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Em 2020, comemora-se o aniversário de 80 anos de Abbas Kiarostami. Para comemorá-lo, publicamos três ensaios magistrais escritos pelo crítico australiano Adrian Martin, que, gentilmente, autorizou a sua tradução e reprodução. Hoje, divulgamos o terceiro e último texto.
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Sem Destino (2016)
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por Adrian Martin, traduzido por Miguel Forlin
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Abbas Kiarostami era prolífico sem realmente tentar. Ele praticava uma forma avançada de preguiça, e não digo isso em sentido crítico ou depreciativo: para ele, a arte surgia facilmente ou não surgia de jeito nenhum. Isso era uma atitude, uma prática, um modo de ser que ele cultivava e desenvolvia cuidadosamente.
Kiarostami nunca se prendeu a um único caminho, seja na indústria cinematográfica (nacional ou global), seja no mundo das artes. Ele reivindicava a liberdade de ir dos curtas aos longas-metragens, das fotografias aos poemas, das produções teatrais a instalações artísticas conceituais, da tela grande do cinema à tela pequena do celular, passando pelo aparelho televisivo. Como ouvi de produtores frustrados, mesmo quando Kiarostami se interessava por um projeto, se percebesse que as condições não lhe eram favoráveis ou que ele não teria a liberdade necessária, abandonava-o nos primeiros estágios.
Depois de ser aclamado, na época de O Vento Nos Levará (1999), como o grande humanista do cinema, em festivais como os de Cannes, Toronto, Veneza etc., ele partiu para investigações mais abstratas e herméticas, por quase uma década, sem se preocupar com sua reputação.[1] Provavelmente, o fato de sempre ser descrito como o neo-neorrealista dos nossos tempos o levou a fazer Cópia Fiel (2010), uma narrativa ficcional extravagante e alucinante protagonizada por uma grande estrela europeia, Juliette Binoche. Ele queria mostrar o seu “profissionalismo”, dirigindo atores e construindo uma mise-en-scène de encher os olhos. Cópia Fiel é um dos grandes filmes da primeira década dos anos 2000.
Deliberadamente, ele encerrou Um Alguém Apaixonado (2012), seu último longa-metragem, filmado no Japão, com um corte abrupto, no meio de um dos eventos da história: ainda mais brutalmente do que no sublime Gosto de Cereja (1997), ele anunciou, ao fazer isso, que o filme estava simplesmente terminado e que precisávamos encontrar o nosso próprio caminho entre a sua construção artificial e a realidade cotidiana na qual vivemos. As ligações sempre estiveram lá para serem descobertas, como ele mesmo fez, nunca parando de procurá-las e descobri-las. (Um trabalho póstumo, um tanto fragmentário, foi lançado em 2017: 24 Frames, outra produção conceitual em formato digital, irregular e decepcionante em sua execução e inspiração.)
Em certo sentido, muitos dos trabalhos de Kiarostami, em qualquer das mídias nas quais trabalhou (poesia, fotografia, cinema), tinham uma qualidade improvisada, impulsiva, aparentemente não elaborada. Ele gostava de se afastar o máximo que podia das suas criações, de se tornar mais um espectador e não um artista, mestre e controlador privilegiado, apenas alguém que descobria um resultado ao lado de uma pessoa da plateia: em Dez (2002), a câmera posicionada no painel do carro, mostrando o motorista e os passageiros, marcou o apogeu dessa tendência. Sempre que um crítico apresentava uma leitura de seu trabalho, por mais fantasiosa ou distante de suas próprias visões e intenções, ele ficava maravilhado (como muitos poucos ficam, garanto): a produção não mais lhe pertencia, e a tarefa e o prazer de todos nós era usar os fragmentos que ele nos oferecia para criar as nossas próprias histórias, forjar a nossa própria percepção do mundo.
Sem dúvida, em todas as mídias, há trabalho, trabalho profundo, nas produções de Kiarostami. Mas a sua capacidade de criar arte, como ele a descreveu uma vez, vinha da prática do ato de ver — com os seus olhos, primeiramente, e só depois com um tipo de aparato representacional como a câmera. A preguiça de Kiarostami — há muitas histórias, não somente acerca da sua habilidade de abandonar casualmente projetos nos quais ele não tinha mais interesse, mas também acerca de como ele desperdiçava algumas de suas melhores ideias ao falar sem as anotar, contando-as aos amigos, assistentes e colegas enquanto ia de uma locação para outra — é um tipo de abertura, uma disponibilidade para o mundo.
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O que ele aprendeu a ver, a perceber, poderia, então, ser imortalizado, rapidamente e sem esforço, no enquadramento de uma foto ou na composição de um poema. Esse era o gesto que ele treinou para colocar em prática. Para Kiarostami, o tempo estético era uma questão de momentos capturados. E que momentos maravilhosos, espalhados pelo globo terrestre, ele nos legou!
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Nota:
[1] Para um comentário mais detalhado sobre a obra de Kiarostami na década, indico meus livros Mise en scène and Film Style (2014) e Mysteries of Cinema (2018/2020).
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https://www.filmcritic.com.au/
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