O real e a identidade subjetiva na fase final do diretor
por Miguel Forlin
Na década de 1940, durante o auge do neorrealismo, enquanto os principais diretores do movimento retratavam a Itália através de dramatizações, Michelangelo Antonioni realizava curtas documentais . Evidentemente, ele nutria um profundo interesse em captar a realidade concreta sem os artifícios técnicos que caracterizam a narrativa cinematográfica.
Já nos anos 1950, ele começou a realizar longas-metragens ficcionais e, ao relacionar o vazio intelectual e emocional dos personagens ao contexto histórico no qual estavam inseridos, juntou os dois assuntos que lhe eram mais caros: a paisagem ? não somente em suas implicações físicas, mas também políticas, sociais, econômicas e culturais ? e os sentimentos conflitantes dos sujeitos que a compunham.
Na Trilogia da Incomunicabilidade, ele deu continuidade a isso, porém, existia uma diferença fundamental: o despojamento da retórica ideológica. Em “A Aventura”, “A Noite” e “O Eclipse”, ele se afastou da visão indiretamente irônica de antes e adotou uma postura mais distante, calcada na observação acima de tudo.
No entanto, independentemente dessas distinções, todas as obras do diretor contêm um aspecto em comum por detrás: a presença de um artista inquieto em relação aos seus objetos de análise. De fato, Antonioni nunca foi um cineasta acomodado. Nos primeiros anos, se esforçou para compreender a realidade concreta; na segunda década de ofício, tentou assimilar quais eram os sentimentos compartilhados pelos membros de sua classe social; e no começo dos anos 1960, enfim entendeu quais eram esses sentimentos, encontrando também o primórdio de cada um deles. Todavia, ao segui-los às últimas consequências na cena final de “O Eclipse”, se deparou com um Armagedom solar, o qual anunciava tanto o apocalipse cultural da Velha Europa quanto a eclosão da sua proposta temática. Possivelmente, a pergunta feita pelo diretor logo após o término da famosa trilogia foi: “Como prosseguir quando as intenções narrativas se esgotaram em um momento definitivo?”
Não obstante, seria um erro achar que ele deu esse passo desconhecendo por completo os próximos movimentos ? uma prova disso é o curto período de tempo separando o longa de 1963 de “O Deserto Vermelho”. Na verdade, Antonioni seguiu uma certa lógica na disposição dos objetos. Em primeiro lugar, veio a realidade, e, em segundo, o sujeito, com todas as complexidades e contradições que o constituem. Quando os dois se esvaíram simbolicamente, dentro da trajetória artística estabelecida pelo próprio cineasta, restou apenas um caminho a ser seguido: questionar as noções de real e identidade subjetiva.
Filosófica, essa diretriz é inteiramente compreensível, uma vez que a Europa estava se reconstruindo e era essencial que o conceito de realidade ? como sociedade, natureza e estrutura física – e sujeito ? enquanto ser psicológico, ativo e receptivo ? fossem repensados. De certa maneira, é como se o berço civilizacional do mundo tivesse sido destruído e os fundamentos básicos do Ocidente precisassem ser readaptados a um mundo em ebulição criativa. Porém, como esses processos de reedificação já tinham sido iniciados em várias regiões do globo, antes de qualquer nova ação, existia a necessidade de observar e enxergar as possíveis falhas estruturais. Para essa função, entre todos os diretores da época, Antonioni era o mais capacitado, tanto pelo passado como documentarista quanto pela frieza analítica típica do seu estilo.
Essa mudança formal, aliás, foi admitida pelo próprio cineasta no texto “O meu deserto”, no qual ele faz a seguinte afirmação sobre o longa de 1964: “Esse (…) é o meu filme menos autobiográfico. É o filme para o qual mantive o olhar mais para o lado de fora. Contei a história como se eu a visse acontecer sob meus olhos”. Portanto, em “O Deserto Vermelho”, ao narrar ? de uma maneira quase documental ? os dramas de uma mulher neurótica e em constante conflito com a realidade industrial do pós-guerra, Antonioni deu o pontapé inicial da pentalogia que se tornaria o coração filosófico de sua obra.
Durante anos, viajou pelo mundo buscando retratar as tentativas de recondicionamento ontológico e social dos homens. Em “Blow-Up – Depois Daquele Beijo”, no pleno efervescimento da Swingin’ London, usou como ponto de partida um assassinato que pôde ou não ter acontecido para mergulhar em uma cultura emergente caracterizada por alucinógenos, entorpecentes, música alienante, culto ao superficial e comportamento erradio, a qual, no fim, deixou o protagonista em um estado de resignação completa, aceitando participar de um jogo de máscaras em que as ilusões meramente subjetivas dos jovens eram tomadas pela realidade verdadeira (o que rendeu um dos momentos pivotais de sua filmografia: a cena em que acompanhamos uma inexistente bola de tênis).
Em “Zabriskie Point”, pousou nos Estados Unidos e, naquilo que foi uma remodulação momentânea do seu estilo (os tempos mortos e o ritmo lento deram lugar a uma câmera frenética e um andamento relativamente acelerado), se colocou no centro dos movimentos estudantis norte-americanos. Porém, não fez isso para coadunar com algum tipo de discurso. Pelo contrário. Ilustrou ? através de uma distopia psicodélica ?a completa alienação dos estudantes que criavam uma realidade tão insuportável que eles mesmos precisavam encontrar maneiras de escapar dela (a explosão final é muito mais um gesto de aceitação do que de protesto).
Por fim, em “Profissão: Repórter” e “Identificação de uma Mulher”, focou em dois personagens indecisos sobre concepções de identidade. O protagonista do primeiro filme troca de vida com um sujeito fisicamente similar, conhece vários lugares do mundo, se transforma em traficante de armas e morre em um quarto de hotel qualquer, com o rosto escondido e irreconhecível. O do segundo, por sua vez, se vê no meio de uma trama romântica e misteriosa, em que quase tudo se perde em uma barafunda de sentimentos e suspeitas.
Dessa maneira, fica evidente que o desenvolvimento profissional de Antonioni sempre esteve atrelado ao desenrolar histórico do século XX. Quando o seu país se encontrava completamente destruído em razão da Segunda Guerra Mundial, ele ligou a câmera e eternizou o cenário da época; no momento em que se iniciou uma reconstrução, filmou os responsáveis por essa retomada; e quando o Velho Continente desapareceu culturalmente, documentou as engrenagens da contemporaneidade. No entanto, apesar de ilustrar muita confusão, perdição e desordem ao longo da carreira, finalizou a parte essencial de sua obra com a imagem esplendorosa de um sol escaldante, o mesmo que fora eclipsado anos atrás. Diante dessa forte mensagem de otimismo, quem seria capaz de negar que ainda há esperança para nós?
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