FOCO – A república de Jacques Tati

Herdeiro de Buster Keaton, Jacques Tati compreende que o espectador deve primeiro experimentar o rigor das leis físicas para que o elemento burlesco possa então reordenar o universo.

por Lucas Baptista
uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

A intuição fundamental de Jacques Tati envolve a musicalidade do espaço: a criação de uma beleza própria do ritmo e do timbre nas interações entre os corpos e seus arredores.

Herdeiro de Buster Keaton, Tati compreende que o espectador deve primeiro experimentar o rigor das leis físicas, seu caráter estável, para que o elemento burlesco possa dissipar e então reordenar o universo. A divergência entre eles deve-se a mais do que uma questão de temperamento: é um sinal do caminho tomado pela comédia no período sonoro. Closes e contraplanos serviam para criar alguns dos efeitos de incongruência no cinema dos anos 1920, e as perseguições dependiam com frequência do paralelismo na montagem. Nada disso existe em Tati. Ele prefere o registro aberto dos acontecimentos, à espera das notas que instigam sua atenção. Ao contrário de Keaton, expositor de uma hierarquia de situações ao redor de uma personagem central, Tati opta pela multiplicação de referências e a descentralização gradual da narrativa. Seu olhar é distante o suficiente para dar uma visão de conjunto e paciente o bastante para revelar eventos não decorrentes de uma manipulação externa. É também por isso que as personagens são atravessadas por conflitos menos violentos. O silêncio e a imobilidade servem de fundo aos ruídos e movimentos pois os sentidos em repouso são mais sensíveis a fenômenos moderados.

No cinema de Tati, a física não é apenas o meio pelo qual motivos são comunicados: é diretamente responsável pela caracterização. O manuseio intencional dos objetos não é menos relevante que os toques inconscientes, como revela a sequência dos quadros em As férias do Sr. Hulot (1953). Os vetores e intensidades determinam o nível de equilíbrio do ambiente, e a maior ou menor atenção a esses fatores determina o caráter de quem interfere na cena. No caso da acústica, basta lembrar dos sapatos em contato com o solo da fábrica em Meu tio (1958), definindo cada personalidade por um som e um andamento particulares. No início do filme, são as leis da óptica que ganham a frente quando a luz do sol, refletida na janela, é direcionada para ativar o canto de um pássaro. Nesse universo, os diálogos tendem a se dissolver em ruídos, mas o sentido da caracterização permanece. Onde há cena, há uma espécie de caixa de ressonância cômica, na qual a passagem de alguém deixa rastros que permitem a criação de uma pequena epifania. O mesmo ocorre com o atrito ou a elasticidade. Uma bola de tênis é arremessada sobre diferentes objetos, reagindo dinamicamente a cada um deles; uma jarra cai e resiste ao impacto, mas não um copo. O chão dos escritórios de Playtime (1967) é escorregadio, servindo como uma superfície a ser testada, e onde se realiza uma patinação acidental. A poltrona de couro é amassada e depois retorna ao formato original, um verdadeiro instrumento no qual se pode improvisar. Não há ambição tecnológica que resista ao talento de um humorista: em suas mãos e em seus pés tudo ganha um sentido absurdamente primitivo, como se passasse por um nivelamento atonal.

As férias do Sr. Hulot (1953) e Meu tio (1958)

Playtime destaca o que foi sugerido pelos filmes anteriores de Tati, um interesse pela reconstrução do espaço no cinema e pelas sutis distorções da percepção que ocorrem nesta transposição. Lembremos da recorrência de gags envolvendo paredes, portas e janelas de vidro. Aqui, a transparência confunde a visão através de um reflexo; ali, a transparência permite a visão, mas faz da travessia um problema; num caso especial, a sincronia entre o limpador de janelas e o ônibus cria um movimento no próprio cubo cênico, presente apenas no ângulo privilegiado do espectador. A fagulha cômica possui uma ligação curiosa com a descoberta intelectual, e a atenção dos grandes cineastas da comédia à mecânica do cinema é uma das chaves para essa interseção. A mecânica se propõe a descrição pura e desinteressada, abstraindo na medida do possível as causas dos fenômenos; a comédia depende frequentemente do cruzamento inesperado de perspectivas num plano comum, e é recorrente em Tati a configuração na qual as personagens e o espectador percebem a situação de maneiras distintas.

Playtime (1967)

Se acompanharmos a progressão da filmografia, veremos que ela se dá por um tratamento cada vez mais distante de Sr. Hulot, o eterno catalisador. A situação típica é a que André Bazin expressa pela imagem da “solução que se cristaliza ao redor do grão de sal ali jogado”. Há um cenário desprovido de conflitos, até que Hulot, com sua inadequação característica, introduz um problema após o outro, colocando o mundo em movimento, criando mesmo a noção de um desenvolvimento temporal no que antes era um exemplo de placidez. A trajetória do conjunto da obra é representada integralmente em Playtime, onde a personagem de início serve como uma espécie de mestre de cerimônias para o espectador, apresentando e guiando a atenção nos primeiros momentos. Conforme o filme avança, Hulot se torna cada vez menos presente, e acompanhamos outras pessoas, em situações variadas, sendo às vezes confundidas com ele. Desaparecido o protagonista, cada um se torna um Hulot em potencial.

O que define a personagem de Tati? Hulot tropeça em portas, escadas, elevadores, é confundido por regras e horários; ele caminha por ambientes controlados, onde cada som e movimento são regulados por máquinas que lhe parecem ameaçadoras. O homem puramente mecanizado é o executivo americano, em conformidade total com o ambiente. Mas a ingenuidade de Hulot é reveladora: a menor distância entre dois pontos é aquela percorrida por ele, não pela burocracia e tecnologia que se contorcem ao delírio, exigindo um imenso esforço para ir à sala ao lado. Ele é, surpreendentemente, uma figura socrática, fazendo com as condições físicas da representação o que Sócrates faz com as ideias. Ele é a ferramenta utilizada para observar os diversos graus de ignorância na sociedade, e o estudo da ignorância é o início do conhecimento. Hulot é, afinal, o perfeito ignorante: maleável, humilde, silencioso. É por esta via que a personagem aos poucos deixa de ser uma excentricidade para tornar-se a própria representação da totalidade. Hulot inicia como um exemplar – o que ele faz pode ser feito por outros, daí a função pedagógica de suas ações, facilmente ecoadas pelas crianças –, mas cada vez mais se revela a própria encarnação do processo.

Se as interações entre as figuras do diálogo platônico fossem traçadas em um diagrama, poderíamos observar o padrão de discordâncias e concordâncias com que Sócrates gradativamente desenvolve o tema central através de réplicas, antíteses e variações. O vocabulário não é arbitrário; a estrutura é semelhante à da fuga, a forma musical que, para seu maior expoente, devia se apresentar como “uma discussão ordenada de homens razoáveis”. Homens razoáveis não são abundantes no cinema de Tati, e em vários aspectos ele se distancia de ideais platônicos ou barrocos; mas não seria incoerente dizer que as operações formais de sua obra poderiam servir como exemplos de uma espécie de linguagem cinematográfica. Não significa que há um código estabelecido ao qual os filmes recorrem; significa que determinados princípios atuantes na linguagem verbal também se encontram no cinema, mesmo um cinema que evita o verbo como um gato evita a água. Tais princípios envolveriam, naturalmente, a condução dos corpos no espaço e no tempo. O retorno do diálogo à concretude da ação é o que parece ser colocado por essa inteligência particular. O discurso de Hulot ricocheteia em todos à sua volta, atinge as ruas e os prédios, torna-se um só com a cidade, sendo finalmente transfigurado pela câmera.

A fórmula do mundo como circo, representada na conclusão de Playtime, é uma das mais diretas expressões do que constitui o gênero cômico: a integração entre as personagens e a sociedade. Nosso olhar, implicado na cena, é ali confrontado com a síntese do tema cujo desenvolvimento acompanhamos e que nada mais é que uma visão harmônica da existência. Se há uma declaração, é de que não apenas Tati e os outros estão em consonância, mas que tudo está: eu, você, eles, o cinema. Monsieur Hulot, somos nós.


Lucas Baptista é doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP e editor da Foco – Revista de Cinema.

COMPARTILHE: