Busca do Ouro ou em Luzes da Cidade (City Lights, 1931), e abrir amplamente as portas ao fluxo do enternecimento. Não uso a palavra de modo pejorativo. Por que querer mal ao autor por nos surpreender em lágrimas, quando soube manipular nossos risos? E o faz também, com tal sutileza, tal progressão, tal economia de meios que, também sob esse aspecto, não conseguimos desmontar seu mecanismo: pois a força persuasiva da música, por mais presente que se faça aqui, não explica tudo. Em suma, como nos Carlitos, a personagem, que ganhara nossa simpatia fazendo-nos cúmplices de suas estripulias, revela-nos imperceptivelmente o drama de sua solidão e, é natural, nossos olhos ficam úmidos.

Mas, na verdade, quem é a “personagem”? Aquele que, sem dúvida alguma, figura no título do filme: a Condessa, a mulher (uma mulher também era protagonista de Casamento ou Luxo?, em inglês A Woman of Paris). Ao dizermos que Carlitos estava ausente desse filme, fomos um pouco precipitados: Carlitos, aqui, é Natascha. Algumas gags relativas ao vestuário o provam: o chapeuzinho-coco no qual a heroína corre para vomitar, os vestidos alternadamente grandes ou pequenos demais, e sobretudo o pijama com o qual, atrapalhada, Sophia Loren imita abertamente Carlitos, tornozelos juntos, pés afastados. E esses disfarces grotescos em nada tiram a graça da atriz, de sua feminilidade intensamente realçada. Não é a mulher que aparece masculinizada, nesse travestimento, mas, em retrospectiva, Carlitos feminilizado. Essa incerteza quanto ao sexo não desemboca em nenhum erotismo, seu tom permanece infantil, delicado. Porém, mais profundamente, o caráter andrógino de Carlitos (revelado em certas caras, pudores, contorções) postula uma aspiração para esse ser humano “total” impossível ao macho ou fêmea com tipos nitidamente delineados. Essa idéia está, por sinal, subjacente na mitologia puritana anglo-saxã: a exibição das características do sexo é ridícula, ao passo que os latinos gostam de se exibir de maneira ostensiva. Os parceiros masculinos de Carlitos, seus desafortunados adversários, são todos extremamente fortes. Em contrapartida, as mulheres, tanto as megeras como as delicadas noivas, nunca exibem a feminilidade exacerbada, quase monstruosa, que será aquela, nos últimos belos dias de Hollywood, das Jayne Mansfield, Jane Russell, Marilyn etc.

Em A Condessa, o bruto masculino é Ogden, é Brando, ridículo com sua obstinada arrogância, a bestialidade que brota sob a roupa do diplomata. E o intérprete dá um toque na personagem que não teria sido dado por Gary Cooper, para quem o roteiro fora escrito. Para começar, a envergadura do ator pesa poderosamente sobre um papel cujos mínimos movimentos vão se inscrever em um quadrado, ao passo que o de Sophia Loren se envolvera, com igual rigor plástico, no registro das curvas.

Mas a “charge”, por mais nitidamente desenhada, só faz valorizar mais – e este é o milagre do filme – as graças masculinas e femininas de ambos os atores – que são precisamente aqueles cujo físico e seu uso comum expõem-se muito particularmente aos perigos do ridículo. A postura é sempre ingrata, o gesto sempre belo. Que elegância e que acumulação de feiuras! A mulher em suas corridas precipitadas, seus trajes ridículos. O homem, em seus arrotos, bocejos, seus nus tristes. Porém, superando a amargura de Um Rei em Nova York, que nos deixava à volta com nossos desgostos, A Condessa redescobre o antigo otimismo de Carlitos, só nos apontando os desconfortos de nossa condição para melhor realçar sua insignificância em relação ao fluxo impetuoso e sereno de nossa vitalidade profunda, que dispersa e afoga em suas altas ondas todo o mofo de nossas pequenas misérias. É intencionalmente que fazemos de ligação que mostram o mar batendo no casco do cargueiro. Imagens destinadas, assim como a locomotiva de Monsieur Verdoux, a marcar a fuga do tempo, mas, já nesse último filme, de forma menos “abstrata” do que imaginava Bazin.

Quanto a mim, fui menos sensível ao artifício bem banal de narração que à irrupção impressionante – com a música, por sinal, ajudando – da grande natureza no interior do mundinho do cargueiro, que manifestamente o ignora e lhe vira deliberadamente as costas. Essa natureza, que fará uma segunda e breve aparição sob o aspecto da praia havaiana, nós já vislumbráramos no desvio das peregrinações de Carlitos, e é com uma imagem dela particularmente forte que ele põe, em Tempos Modernos, o ponto final em suas aventuras.

Paradoxalmente, o ator Chaplin impedia, nas obras do cinema falado, nossa reconciliação com o mundo. Talvez porque a presença desse herói fabricado, e ainda não aceito, como era Carlitos, matava no embrião todas as veleidades de aparição da ordem natural. Seja porque assumisse o caráter odioso da humanidade, seja porque buscasse chamar toda a responsabilidade para si, ele não encontrava nada na balança – ser insignificante num mundo insignificante. Aqui, pela intercessão da Mulher, a personagem redescobre sua realidade, sua carne e, ao mesmo tempo, o mundo.

Um relance sobre os segundos papéis confirma essa impressão. Se Harvey nunca faz careta, Hudson, em contrapartida, mantém-se do começo ao fim no registro cômico. E, como suas aparições são ora simultâneas, ora imediatamente sucessivas, eles contribuem para manter o clima de troca entre o natural e o artifício. Quanto às mulheres, são todas bonitas e maltratadas. A esposa do herói não é mais a matrona bigoduda de Dia de Pagamento (Pay Day, 1922), mas a bela Tippi Hedren. Nesse filme, o mais desgracioso alcança a graça; o gracioso, em contrapartida, conhece a desgraça completa. Outro exemplo: a moça idiota, peremptória, e que só tem na boca seu “Papai acha que…” Sua graça está nas palavras, salvo a gag breve, rudimentar, eficiente, do transistor, suscitando nos que dormem à tarde a mesma reação de pânico que as aberturas das portas na cabine. Se a juventude parece condenada – a despeito das aparições não menos encantadoras das quatro filhas de Chaplin –, o preço do perdão prescreve na deliciosa octogenária que, em consequência de um engano, recebe os presentes, flores e chocolates destinados à Condessa. Ela nos dá não um espetáculo aflitivo de um “retorno à infância”, mas o de um capricho que só tem igual na primeira idade, uma loucura diante da qual a razão adulta não tem voz. Semelhante a Carlitos, Mrs. Gaulswallow vive no mundo do puro desejo: onde desejo e realidade se confundem. Ela faz da realidade seu sonho sem precisar sonhar literalmente, como o herói de Idílio Campestre (Sunnyside, 1919).

Se existe uma mensagem no último filme de Chaplin, talvez seja aí que convenha procurá-la. Eis que, aos oitenta anos, esse homem solitário, orgulhoso, sempre ocupado consigo mesmo, que considera nulo o que não é de sua lavra, um misantropo (pelo menos segundo a lenda), nos fornece a prova de que a vida está longe de ser tão triste como, até aquele momento, ele achava ser a vida que ele devia nos mostrar – com a condição de que saibamos olhá-la com o mesmo desapego que a velha dama, com a mesma doce loucura.

(Charlie Chaplin, por André Bazin. Paris: Éditions du Cerf, 1972; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, pp. 99-114. Traduzido por André Telles. Revisado por André Barcellos e Valeska Silva)

COMPARTILHE: