Uma análise dos primeiros longas-metragens do diretor italiano
por Miguel Forlin
No ensaio “Lembrete sobre Antonioni nos anos 1950”, Lino Miccichè escreveu o seguinte: “ (…) Antonioni é, na realidade, um dos poucos cineastas italianos que nos anos 1950 não se deixaram envolver em trépidas evocações ou em róseas consolações, esmagar de desilusões lacrimosas ou de rendições incondicionais, enganar através de modas convicentes ou astúcias mercadológicas. Inicia e leva adiante um discurso personalíssimo, tão estrito quanto agudamente relacionado com os humores, as tendências , contradições e agitações daquelas temporadas”.
Nas características descritas por Miccichè como opostas às de Antonioni, encontra-se uma crítica aos anos que testemunharam o renascimento da indústria cinematográfica italiana e a expansão dos produtos massificados. Nesse cenário de convulsões culturais, os cineastas Roberto Rossellini, Vittorio de Sica e Luchino Visconti já tinham abandonado a estética do neorrealismo e alçado voos artísticos individuais, preferindo direcionar as suas lentes para os melodramas e a história italiana. Entre essa tríade e o cinema caracterizado pelas comédias e os excessos narrativos, encontravam-se os diretores Federico Fellini e Michelangelo Antonioni.
No entanto, se o “discurso personalíssimo” mencionado por Miccichè podia ser notado quase que inteiramente nas primeiras obras de Fellini, ele não é plenamente visível nos longas iniciais de Antonioni. De fato, diante da produção comercial típica da época ? com a exceção óbvia do material criado pelo trio Rossellini/Sica/Visconti ?, o cineasta de Ferrara introduzia aos poucos um discurso próprio, uma voz diferente. Porém, se comparados ao que seria produzido pelo próprio diretor a partir da década de 1960, os seus primeiros longas sofriam do didatismo realista e da ideologia de classe presentes nos curtas realizados no começo da carreira.
Como quase todos os grandes cineastas do pós-guerra, Antonioni também fora influenciado pela teoria marxista, e esse talvez tenha sido o principal motivo a fazê-lo se aventurar na seara do neorrealismo ? além, é claro, das facilidades profissionais provenientes de uma imersão na estética mais revolucionária dos anos 1940. Realizando curtas-metragens e trabalhando como documentarista, ele usou a câmera para captar os dramas dos operários e das classes baixas, que, segundo a sua perspectiva, eram manipulados pela burguesia para que esta reconstruísse, dos escombros da Segunda Guerra Mundial, o império financeiro que caracterizaria a retomada industrial do país.
Todavia, nos seus primeiros longas-metragens, torna-se perceptível um processo de problematização, interno e externo. É importante lembrar que Antonioni nasceu em uma família de classe média, foi jogador de tênis na juventude e se graduou em Economia na Universidade de Bolonha. Portanto, a realidade retratada por ele em curtas como Gente do Pó e Limpeza Urbana não era a mesma que vivia cotidianamente.
Assim, ele sabia que para atingir a genuinidade artística era necessário olhar para si mesmo e para a realidade mais imediata em vez de emitir um comentário sobre o comportamento de um grupo alheio ou toda uma nação. Em termos tolstoianos, percebeu que a sua aldeia não era a Itália, mas a burguesia italiana. Resumidamente, o seu começo foi como um cineasta neorrealista, porém, as inquietações interiores e o chamado da verdadeira vocação artística –que está distante das posições políticas – orientariam o seu interesse temático para os problemas emocionais do meio em que nasceu e foi criado. Logo, ele tentou transportar esse raciocínio às suas obras cinematográficas.
Contudo, só se despiria do cinismo e dos resquícios ideológicos na chamada “Trilogia da Incomunicabilidade”, quando olharia para os personagens com a empatia de um artista e não com o ar de superioridade daquele que está pronto para chamar a atenção do próximo. Até lá, confundiria constantemente os sentimentos com as situações externas. Não é à toa que a expressão “neorrealismo interior” foi usada por críticos para caracterizar os seus filmes na década de 1950.
No texto “A aventura de os vencidos”, Stefania Parigi afirma que, nessa fase, Antonioni “mira sempre em colocar as dinâmicas subjetivas que ele tanto estima no quadro da sociedade contemporânea, captando o isolamento e a crise do indivíduo justamente em relação ao mundo que o envolve e determina”. Para ela, o diretor buscava analisar o sujeito enquanto ser social e como isso dialogava com a sua vida íntima. Porém, a autora falhou em perceber que a escolha do verbo “determinar”, comumente empregado na conceituação marxista de mundo, era o suficiente para derrubar a sua tese.
Em Crimes D’Alma, os burgueses são egoístas, vilanescos e o interesse romântico do protagonista o abandona porque o amor é incapaz de suprir a falta de dinheiro (o longa foi feito em 1950, mas, para sumarização, o tratarei como se fosse da década de 1950). Em A Dama Sem Camélias, a ideologia política se transforma em batalha de sexos e a personagem principal é abusada por todos os homens que a rodeiam. Na história de Os Vencidos, a proximidade com a realidade torna-se promíscua e a narrativa foca em jovens que decidem matar apenas por serem ricos. Finalmente, em O Grito, o operário sentimental se suicida porque o amor de sua vida o deixou por um homem abastado (a exceção fica por conta de As Amigas, um longa desprovido desse tipo de maniqueísmo comportamental). Em todos esses filmes, os sentimentos se confundem com as relações de poder entre classes e são completamente determinados pelas situações, como se os seus portadores fossem apenas vítimas das engrenagens sociais.
Essas experiências cinematográficas não transmitem a sensação de que Antonioni compreendeu uma parcela da realidade e tentou expô-la através da arte cinematográfica. Pelo contrário. A impressão é de que ele tentou condicioná-la à sua visão de mundo, manipulando-a de acordo com a agenda política mais rasteira. Se, por vezes, essa manipulação parece recriar fatos da condição humana, é porque os visíveis avanços técnicos e narrativos do diretor foram capazes de escondê-la.
Certa vez, Ítalo Calvino descreveu Antonioni como um “relator amargo”. Realmente, se pensarmos nos filmes que seriam realizados a partir de 1960, quando o diretor abandonaria o azedume ideológico e se especializaria em detectar o sentimento dominante nos seus personagens, refletindo-o no andamento e na atmosfera da narrativa, os termos usados pelo escritor se encaixam perfeitamente. É inegável que seria na cumplicidade amorosa entre o olhar de observador e o objeto analisado que nasceria o seu estilo e sensibilidade. No entanto, na década de 1950, antes de atingir o auge de sua carreira, quase tudo o que existia em suas obras eram críticas sociais vazias, sarcasmos e cinismos.
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