Uma análise da Trilogia da Incomunicabilidade
por Miguel Forlin
“O O O O este Rag shakespeaéreo
– Tão elegante
Tão inteligente
“Que farei agora? Que farei?
Sairei às pressas, assim como estou, e andarei pelas ruas
Com meu cabelo em desalinho. Que faremos amanhã?
Que faremos jamais?””
No fim da década de 1910, o escritor norte-americano T. S. Eliot começou a escrever o poema “A Terra Desolada”. Ainda buscando as características que definiriam o seu estilo literário, ele viu na destruição do pós-guerra os elementos necessários para a concepção da estética do fragmento, na qual os estilhaços existenciais, morais e culturais do povo europeu culminavam em uma colagem quase incompreensível de versos soltos e vozes dissonantes, uma espécie de Torre de Babel em que Shakespeare se transformava no adjetivo de uma canção popular e a maioria das falas exalavam um desespero assustador.
De maneira similar, pode-se dizer que Michelangelo Antonioni se apropriou desses mesmos elementos na hora de conceber a Trilogia da Incomunicabilidade. Depois de ter abandonado a estética do neorrealismo, olhado para a sua própria classe e visto apenas resquícios de uma culpa social, ele adotou a postura de um observador frio e enxergou na burguesia os lamentos de uma civilização em prantos, sem os cinismos e sarcasmos típicos de outrora.
No entanto, os analistas de sua obra costumam associar as dores retratadas nos três filmes a um possível mal-estar econômico, político e tecnológico, como se o deslocamento emocional dos personagens fosse intrínseco à classe da qual fazem parte e à alienação proveniente de uma humanidade cada vez mais automatizada. Enzo Paci, no ensaio “Debate sobre O Eclipse”, faz a seguinte afirmação sobre a famosa cena da Bolsa: “(…) o dinheiro transforma os homens em máquinas ou animais e essa transformação em máquinas ou animais faz parte do processo que conduz à coisificação”. Guido Aristarco, por sua vez, no texto “Crônicas de uma crise e formas estruturais da alma”, para descrever “a obviedade dos homens sem qualidade” de Antonioni, empregou uma frase de Gustave Flaubert: “Esta noite, estou tão esgotado que não arrisco a pegar a pena: é o resultado do tédio que adquiri com a vida de um burguês. O burguês me torna fisicamente intolerável. Vou começar a gritar”.
Curiosamente, empregar essa lógica determinista na hora de analisar o filme de 1963 ? ou qualquer um dos dois anteriores ? é o equivalente a colocá-lo no mesmo grupo constituído pelos longas-metragens da década de 1950. Sob essa ótica, os únicos avanços alcançados pelo diretor foram de ordem técnica e não temática, o que é uma visão reiteradamente negada pela clara maturidade das obras realizadas no início dos anos 1960. Além disso, adotar essa interpretação é incompatível com a abordagem do próprio cineasta, que se valeu de um olhar muito mais empático do que crítico, buscando compreender do que maldizer.
Dessa maneira, fica evidente que tanto Paci quanto Aristarco, ao recorrerem à descrição politicamente enviesada do conceito “burguês” ? como se ele sozinho fosse suficiente para justificar um retrato dos sujeitos que presumivelmente o compõem ?não só estacionaram em um ponto superado por Antonioni já no começo da década de 1960 como também fecharam os olhos para a verdadeira proposta do diretor: enxergar nos primórdios da burguesia italiana a origem dos males que assolavam a classe na contemporaneidade.
A partir dessa perspectiva, fica evidente que o interesse de Antonioni não era político, social, econômico ou até mesmo psicológico ? era cultural. É importante lembrar que durante o Ressurgimento, nos anos que levaram à proclamação do Reino da Itália, a aristocracia foi obrigada a abandonar o seu papel de guardiã dos bons valores e da alta cultura e vê-lo ser exercido pelos jacobinos, republicanos e democratas cujos filhos seriam os burgueses dos anos seguintes (uma ilustração perfeita desse momento é o diálogo do Príncipe de Salina com Tancredi Falconeri antes de este se juntar à revolução garibaldina em O Leopardo, filme de Luchino Visconti baseado no romance de Lampedusa). Assim, nas décadas seguintes, entre guerras, tentativas de democratização e surgimento da doutrina fascista, essa nova classe social lutou para encontrar a própria identidade.
Eventualmente, acabou se tornando uma nova aristocracia, exercendo um papel idêntico ao da inicial, com exceção da roupagem que acompanhava as exigências da sociedade capitalista (“Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”, diria Lampedusa). Portanto, não é de se estranhar que nesse longo processo de reinvindicação e autoconsicientização os burgueses tenham saído completamente destruído das duas guerras mundiais. Quando finalmente encontraram o seu “eu coletivo”, a Europa desabou, levando com ela todas as características identitárias.
Todavia, assim como Eliot, Antonioni analisa essa desolação do ponto de vista cultural, vendo nos escombros físicos os fragmentos de um império artístico devastado. A burguesia, detentora desse patrimônio, descobriu que mais de vinte séculos de sabedoria não foram suficientes para impedir o homem de se aniquilar quase que completamente, não apenas uma, mas duas vezes. Deste modo, entre o apogeu da espiritualidade humana e o mergulho definitivo na total destruição, encontrava-se o burguês e sua culpa por não ter conseguido impedir as catástrofes mesmo quando tinha em mãos o espelho para refletir a vergonha dos homens.
Foi por causa dessa relação íntima entre a burguesia e a alta cultura europeia que, na trilogia, o vazio existencial encontrou um paralelo na própria arte. Em A Aventura, a falta de sentido existencial dos personagens se reverte em uma narrativa cuja resposta final (a revelação de um paradeiro) nunca vem; no filme A Noite, o personagem interpretado por Marcello Mastroianni é um escritor ignorante de sua função e incapaz de dialogar com a esposa; por fim, em O Eclipse, na citada cena da Bolsa, os homens se comportam como animais desprovidos de linguagem, e a protagonista, no topo de seu desespero, sonha com a África, um lugar onde o primitivismo que invadira a Europa era muito mais característico.
No entanto, é possível encontrar certo otimismo nisso tudo. É verdade que, ao final de O Eclipse, Antonioni filma uma espécie de apocalipse solar, anunciando um possível fim para a Itália, a Europa e a cultura ocidental. Porém, aquilo que, à primeira vista, pode parecer um comentário niilista sobre a experiência humana no século XX, em uma análise mais profunda, revela uma mensagem: tanto a descoberta estilística conquistada pelo cineasta a partir dessa devastação quanto o desenrolar de sua própria carreira são características de uma postura positiva. Afinal de contas, como a História é uma lembrança constante de que podemos aprender com os erros do passado, a mesma arte que não impediu a destruição pode ser, no futuro, a nossa salvação.
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