Abbas Kiarostami (1940-2016): O Vento o Levará

Em 2020, comemora-se o aniversário de 80 anos de Abbas Kiarostami. Para comemorá-lo, publicaremos três ensaios magistrais escritos pelo crítico australiano Adrian Martin, que, gentilmente, autorizou a sua tradução e reprodução. Hoje divulgamos o segundo desses textos. "É um bom momento, em seu aniversário de 70 anos, para rever as primeiras obras-primas de Kiarostami. Mas vamos fazê-lo de um jeito que seja honroso a ele e aos filmes." (Tradução de Miguel Forlin)

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Em 2020, comemora-se o aniversário de 80 anos de Abbas Kiarostami. Para comemorá-lo, publicaremos três ensaios magistrais escritos pelo crítico australiano Adrian Martin, que, gentilmente, autorizou a sua tradução e reprodução. Hoje, divulgamos o segundo desses textos.

O Vento o Levará (2010)

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por Adrian Martin, traduzido por Miguel Forlin

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Dez (2002) assinalou uma mudança na carreira de Abbas Kiarostami. E é uma mudança que muitos ? inclusive, alguns dos seus admiradores mais fervorosos ? têm dificuldade de aceitar, mesmo uma década depois.

O desconforto gerado por esse surpreendente movimento de xadrez pode ser medido pela crítica negativa de Shirin (2008) que apareceu num dos números dos Cahiers du Cinéma, no ano de 2010. Patrice Blouin ? acostumado à análise de vídeo-arte e cultura digital ? lembra do “gesto audacioso” de simplesmente colocar câmeras nos lados direito e esquerdo do carro e deixar os membros do elenco improvisarem, dez vezes seguidas. Segundo Blouin, com esse gesto, Kiarostami quis “acabar com a mise-en-scène” ? isto é, com todos os processos tradicionais de escrita, encenação, cenografia e iluminação, coreografia, direção de atores… no lugar dos quais Dez colocou o que os franceses chamam de “dispositif” (dispositivo), um sistema fixo e regrado para gerar uma obra, um jogo que, no caso de Kiarostami, permitia uma “gravação automática”.

Na maior parte da década, o trabalho de Kiarostami seguiu o caminho do “dispositif”. Isso fica claro até nos títulos, quando Dez anuncia a sua estrutura de dez cenas com diálogos e Five Dedicated to Ozu (2003) indica os seus cinco planos fixos e estáticos. Embora favorável à audácia inicial do diretor em Dez, Blouis considera essa reorientação na carreira um caso de pouco retorno: uma vez que o espectador “entende” o que está em jogo em Shirin ? o fato de que ouvirá a trilha sonora de um filme épico apenas fora da tela e somente verá uma procissão de mulheres em close-up aparentemente no processo de ver e reagir ?, não há mais nada a explorar. Uma conclusão  típica, podemos dizer, de boa parte da arte contemporânea: saber não significa amar.

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Shirin (Reprodução)

Kiarostami, porém, é um artista que se recusa a se limitar às categorias que nós, particularmente, no Ocidente, erigimos para compreendê-lo. A origem da sua atual evolução é perfeitamente clara: há muito tempo, Kiarostami tem habitado o universo internacional da arte — como fotógrafo, artista de instalações e “videoasta” — e, evidentemente, tem sido exposto à grande parte do circuito que o inspirou e excitou. Aparentemente, ele considera esse tipo de arte muito mais inspirador e excitante do que aquilo que tem visto no cinema nos últimos anos. E quem pode culpá-lo?

Para mim, pessoalmente, a desconcertante mudança de foco na minha apreciação de Kiarostami veio, em 2008, quando assisti à sensacional exibição de Correspondências, que o pôs, em Melbourne, ao lado do espanhol Victor Erice. Fiz uma pergunta difícil: como dois Grandes Nomes do Cinema reagiriam, enfrentariam e transformariam as restrições de uma instituição de arte? Mas havia uma grande diferença entre a resposta de Erice e a de Kiarostami. Erice declarou sem rodeios que se incomoda com a ideia do “cinema em um museu”; na exibição, todos os seus esforços foram feitos para reter a presença e o efeito da mídia fílmica, a sua preferida: o poder das imagens, o jogo de luz e sombras, o meio-termo perfeito entre artifício ficcional e realidade cotidiana.

Kiarostami, por outro lado, parecia mais relaxado em relação a isso. Nada da crise da “Morte do Cinema” para ele! Lá estavam as suas maravilhosas fotografias, trechos editados, exibidos em telas de LED, as cartas-vídeo trocadas (em outro uso do lúdico dispositif) com Erice… e, mais impactante ainda, sob os nossos pés, no chão, um segmento fílmico que não chegou a entrar na antologia de filmes Dez Minutos Mais Velho, de 2002: dez minutos de uma criança dormindo, um espetáculo perfeitamente warholiano, matéria-prima para video-looping no espaço da galeria. Era quase uma espécie de autocitação por parte do Kiarostami: Sleepers, de 2001, desenvolveu essa ideia num filme de uma única tomada.

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Exposição de Abbas Kiarostami (Reprodução)

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Mas será que tudo isso é realmente uma revelação? As ligações de Kiarostami com a arte contemporânea deveriam ter sido óbvias para os seus comentadores, desde os primeiros trabalhos. Em vez disso, muitos de nós, desde 1990, estávamos ocupados tentando enquadrá-lo em uma certa definição de cinema, colocando-o em uma camisa de força. E isso aconteceu, precisamente, no momento histórico em que nós, cinéfilos, sentimos o nosso amado cinema se afastando ou se transformando em algo irreconhecível. Estávamos agarrados ao passado.

Portanto, talvez seja um problema nosso e não de Kiarostami se achamos Shirin ou Dez inferiores a O Vento Nos Levará (1999) ou Gosto de Cereja (1997). Talvez estivéssemos olhando o tempo todo na direção errada, projetando em sua obra as nossas fantasias em relação ao que precisávamos que o seu cinema fosse. Não é de espantar que muitos de nós se assustassem com o “dispositif” de Shirin, ao mesmo tempo espetacular e minimalista, envolvente e frustrante — um tipo de elegia a um ideal antigo de grande cinema (e à nossa experiência desse cinema), o qual já está, literalmente, fora da vista e esquecido na era digital do “Faça Você Mesmo”. É preciso muita coragem para Kiarostami, nos seus 70 anos, abraçar esse tipo de desafios e paradoxos.

Há várias explicações possíveis do porquê os filmes da década de 1990 — especialmente a chamada Trilogia Koker, formada por Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), E a Vida Continua (1992) e Através das Oliveiras (1994) — terem um enorme impacto nos festivais de cinema e no circuito independente do mundo. Sim, os filmes eram novos, impactantes, comoventes, por vezes, profundos — como críticos importantes, de Laura Mulvey e Gilberto Perez a Mehrnaz Saaed-Vafa, habilmente demonstraram.

Mas filmes — particularmente, os bem-sucedidos — nunca são, em si mesmos, apenas objetos estéticos; eles também são eventos sociais que circulam, e o seu destino está sujeito a fatores e forças que estão além deles. E Kiarostami aceitou tamanha perda de controle sobre a sua arte — ela é, como ele disse repetidamente, aquilo que você deseja que seja. Ele é somente o catalisador do dispositif, não o seu mestre. O vento o levará…

Porém, às vezes, esse vento sopra para o lugar errado. É fato que Kiarostami, na década de 1990, estava numa cultura cinematográfica aparentemente benigna, mas, na verdade, viciosa, preso entre o Neorreal e o Moderno. Quando filmou os problemas cotidianos de colegas de turma  em Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, as ruínas de um terremoto em E a Vida Continua ou contemplou os trabalhos dos camponeses em Através das Oliveiras, ele foi considerado o renascimento de Vittorio De Sica ou Roberto Rossellini — aliás, como alguém até mais próximo da alma do neorrealismo do que esses diretores italianos jamais estiveram (eles não estavam nem pouco nem muito acima de artifícios narrativos e estilísticos).

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Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Reprodução)

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É um espetáculo conhecido no cenário da cultura cinematográfica internacional: pegar um país ou região que supomos (por mais equivocado que seja) subdesenvolvido e atribuir à sua Nova Onda de cineastas, até então desconhecida no Ocidente (não importando há quanto tempo eles praticam sua arte) um charme primitivo — quase uma aproximação ingênua às condições diárias da vida real. O circuito dos festivais ama os seus dândis velozes, cosmopolitas e internacionais — os tipos Olivier Assayas e Wong Kar-Wai —, mas anseia por equilibrar com coisas do Terceiro Mundo, inocência sem sofisticação. Até o gesto de inventar uma trilogia para Kiarostami — um rótulo que ele rejeitou para seus três filmes — indica a desesperada necessidade de mantê-lo preso numa locação amplamente rural, o “poeta de um local” como os irmãos Dardenne ou, por um longo tempo, Hou Hsiao-hsien. Trata-se de mais um “Efeito Criterion”.[1]

Nesse contexto, Kiarostami se tornou, especialmente depois dos dois primeiros filmes da chamada Trilogia, uma figura particularmente atraente do Neorreal: acima de tudo, ele foi tomado por um contador de histórias surgido de uma antiga tradição, uma fonte de sabedoria popular. Aqui, nós o aprisionamos não apenas ao espaço, mas também ao tempo: preferimos Kiarostami quando ele se mantém afastado das grandes cidades (daí a crueza de Dez) e mergulha na realidade atemporal (leia-se: pré-industrial) da vida camponesa e rural.

No entanto, de uma maneira quase mágica, algo diferente começou a aparecer na criatividade de Kiarostami — e, por um tempo, nós gostamos disso. Ele tornou-se um Moderno. Havia a insistência de quadros-dentro-de-quadros, como as paisagens vistas através das portas de carro e janelas em E a Vida Continua — fazendo o seu trabalho dialogar com, digamos, o de Michael Haneke. Viam-se os jogos reflexivos, como a reencenação, em Através das Oliveiras, de uma cena de E a Vida Continua, feita diversas vezes para a nossa atenta inspeção — ecos de Jacques Rivette ou Jean-Luc Godard. E também havia a ainda mais insistente presença de uma estética severamente reduzida, mínima — tomadas longas, câmera estática, som direto —, o que levou a uma comparação com Ozu e contemporâneos como Hou. “Slow Cinema” e afins. E, aos olhos e ouvidos do Ocidente, tudo isso pareceu chegar de modo natural e inconsciente. Espontaneamente, Kiarostami reinventara o neorrealismo e, agora, fazia o mesmo com o Modernismo.

Muito dos louvores críticos ao “nascimento do impulso Modernista” em Kiarostami, no fim da famosa Trilogia Koker, quando relidos hoje, me lembram de como críticos de gerações anteriores, no Ocidente, recepcionaram a “descoberta” de Sergei Parajanov — até então, um grupo simplório, primitivo e inescrutável de pessoas (da Geórgia, naquela ocasião) que, aparentemente, por acidente ou por uma intuição ingênua, se deparou com os recursos e os tropos do cinema moderno. “Ele quer respirar o ar dos Modernos”, um crítico escreveu em meados da década de 1980 — como se Parajanov não tivesse absorvido e pesquisado os movimentos artísticos do mundo inteiro, muito antes da sua tardia apropriação pelo Ocidente. Kiarostami também tem, há um bom tempo, respirado o ar dos Modernos.

O Novorreal e o Moderno: o que é chocante acerca dessas duas definições, quando usadas para se referir a qualquer cineasta atual, é que elas são fatalmente nostálgicas. Quando Kiarostami deixou de ser um substituto do neorrealista das décadas de 1940 e 1950, ele evoluiu para ser, de maneira perfeitamente confortável, um radical do cinema-arte dos anos 1960 — como Werner Herzog, Atom Egoyan e muitos outros acabaram se tornando no atual circuito do cinema independente, pouco importando as suas idades, formações e intenções pessoais; como Kiarostami, eles não têm voz a respeito disso. E, precisamente, essa tendência delimita o tipo de cinema que muitos cinéfilos (especialmente os mais velhos) acreditam que precisam defender, redimir ou ressuscitar, os evanescentes ideais e prazeres de juventude: Ladrões de Bicicletas (1948) e a Nouvelle Vague, Satyajit Ray e Oito e Meio (1953).

Raramente houve a possibilidade, no meio desse circo mortalmente nostálgico, de considerar Kiarostami como um Pós-Modernista ou como pertencente à última onda de arte conceitual e internacional. Não se trata apenas de se atualizar com os novos e exigentes prazeres de Dez, Five ou Shirin ou de olhar de modo mais abrangente para as suas conquistas nas mais diversas mídias e formas artísticas com as quais trabalhou — da fotografia à poesia, do cinema ao teatro. Também é uma questão urgente revisitar, com um novo olhar, os trabalhos canônicos da Trilogia Koker, de ver não o que é profunda e universalmente humano (isso nós já vimos), mas todos os discretos dispositifs de olhar e atuação, dos eventos e de sua filmagem, que, calmamente, reformularam a relação entre filmes e espectadores. E isso será mais significativo do que os jogos de Kiarostami (ao estilo dos anos 1960) sobre cinema-e-realidade (grande coisa) ou que ele, ocasionalmente, aponta para o artifício dos seus meios.

Cópia Fiel (Reprodução)

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É um bom momento, em seu aniversário de 70 anos, para rever as primeiras obras-primas de Kiarostami. Mas vamos fazê-lo de um jeito que seja honroso a ele e aos filmes. Quando nós o obrigamos a ecoar as glórias do passado, o nosso comportamento é tristemente sintomático. De sua parte, Kiarostami continua mudando, respondendo e inventando, olhando e experimentado — como ele sempre fez e faz novamente, de maneira surpreendente, em Cópia Fiel (2010).

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Nota:

[1] A versão final do meu breve ensaio de 2008 foi publicada em World Wide Angle, Volume 1: September 2007 – October 2009, e está disponível para os apoiadores da minha campanha no Patreon.

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https://www.filmcritic.com.au/

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