por Leandro Oliveira
Filme que adapta um livro, “Morte em Veneza” de Luchino Visconti, de 1971, baseia-se na pequena novela “A Morte em Veneza” do escritor alemão Thomas Mann, publicado em 1913. Thomas Mann era à ocasião da publicação de “A Morte em Veneza” um escritor respeitado: seu romance “Os Buddenbrook” (1901), publicado quando contava com vinte e cinco anos, alçara-o à posição de jovem celebridade nos meios literários europeus. O caso é que, dez anos após este primeiro sucesso, na primavera de 1911, Mann passa por uma não-pequena crise criativa. Interrompe o trabalho sobre suas “Confissões de Felix Krull”, que afinal parece-lhe mais um de uma série recente de projetos frustrados. Antes dele, sua peça “Fiorenza” (1905) deixara o autor plenamente insatisfeito e o romance “Sua Alteza Real” (1909) ficara à sombra do status alcançado pela narrativa da família Buddenbrook.
Sem avançar com o manuscrito de “Krull”, torna-se clara a Mann a necessidade de alguma distração; é quando vem a decisão pela viagem ao Sul da Europa, que finalmente realizaria com a mulher Katia e o irmão Heinrich. Foram primeiro a Brioni, ilha a oeste da costa do Adriático e, considerando-a pouco aprazível, decidem seguir para Veneza. Na Cidade dos Canais hospedam-se no Hotel des Bains, na praia do Lido, entre 20 de Maio e 2 de Junho de 1911.
Tais elementos factuais evidentemente levam o leitor de “A Morte em Veneza” – assim como ao espectador do filme – a questionar-se sobre a identidade do protagonista. Fica evidente que as primeiras referências de trama e elementos fáticos são autobiográficos. Como Mann, Gustav von Aschenbach enfrenta um bloqueio criativo; dos muitos eventos memoráveis e reais espelhados no livro há a viagem a Brioni e Veneza. Mais ainda: sabemos também sobre o extravio da bagagem, sabemos que, como Mann, Gustav von Aschenbach é fruto do casamento de uma burguesia diligente, de pai alemão e mãe com um toque de sangue estrangeiro e pendores artísticos. Ainda: como Mann, Gustav von Aschenbah é um escritor, vive em Munique perto do parque chamado “Englischer Garten” – onde regularmente realiza longas caminhadas na tentativa de relaxar-se das exigências mentais do trabalho matinal. E mais importante: na viagem de Mann ocorre o encontro com uma família polonesa, onde um jovem causa a imediata e decisiva impressão no autor.
Fica evidente que as primeiras referências de trama e elementos fáticos são autobiográficos
Para os leitores dedicados do autor alemão nada disso é surpreendente. Há algo de autobiográfico em Tônio Kroger e, claro, em Hanno Buddenbrook. No caso de “A morte em Veneza”, a esposa do escritor, Katia Mann, diz:
“Todos os detalhes da história, a partir da aparição repentina do estrangeiro pitoresco no cemitério, são fruto da experiência (real) […] ao primeiríssimo dia na sala de jantar, vimos a família polonesa que aparecia exatamente no modo como descrito por meu marido: as meninas estavam vestidas de modo bastante convencional e austero, e o belíssimo e fascinante menininho de treze anos carregava uma farda de marinheiro com gola aberta e brasões muito graciosos. Tomou imediatamente a atenção de meu marido. Aquele menino era extraordinariamente atraente e meu marido o observava com seus companheiros na praia sempre que podia. Não o seguiu por toda Veneza – isso não fez – mas o rapazola o fascinou e frequentemente pensava nele […]”
Das atividades documentadas de Mann quando de sua passagem por Veneza há a elaboração de um breve artigo sobre Richard Wagner, desdobramento da visita do autor ao Festival de Bayreuth, em 1909. Mas trata-se de assunto menor, no quadro geral da produção do período. Seria no retorno a Munique que, quase imediatamente, ele começa a traçar o plano geral da história deste “assunto estranho que trouxe de Veneza, uma novela simples e pura na forma que lida com o caso de um amor juvenil de um artista maduro”.
Quando “Felix Krull” é colocado de lado, o novo projeto acaba por tomar todo seu tempo de trabalho. Em Junho de 1912, um ano após o retorno de sua viagem à Veneza, conclui o livro e sua publicação dá-se primeiramente em partes, entre outubro e novembro do mesmo ano.
Mas não é de Mann que trata o personagem. Ou, ao menos, não apenas dele. A primeira referência que um leitor experiente pode fazer, tanto a partir da atividade profissional quanto da descrição laboriosa feita sobre o protagonista Gustav von Aschenbach, é a de outro Gustav, o novelista francês Gustav Flaubert (1821- 1880), a quem Mann pessoalmente admira e emula. Flaubert é o escritor do “mot juste”, e seu notório perfeccionismo reverbera por todo lado nas passagens do texto em que Mann descreve o trabalho de seu personagem e o rigor de sua personalidade frente a ele como uma tarefa de mártir – autor para quem a graça é alcançada pela perseverança, pela disciplina.
A fortuna crítica aponta ainda outras referências para a construção da figura de Aschenbach, e talvez a mais instigante e hermética seja da figura de August von Planten (1796 – 1835), um poeta alemão homossexual que morreu de cólera em Siracusa, na Itália – lugar para onde havia viajado, provavelmente, em busca de turismo sexual. Sobre ele, Mann escreverá algumas palavras em 1930. De qualquer modo, a figura histórica de August von Planten permite as referências de batismo mais coerentes, dando pistas não apenas ao primeiro nome (“August von” permite por meio de um anagrama imperfeito a construção de “Gustav”) mas sobretudo o sobrenome Aschenbach (literalmente, rio de cinzas), que facilmente se relaciona à cidade de Ansbach – lugar de nascimento de Platen.
E, é claro, entre as tantas figuras históricas a quem Mann faz referência, está aquela de Gustav Mahler. Mann admirava Mahler como aquele a encarnar “a mais séria e sagrada proposta artística de seu tempo”. Anos mais tarde, em carta ao ilustrador Wolfgang Born, o escritor comentaria estar particularmente impressionado pela aparência que o ilustrador dera a seu personagem: parecer-se-ia por demais com aquela do compositor Gustav Mahler e ninguém até aquele momento poderia imaginar que, de fato, Mahler fora uma referência velada para a construção de Aschenbach.
Entre as tantas figuras históricas a quem Mann faz referência, está aquela de Gustav Mahler
“A concepção da minha história, que ocorreu no início do verão de 1911, foi influenciada pela notícia da morte de Gustav Mahler, cujo contato eu tinha tido o privilégio de manter em Munique e cuja personalidade intensa deixou a impressão mais forte sobre mim. Eu estava na ilha de Brioni no momento da sua morte, e segui a história de suas últimas horas nos boletins de imprensa de Viena que foram emitidos e publicados em estilo aristocrático. Mais tarde, estes choques fundiram-se com as impressões e idéias a partir do qual a novela surgiu. De modo que quando eu concebi o meu herói que sucumbe à dissolução lasciva, eu não só lhe dei o nome de batismo do músico, mas também ao descrever sua aparência conferi a máscara de Mahler sobre ele […]”
A coincidência não é, resta evidente, casual. Embora na carta Mann pareça apostar numa certa intuição artística e menos em seus poderes descritivos – ele faz uma saborosa reflexão sobre a natureza da linguagem – o fato é que Born, o ilustrador, se vale sobretudo da última seção do segundo capítulo, passagem do livro em que a imagem de Aschenbach/Mahler é sim francamente detalhada. Se talvez Mahler escapasse da imagem pública do leitor médio, o delineamento físico feito por Mann não poderia escapar a um profissional gráfico experiente.
“Gustav von Aschenbach estava um pouco abaixo da altura média, raspada escuro e liso, com uma cabeça que parecia um pouco grande demais para a sua figura quase delicada. Ele usava o cabelo penteado para trás; era fino ao final, espessa e cinza nas têmporas, emoldurando uma testa robusta arrebitado – se assim se pode caracterizá-la. O nariz segurava um pedaço de óculos com aro de ouro, seu corte na base do nariz grosso, aristocraticamente arrebitado. A boca era grande, muitas vezes negligente, muitas vezes e de repente estreita e tensa; as bochechas magras e franzidas, o queixo pronunciado ligeiramente.”
De qualquer modo, a despeito de todas esta “pistas”, o que não pode ser levado adiante, em nenhuma hipótese, é a ideia que se trata de um livro biográfico – ou autobiográfico. Tais referências imperfeitas são, a meu ver, ponto de ignição para uma narrativa que lida, mais que tudo, com o problema da natureza e condição da Arte e do Belo. A pequena obra de Mann, embora preserve características gerais de uma pequena tragédia, pode ser entendido sem qualquer dificuldade para sua recepção como precursora sofisticada da metaficção – cum granus salis, não por tratar-se de um livro sobre livros, mas na medida em que versa sobre a natureza mesma do objeto literário.
O que não pode ser levado adiante, em nenhuma hipótese, é a ideia que se trata de um livro biográfico – ou autobiográfico
E, neste sentido, tanto faz tratar-se o protagonista da figura histórica de Mahler, von Planten, Flaubert ou o próprio Mann: de fato, entendido como uma reflexão especial sobre o ato poético, o personagem principal do livro é a própria literatura. É isto que justificam não apenas os elementos metalinguísticos do texto mas também, e sobretudo, praticamente todas suas digressões. Elas, ao lidarem com o caráter pessoal de Aschenbach, acabam também por permitir expressar as inquietações pessoais de seu autor frente ao ofício do escritor ou ao seu fracasso. Afinal, Mann tinha, em 1911, trinta e seis anos e um grande sucesso público atrás de si; como não imaginar ecos de suas próprias reflexões em passagens como esta:
“A felicidade do escritor reside no pensamento que possa ser convertido inteiramente em sentimento e no sentir capaz de se tornar inteiramente pensar. Tal pensamento palpitante, tal sentimento exato pertenciam e sujeitavam-se nesses instantes ao homem solitário, mostrando-lhe que a natureza tremia de delícia cada vez que o espírito se curvasse em adoração diante da beleza. De repente veio-lhe o desejo de escrever.”
Ao ler o livro como uma exploração poética sobre a origem e condição existencial da Beleza e sua apropriação pela literatura, “A Morte em Veneza” passa a ser entendido através da tensão entre um protagonista rigoroso e disciplinado contra o elemento natural e maravilhoso (o termo é absolutamente cabível) encarnado por Tadzio – aquele que, em estado puro e involuntário expressa em si o próprio Belo. O antagonismo entre o elemento ético do Belo – ético pois fruto da disciplina, engenho e artifício -, e sua expressão natural é, claro, um dilema de larga história, que talvez possa se entender pela dicotomia entre Clássico e Romântico. Mas Mann cria uma terceira e vigorosa dimensão ao problema para além deste jogo de forças: ao fazer o velho Aschenbach apaixonar-se pelo jovem Tadzio, somos lançados na narrativa de uma tensão obtusa e distinta, aquela do desejo. Parafraseando Lacan, Aschenbach não é sujeito do amor, mas, ordinariamente, a sua vítima. Com o amor de Aschenbach, é claro, somos forçados a conviver em um novo e complexo sistema de variáveis onde o que se questiona não é somente o Belo como matéria estética, mas também o Belo como matéria erótica. Assim, é entre Apolo e Dionísio, mas também entre Eros e Thanatos que é composta “A Morte em Veneza”, a pequena novela de Thomas Mann.
É entre Apolo e Dionísio, mas também entre Eros e Thanatos que é composta “A Morte em Veneza”, a pequena novela de Thomas Mann
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À guisa de intermezzo
“Morte em Veneza”, o filme, assume de forma tão extraordinária a trilha de Mahler que, de fato, para muitos do público, as questões de significado da música são assumidas a partir das referências deixadas pela narrativa viscontina. Entre tantas, talvez a mais poderosa, não à toa, é a referência romântica a tramas ou cenas de enredo gay. Visconti contribui para a história da recepção do pequeno trecho da sinfonia de Mahler que, de modo inequívoco, a despeito de qualquer intenção por parte do compositor, compõe hoje, sobretudo no contexto audiovisual, parte do repertório simbólico romântico homossexual. Muito recentemente, duas citações na cultura audiovisual brasileira reverberaram, neste contexto, o filme “Morte em Veneza” – e não por cenas objetivas, mas sobretudo por meio da música de Mahler.
A transformação do Adagietto em queer music é evidentemente dado recente, e sua origem inequívoca se justifica no impacto imagético da narrativa de Visconti e seu apelo para tramas posteriores. Mas não deixa de ser curioso. A telenovela “Amor à Vida” foi exibida no Brasil entre maio de 2013 e janeiro de 2014. Seus mais de duzentos capítulos culminam – de fato trata-se da última cena do último capítulo – com as pazes feitas entre Félix (Mateus Solano) e o pai, César Khoury (Antônio Fagundes). Na praia, em silêncio, sentados um ao lado do outro e sem olharem-se, ambos dão-se as mãos, ao som do Adagietto de Mahler. A referência à Visconti é evidente – pelos elementos da praia e da própria música. E toda a beleza da cena ganha sua devida leitura exatamente neste contexto: parte da tensão da trama resolvida à ocasião trata da homossexualidade de Félix, fato jamais aceito pelo pai.
A primeira cena de sexo entre dois homens na teledramaturgia brasileira também contou com a obra mahleriana – a meu ver, não por acaso. O capítulo da série “Liberdade, Liberdade” garantiu a liderança isolada da Globo e foi um dos assuntos mais comentados no Twitter, chegando ao Trending Topics mundial. A cena delicada, bem dirigida, mostrava a tensão de dois personagens, André (Caio Blat) e Tolentino (Ricardo Pereira). A dualidade entre desejo e medo era evidente na cena e na trama. Enquanto fazem amor, ou deitados nus sobre a cama com as mãos dadas, a trilha que soa é mais uma vez aquela do Adagietto de Gustav Mahler.
Morte em Veneza assume de forma tão extraordinária a trilha de Mahler que as questões de significado da música são assumidas a partir das referências deixadas pela narrativa viscontina
Trata-se, talvez curiosamente, de uma apropriação brasileira e que, com o impacto dos meios televisivos para um grande público, certamente participará da história da recepção de Mahler no país. Curiosamente, nos trópicos, e a partir de Visconti, ao que parece o Adagietto ficará por muito tempo ligado a um dilema de orientação sexual.
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Mas sendo a novela uma grande e decisiva reflexão sobre a natureza do ofício da arte e da escrita, fica ainda mais desconcertante a decisão de Luchino Visconti em seu “Morte em Veneza”. Transformar seu protagonista de escritor em músico é, antes, ao menos aparentemente, subverter a obra original de Mann em seus elementos mais centrais. Qualquer que seja a justificativa, para o espectador atento, o fato de Luchino Visconti reconsiderar a ocupação do personagem Gustav von Aschenbach não pode jamais ser entendido como um elemento trivial.
Antes de tudo: Aschenbach poderia seguir como escritor no centro da trama de Visconti sem grandes transformações ou comprometimentos para o sentido narrativo do filme. Com exceção de poucas cenas onde a questão musical é mencionada (e poucas delas com relação direta ao enredo em si), as discussões estéticas transpostas para a tela lidam com elementos gerais da arte, lidam com a criação do Belo e suas qualidades desejáveis, quais sejam, a espontaneidade ou o controle: questões que em sua maioria estão previstas no texto de Mann.
Disse “no texto” mas devo corrigir-me: as questões estão previstas nos textos de Mann. “Morte em Veneza” de Visconti, sabidamente, se vale de referências que só poderão ser encontradas em outras publicações de Mann que não “A Morte em Veneza”. Talvez a mais significativa destas passagens esteja na cena em diálogo de Aschenbach e Alfred. Em inquestionável digressão da trama principal, os personagens comentam sobre o Tempo a partir da imagem de uma ampulheta e sua areia que escorre. Esta cena é retirada não do livro homônimo, mas de ”Doutor Fausto ou, a vida de Adrian Leverkühn” (1949) que conta, esta sim, a história de um músico de vanguarda às vésperas da Segunda Guerra Mundial. A passagem é encontrada no capítulo XXV. Importante ressaltar – sobretudo para os estudiosos do filme, mais que do livro – que o texto é dito pelo próprio demônio:
“O tempo é a melhor coisa que costumamos oferecer, e nosso presente essencial é a ampulheta. O conduto pelo qual escoa a areia vermelha é fininho como um cabelo, e o fluxo, tão lento que os olhos nem percebem a diminuição na cavidade superior. Somente quase pelo fim tem-se a impressão de que ele está se acelerando e tudo decorreu muito depressa. Mas, devido à estreiteza da abertura, nesse momento, fica ainda bem distante, de modo que nem vale a pena mencioná-lo e pensar nele já. Eu gostaria apenas de me entender contigo, meu caro, a respeito de um fato: a ampulheta já foi posta em movimento, e a areia começou a escoar.”
Visconti cita-a quase literalmente. Como dito, a cena é criada como uma espécie de digressão da trama principal, algo como a memória de Aschenbach em discussões técnico-artísticas no mundo fora da (ir)realidade veneziana. De qualquer modo, mesmo na passagem citada, é evidente que há pouco especificamente musical a ser usado na trama de Visconti. Deste modo, ainda aqui, a transformação do escritor em compositor, por parte de Visconti, mesmo à luz e relevância desta cena, pode sim seguir sendo entendida como uma decisão arbitrária.
Pode, mas não é. À ocasião do lançamento do filme, a conexão Mahler/Aschenbach há muito fora divulgada, por patrocínio do próprio Mann, e se tornado um fato mais ou menos discutido em ambientes literários. Visconti estava, ele também, atualizado com tais discussões, inclusive comentando que:
“É evidente que conheço tudo o que foi feito, dito e escrito sobre Thomas Mann. É um autor que sempre me acompanhou ao longo da minha vida e das minhas criações. Ele, Proust e alguns outros influenciaram-me muito. Digamos que em todos os meus trabalhos há qualquer coisa ou de Proust, ou de Mann ou de Dostoievski… Mann é um homem fora de sua época e ao mesmo tempo um intérprete profundo de sua época. Não há outro escritor que tenha dado testemunho de uma sociedade burguesa como Mann. Ele foi quem melhor testemunhou as crises dessa sociedade… O tema desta narrativa [de “A morte em Veneza”], ainda que transformado em morte da arte ou preponderância da política sobre a estética, continua presente. Sempre me atraiu a possível divergência entre as aspirações estéticas e a vida de um artista, entre a sua existência, que aparentemente ultrapassa a história, e a sua participação nas condições históricas burguesas”.
Uma tese: Aschenbach-compositor seria um retorno à figura de Mahler, uma das referências de Mann para criação do personagem. Quiçá, uma espécie de “divulgação” deste elemento marginal da concepção do livro. Talvez, mas possivelmente não apenas isso.
Sugiro entender a controvérsia da ocupação de Aschenbach, por Visconti, a partir de dois pontos. O primeiro é talvez o mais instigante. Na segunda cena de discussão entre Alfred e Gustav, o tema versa sobre os valores, positivos e negativos da ambiguidade. Após uma breve interrupção para o serviço de chá, a discussão parece acalorar-se quando Alfred senta-se ao piano e, mostrando os parcos valores conclusivos de alguns acordes, decide invocar uma peça musical. O compositor pede para que Alfred pare, ao que este responde: “esta é sua música!”.
Mas aquela não é a música de Gustav von Aschenbach. Tratam-se dos compassos iniciais de uma peça de Gustav Mahler, o último movimento da Sinfonia n. 4 – retirado, por sua vez de uma das canções do ciclo “Des Knaben Wundehorn” chamado “Das Himmlische Leben” (ou, “A vida paradisíaca”). Que Visconti realize um corte abrupto desta cena para a próxima, apenas para dar ao garçom a deixa em que chama o nosso compositor – pela primeira vez na película – pelo sobrenome (“Senhor Aschenbach, o jantar está de seu agrado?”) é apenas o reforço referencial para o apelo inequivocamente desconcertante à metalinguagem para a ambiguidade presente na própria identificação do personagem. Falava-se de ambiguidade e Visconti a mostra imediatamente: ora, se lidamos com um protagonista que compôs a quarta Sinfonia de Mahler, é evidente que podemos nos atrever a pensar que talvez seja também ele o criador da Quinta Sinfonia. Sim, a sinfonia que compõe a parte mais substanciosa da trilha do filme.
O que nos leva a discutir o segundo ponto. A trilha sonora conta com um leitmotiv, o Adagietto ou quarto movimento da Sinfonia 5 de Mahler. A intenção e contexto imediato de criação da sinfonia seriam elementos absolutamente tangenciais à questão da interpretação do filme de Visconti, não fosse o filme mesmo parte significativa da história de sua recepção. Mesmo a aparente tristeza da obra – que a permite ser identificada em alguns fóruns informais como uma das obras mais tristes da história – acabam por ser contrários ao conteúdo formal e expressivo da peça no contexto de sua criação original. Mahler usa seu Adagietto como uma espécie de intermezzo entre o despontar do amor (terceiro movimento) e a sua celebração (o quinto movimento). Embora possam parecer aparentemente herméticas, essas assertivas são validadas por pesquisas musicológicas e servem de ponto de partida para compreensão da sinfonia.
O Adagietto, como dito, posiciona-se como quarto movimento em uma sinfonia em tudo especial – a começar pela quantidade de seus movimentos, cinco ao invés dos quatro tradicionais. Mahler compôs sua Quinta Sinfonia entre os anos de 1901 e 1902. Foram anos importantes para a biografia do compositor pois marcam sua transição para um estilo diverso – e a Quinta Sinfonia é um dos pilares deste novo estilo.
O período começa com um dos grandes choques de saúde do compositor. No dia 24 de fevereiro, Mahler colapsa por conta de uma crise hemorrágica que o deixa desmaiado entre atos de uma apresentação comemorativa da ópera “Die Zauberflöte” (A Flauta mágica”) de Mozart, na Ópera Imperial de Viena. O ataque é tão intenso que Mahler imagina de fato que iria morrer. Graças a uma constituição forte e um longo período de repouso em sua casa de campo em Maiernigg, o verão garante-lhe a plena reabilitação – de tal sorte que o retorno a agenda de trabalho em setembro diminui apenas à luz das novas demandas, eminentemente criativas do maestro. E é entre esta bem sucedida recuperação e sua consequente retomada profissional e criativa que encontramos a mudança decisiva no estilo de composição de Mahler, mudança que fica explicita nas obras do período – não apenas a Quinta Sinfonia mas também os expressivos ciclos “Rückertlieder” e “Kindertotenlieder”.
Quais são as características desta nova fase? Certamente um certo pessimismo mas, no seu catálogo instrumental, também a opção por narrativas veladas e não tão sediadas nos recursos expressivos literários. Invocamos muito prontamente nesta nova fase uma saudável distância tomada pelo compositor dos poemas folclóricos coletados pelos irmãos Brentano – o já citado “Des knaben Wundehorn” -, que haviam sido usados por Mahler em todas suas sinfonias e praticamente todas as peças e canções, até então. A partir da Quinta Sinfonia, o que vemos é um compositor mais ciente das qualidades extraordinárias da ambiguidade do gênero instrumental, e com isso, uma melhor apropriação da tradição sinfônica em termos mais abstratos.
De qualquer modo, abstração não é em Mahler formalismo. Bruno Walter é o primeiro a fazer referência ao Adagietto como uma mensagem velada. Assistente do compositor por seis anos, Walter comenta ter ouvido de ambos – Gustav e sua esposa Alma – a anedota de que a peça teria sido enviada, antes da publicação ou apresentação pública, como uma carta de declaração de amor, respondida em termos veementes de aceitação por parte da então namorada. O fato dela entender os termos da “carta” demonstra a cultura da interlocutora, por um lado, mas também a engenhosidade por parte de Mahler para apropriar-se de um dos ícones da música de seu tempo, o tema de amor do “Tristão e Isolda” de Richard Wagner. A sinfonia, assim, tendo no Adagietto uma citação quase literal do tema de amor da ópera de Wagner, e começando em seu primeiro movimento “tal como um cortejo fúnebre”, permite a si a atribuição de uma “narrativa” ascensional – da morte ao amor.
Interessa, no entanto, saber que Visconti possivelmente não se vale de tal percurso narrativo. Ao contrário, prefere construir outro. Pois embora o amor seja sim um dos pontos basilares da narrativa de “Morte em Veneza”, a música justaposta à cena acaba por ter uma denotação mais melancólica, angustiada mesmo – em alguns termos, decadente. É difícil precisar tais elementos, de cunho eminentemente subjetivo, mas desde o primeiro quadro, com a extraordinariamente sugestiva fusão da tela enegrecida aos canais e posteriormente à barca sobre os canais de Veneza, pouco do ímpeto amoroso parece ser retratado em tela e, de fato, talvez não seja esta a melhor chave para entender a intenção sofisticada do diretor italiano quando prevê essa música como elemento reincidente na trama.
O que considero relevante é perceber que, com tal jogo de dubiedade na identificação do seu personagem, e isto é apenas reforçado pela música, mais que sublinhar a derrocada de nosso herói, Visconti consegue fazer com que a trilha sonora sirva também como elemento narrativo secundário, a sugerir para alguns senão a intuição, certamente uma inquietação quanto a um eventual acesso à intimidade emocional do protagonista.
E, aqui, o ponto central. Sendo aquela a música de um compositor que talvez seja o nosso protagonista, podemos fabular que trata-se ela da própria expressão de elementos de sua vida interior? É a que Visconti nos convida: uma espécie de fantasia em segundo plano que, reiterado pelo “motivo” do Adagietto ao longo da trama, em situações díspares, carrega a imagem de uma emoção resistente. A música surge sempre a ilustrar um protagonista solitário, e talvez seja nesse reforço de sua solidão que ela vigore como elemento objetivo de composição do roteiro.
Metalinguagem? Em termos técnicos não exatamente. Mas talvez possamos, sim, reavaliar, do ponto de vista poético, que é disso que se trata. A música de “Morte em Veneza”, o filme, é o elemento impossível de “A Morte em Veneza”, o livro: aquele que, de modo muito peculiar, nos leva diretamente não apenas ao sonho de seus criadores e diretores, mas também – uma tese -, de modo contundente e incisivo, à biografia de uma ficção, ao universo interior de seu protagonista.
Bibliografia
Thomas Mann’s Death in Venice: A Novella and Its Critics, Ellis Shookman
Thomas Mann’s Death in Venice: A Reference Guide (2004) Ellis Shookman
Unwritten Memories (1975) Katia Mann
Luchino Visconti, Cineaste (1984)
Entrevista a Michel Ciment e jean-Paul Torok. Organizado por alain Sanzio e Paul-Louis Thirard
The Letters of Heinrich and Thomas Mann, 1900-1949 (Weimar and Now: German Cultural Criticism, No 12)
Letters of Thomas Mann, 1889-1955 Por Thomas Mann,Richard Winston,Clara Winston
Gustav Mahler: The Symphonies Constantin Floros
Thomas Mann: “A Morte em Veneza” (Companhia das Letras, 2015)
Laurence Schifano: “Visconti, o fogo da paixão” (Nova Fronteira, 1990)